Timoty Radcliffe (©Catholic Press Photo)

Timothy Radcliffe. Nada do que é humano nos é estranho.

Os cristãos precisam do mundo ou devem defender-se das consequências da secularização? O dominicano de Oxford propõe um caminho surpreendente: a imaginação. Que permite tocar o homem onde ele é mais vivo
Giuseppe Pezzini

Timothy Radcliffe, no início do seu livro Accendere l’immaginazione (Acender a imaginação, disponível apenas em italiano), confidencia que conversou com centenas de pais que se culpavam por não terem transmitido a sua fé aos filhos. A linguagem cristã é uma linguagem que «simplesmente não tem significado» para estes jovens, explica o famoso dominicano de Oxford, que foi mestre da Ordem dos Pregadores de Tomás de Aquino e Consultor do Pontifício Conselho da Justiça e da Paz: «É tão antiquada como uma máquina de escrever. Pertence a outro mundo, é uma outra língua». Quer lhe chamemos secularização, quer lhe chamemos “morte de Deus”, o conceito, porém, é claro: cavou-se uma fossa entre a Igreja e o mundo contemporâneo. Há mais de um século que o problema está diante de todos. E na Igreja, cada um tem a sua própria solução infalível. Há quem volte a propôr o cristianismo como “religião civil”, cuja doutrina poderia revitalizar e reumanizar a convivência civil, há quem considere que a batalha pelos “valores” está definitivamente perdida, há quem tente abraçar as razões do “mundo” e há quem recue para não se “contaminar”... Radcliffe, por sua vez, faz aquilo que mais gosta: alimenta-se de arte e de literatura (desde a série de TV Friends até ao poeta irlandês Prémio Nobel, Seamus Heaney) em busca daquele humano profundo com o qual o facto cristão dialoga radicalmente. O elo que não resiste, diria o poeta italiano Eugenio Montale. A fenda que existe em todas as coisas e por onde entra a luz, segundo Leonard Cohen. Falta imaginação aos cristãos, diz Radcliffe. Que, afinal, é a capacidade de ver o mundo. Incuindo elos e fendas.

Ainda é possível para os cristãos interagirem com este mundo pós-cristão sem se traírem a si mesmos?
A nossa cltura é, de alguma forma, uma “contracultura”. Temos valores que estão em contraste com o mundo de hoje. A sociedade é marcada pela desigualdade, pela ganância, pelo materialismo e pelo medo do diferente. E precisamos de comunidades que tenham estilos de vida diferentes: paróquias ou, mais radicalmente, mosteiros, onde se conserva viva a percepção de um mundo cheio de dons que desafia a superficialidade de muita da cultura moderna.

Seria preciso “retirarmo-nos” do mundo?
O cristianismo não pode tornar-se uma seita isolada, senão morreria.

E então?
Gosto de usar esta imagem: em frente da janela do meu quarto, em Oxford, há uma árvore muito bonita. Tem vida própria. É ela mesma! Mas ela só está viva e floresce porque está em contato com outras coisas. As suas folhas estão abertas ao ar e à chuva, as suas raízes aos nutrientes da terra, o seu córtex aos insetos. Está viva apenas na medida em que interage com esta alteridade. A Igreja é assim, vive da sua interação com o mundo. Compartilha a boa nova do Evangelho e está aberta à sabedoria dos outros, às suas alegrias e sofrimentos. Por isso, penso em formas de vida comunitária que sustentem a nossa visão que irradia a presença de Deus e, ao mesmo tempo, estejam abertas a quem não crê ou tem um credo diferente do nosso, deixando-se estimular pela interação.

Como é que a fé pode identificar a ferida do homem de hoje?
Em Ezequiel, Deus proclama que nos arrancará os nossos corações de pedra e nos dará corações de carne. Os corações de carne são vulneráveis, abertos tanto à dor quanto à alegria. Acho que as duas coisas são inseparáveis. O oposto da alegria não é, portanto, a dor, mas o ser invulnerável, ter o coração duro. Escrevi muitas vezes sobre o meu tio-avô beneditino, Dom John Lane Fox. Era a pessoa mais feliz que eu já conheci, e devo-lhe a minha vocação religiosa, embora ele tenha ficado surpreendido por eu ter escolhido os dominicanos... Tenho a certeza de que sua grande letícia era uma espécie de participação na vida de Deus, e não um simples sentimento. Estava intimamente ligada à sua experiência como Capelão na Primeira Guerra Mundial, quando ia todas as noites à terra de ninguém para salvar os feridos e rezar pelos mortos. Se quisermos ser verdadeiramente alegres, não devemos fugir da dor do mundo, porque esta parte os nossos corações de pedra. Um dominicano francês, que também é escritor, Jacques Laval, deu-me um exemplar de um de seus romances com a dedicatória: «A si, que sabe que as feridas se podem tornar as portas do sol». O Senhor ressuscitado está ferido para sempre! Assim, a nossa fé não nos protege das feridas, mas transforma o seu significado. A dor, com a graça de Deus, rompe a minha autossuficiência, a minha autonomia, e abre o meu coração para a alegria e para o sofrimento do mundo.

