Clarice Lispector, a imprevista pertença
Três episódios, contados por uma sua biógrafa, Nadia Gotlib, ficaram retidos na minha memória desde que, há muitos anos e a conselho de um amigo, descobri a riqueza indescritível dos textos de Clarice Lispector... A densidade e a verdade da sua escrita parecem quase não ter paralelo na literatura contemporânea – cada frase tem vida própria, lateja de energia, de substância, de surpresa e de dramaticidade, condensa fibras da existência com uma intensidade radicalmente sincera e desconcertante.
O primeiro episódio tem que ver com o início da sua própria vida. Clarice relata-o assim: “Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de graça.” Habitualmente descrita de forma psicológica (porque a mãe de Clarice era doente e o nascimento da filha teria sido visto também como esperança de uma cura que não viria a acontecer), esta afirmação tem, porém, um alcance muito mais vasto, revelando a profundidade do olhar de uma criança que desde muito cedo revela uma aguda consciência de si mesma e do seu lugar no mundo. Tal consciência manifesta-se como necessidade, como desejo e como certeza de uma radical desproporção: “Por isso se no berço experimentei esta fome humana, ela continua a me acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino. A ponto de meu coração se contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira: ela pertence a Deus. Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou a alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre. Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma. E preciso de mais do que isso”.
A escrita de Clarice dá forma à dor desta falta e à busca incansável e atormentada - por entre religiões e crenças várias - desse “mais” que lhe é absolutamente necessário. Incapaz de se deter na banalidade do quotidiano e ciente da urgência de cada instante, Clarice Lispector exigia dos amigos o impensável. O segundo episódio é relatado num curto poema de João Cabral de Melo Neto, Contam de Clarice Lispector: “Um dia, Clarice Lispector/ Intercambiava com amigos/ Dez mil anedotas de morte/ E do que tem de sério, e circo. Nisso, chegam outros amigos/vindos do último futebol/ comentando o jogo, recontando-o,/ refazendo-o, de gol a gol. Quando o futebol esmorece/abre a boca um silêncio enorme/ E ouve-se a voz de Clarice:/ Vamos voltar a falar na morte?”.
O terceiro episódio que retive testemunha a certeza da escritora sobre a possibilidade de verdadeiro bem, sobre a origem da resposta exigida pelo coração humano, que não pode ser fabricada por nós, mas é indiciada pela espera que nos constitui – e, portanto, como afirmava Eugenio Montale, implica reconhecer que “um imprevisto é a única esperança”. Assim, é Nadia Gotlib quem transcreve a carta que Lispector escreve à amiga Olga Borelli: “Precisamos conversar. Acontece que eu achava que nada mais tinha jeito. Então vi um anúncio de uma água de colônia da Coty, chamada Imprevisto. O perfume é barato. Mas me serviu para me lembrar que o inesperado bom também acontece. E sempre que estou desanimada, ponho em mim o Imprevisto. Me dá sorte. Você, por exemplo, não era prevista. E eu imprevistamente aceitei a tarde de autógrafos.”
A genialidade de Clarice Lispector coincide com uma grande lealdade existencial. Na batalha da vida, que se traduzia numa forma de intuição artística crua e estritamente metafísica – porque absorvia e atravessava a matéria em direcção à sua profundidade última, como talvez o livro A Paixão segundo GH demonstre melhor que nenhum outro – Clarice arriscava tudo, sem se defender da existência: “A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então eu soube: pertencer é viver. Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego os últimos goles de água de um cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho.”