Foto: Aris Messinis/GettyImages

No seu livro, o senhor repete com frequência que «nada do que é humano é estranho a Cristo».
Deus feito homem entrou plenamente na condição humana. Por isso, uma das primeiras tarefas do cristão é tornar-se precisamente humano. Em Aristóteles, e depois em Tomás de Aquino, este crescimento era facilitado pela prática das virtudes. Tentavam tornar-se corajosos, mansos, gentis, justos... Qualquer pessoa que compreenda os desafios que isto implica pode ajudar-me.

Por exemplo?
Charles Dickens. Ele tem uma capacidade extraordinária de ler o coração humano. Percebe como é fácil errar e arranjar sarilhos. E por isso, quando leio os seus romances, ou vejo os filmes de hoje em dia, ou simplesmente converso com os meus amigos, espero crescer humanamente, como alguém que percebe o coração e a cabeça do homem. Se eu conseguir tornar-me verdadeiramente humano, então posso encontrar Cristo, que é o mais humano de todos.

O senhor afirma que «temos mais possibilidade de entusiasmar as pessoas com a nossa fé se o cristianismo for entendido como um convite para viver plenamente».

É Deus que nos chama a isso. No Deuteronómio, diz: «Eu ponho hoje diante de ti a vida e a morte... escolhe, pois, a vida». No Evangelho de João, Jesus afirma: «Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância».

Não há o risco de trocarmos esta abundância por uma série de caprichos subjetivos?
Se a pessoa estiver completamente centrada nos seus caprichos, fechada em si mesma, não vive plenamente. A nossa fé proclama verdades objetivas, mas estas verdades transcendem a nossa exata compreensão. Nós não somos capazes de compreender o que significa para Deus ser Deus... Quando conhecemos pessoas que vivem a vida em toda a sua amplitude e plenitude, é como se nos oferecessem um vislumbre do verdadeiro significado dos ensinamentos cristãos. O que é maravilhoso no cristianismo é que nos são oferecidas verdades cuja profundidade está sempre para lá do nosso alcance. São objetivamente verdadeiras, mas não estão totalmente ao nosso alcance. Os poetas e os artistas ajudam-nos a vislumbrar um pouco do significado destas verdades.

O senhor escreveu que o cristianismo deve abrir-se a «uma plenitude de identidade que está sempre além de nós. Quem somos, ainda não o sabemos completamente». Como pode haver esperança e certeza sem uma identidade firme e estável?
A beleza da identidade cristã é o facto de ser conhecida e, ao mesmo tempo, algo a ser descoberto. É conhecida no sentido em que somos batizados numa comunidade com uma longa tradição doutrinária, com uma visão ética, e somos membros de uma comunidade que se estende por todo o mundo e através dos tempos. Por isso, sim, temos uma identidade clara. Eu sou um católico romano, membro de uma comunidade que tem o seu centro na diocese de Roma e cuja existência remonta a há dois mil anos. Mas também sou um católico romano, que significa “universal”, sempre inclinado a ir além de tudo o que é pequeno e restrito. Acho que se tivermos uma identidade segura e clara, então podemos ter a coragem de nos aventurarmos e descobrir irmãos e irmãs em todo o mundo.

O seu último livro intitula-se Acender a imaginação. Por quê refletir sobre este tema, hoje?
Muitos afastam-se do cristianismo porque o acham enfadonho. Não parece ter nada a ver com eles, com as suas perguntas, as suas lutas e as suas alegrias. Mas o cristianismo diz respeito precisamente ao nosso Deus, que veio para o meio de nós e partilhou a nossa vida quotidiana, tocou as pessoas em todo o tipo de dificuldade e alegrias, dos leprosos a um casal que celebrava as suas bodas em Caná. É a imaginação que nos permite agora aproximarmo-nos das outras pessoas, para nos solidarizarmos com o drama das suas vidas. Se eu quiser partilhar a minha fé com alguém, preciso de perceber quem é essa pessoa e o que ilumina a sua vida: então, posso partilhar o que ilumina a minha. A imaginação não é subjetiva. É o que me permite alcançar a outra pessoa e entrar no seu mundo. Liberta-me daquilo a que a filósofa inglesa Iris Murdoch chamava de «o grande ego implacável». Quando leio um romance realmente convincente, ou vejo um filme maravilhoso, ou ouço uma música incrível, sinto-me livre dos limites do meu mundinho. Respiro ar fresco! Não é uma alternativa à fé e à razão, porque todas as tentativas de expressar a fé e explorá-la racionalmente são também atos de imaginação. Esta permeia tudo o que fazemos e somos, é o oxigénio de uma vida verdadeiramente humana.

As citações que o senhor propõe provêm de âmbitos culturais muito diferentes. Num mundo polarizado como o nosso, não seria melhor escolher uma posição em particular?
Concordo apenas em parte. Existe um atrito entre diversos pontos de vista. Os papas Bento e Francisco, jesuítas e dominicanos, etc. Não concordo com tudo. Eu adiro a posições particulares e pertenço a tradições particulares. Mas devíamos envolver-nos com as diferenças. E se tivermos a inteligência e a caridade para perceber por que razão alguém tem opiniões diferentes das nossas, então a diferença torna-se fecunda. Cada um de nós é fruto da diferença entre macho e fêmea! A nossa sociedade tem geralmente medo da diferença. Os algoritmos do Google direcionam-nos para pessoas com as quais concordamos, e isso pode fechar-nos em silos, em bolhas. Aproveitar a diferença é a essência do catolicismo. Temos quatro Evangelhos no Novo Testamento e não coincidem em tudo! O diálogo entre eles leva-nos a uma maior compreensão. Diante das diferenças na sociedade e na Igreja não permanecemos neutros, nem aceitamos da mesma maneira todos os pontos de vista. Seria uma posição enfadonha e vazia. Pelo contrário, acredito que aqueles de quem discordo têm alguma verdade para me ensinar que poderia abrir a minha cabeça.

E quanto à polarização, onde a metemos?

A distinção entre direita e esquerda é um dos produtos do Iluminismo. Deriva da disposição dos parlamentares na Câmara da França pós-revolucionária. Pressupõe uma oposição substancial entre tradição e liberdade, dogma e liberdade de pensamento. Mas esta polarização é absurda e insana. Em qualquer sociedade dinâmica, a tradição está viva e em evolução. Volta-se às fontes originárias para imaginar novos pensamentos. Uma boa doutrina abre a mente e impele-a à exploração, não a fecha.

Tendo em conta o tipo de exemplos que o senhor usa no seu livro (há clássicos da literatura, mas também filmes, séries de TV e best-sellers contemporâneos), parece que a cultura “mundana” também pode contribuir para a experiência cristã. É assim?
O perigo da fé religiosa é que às vezes pode representar para nós uma fuga da complexidade e da crueza da experiência. É tão fácil dizer: «Não te preocupes. Estás nas mãos de Deus». Ou: «Tudo o que tens de fazer é amar». Se fosse assim tão simples... Por isso, precisamos de pessoas que nos abram, com honestidade, à complexidade da experiência humana, do amor ou dos dilemas morais. O grande caos de muitos momentos da vida. Então, com os olhos renovados, é precisamente ali que podemos buscar Deus. Simon Tolkien, neto de J. R. R., escreveu um romance sobre a Primeira Guerra Mundial, No Man’s Land (Terra de Ninguém), no qual narra o horror daquele conflito. Para alguns, aquele terrível levou ao fim da fé. Deus não podia existir. Mas o desafio não é desviar o olhar, mas aprender a dizer: «O Senhor está neste lugar e eu não o sabia».

E entre as inúmeras obras não cristãs, o que recomendaria?
Há tantas obras de arte maravilhosas capazes de nos comunicar algo, que eu poderia escolher uma diferente todos os dias! Mas hoje apetece-me sugerir Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. É a mais extraordinária exploração do tempo, da memória e da espera. A pequena igreja de Combray é um edifício com quatro dimensões, escreve Proust, e a quarta é o tempo. Como diz muitas vezes o Papa Francisco, e já dizia o Papa Bento antes dele, a vida dos cristãos é estruturada pelo tempo, pela memória – «Fazei isto em memória de mim» – e pela espera do Cristo que virá. Proust pode ajudar-nos a perceber o que significa viver no tempo.