A realidade é a primeira companhia

Durante anos tinha dado a realidade por adquirida – tudo acontecia na minha cabeça, e a realidade era como um pano de fundo onde estavam os meus pensamentos. Pela primeira vez comecei a surpreender-me diante do facto de que existe a realidade...
Inês Avelar Santos

O responsável pelo movimento de Comunhão e Libertação (CL) em Espanha, Padre Ignacio Carvajosa (também conhecido por Nacho), veio a Lisboa contar-nos a sua história. O serão teve lugar no auditório de Santa Joana Princesa e foi conduzido pelo Padre Luis Miguel Hernández. Embora o Padre Nacho tenha o dom de falar muitas línguas, o português não se conta entre elas. Assim, foi-nos testemunhando o seu caminho, nem sempre linear, num espanhol pausado, mas decidido.
Nacho nasceu em 1967, altura em que o positivismo dominava o ambiente cultural, também nas famílias cristãs. “Ainda que se fosse à missa aos Domingos, e me levassem à paróquia, Deus não era um fator da realidade. Havia o fator do dever (o estudo, fazer a cama, etc.) mas Deus não era um fator da realidade”.

Um contexto cultural que deixaria marcas. “Aos 16 anos tive uma crise existencial e religiosa muito forte, muito dramática! Eu queria acreditar em Deus, porque as perguntas que tinha sobre a morte, sobre a dor, eram muito fortes; e se Deus não existia, a morte era o fim e a dor não tinha sentido! Eu precisava de acreditar, mas para mim a existência de Deus não era razoável porque não se podia tocar”.
Esta experiência de solidão e de procura duraria mais uns anos, e nem a Igreja que frequentava lhe dava respostas. “Via que os meus amigos se ajoelhavam e rezavam, mas eu não tinha o sentimento, não me ‘saía’ sentir que Deus existe. E para mim era muito dramático! Tinha também perguntas sobre a solidão, sobre a morte, sobre a dor, sobre o porquê das coisas, que me parecia que, à minha volta, ninguém as tinha. Sentia-me a pessoa mais estranha do mundo!”.
Logo no primeiro ano da faculdade encontra o movimento de Comunhão e Libertação. Lembra-se com clareza da primeira vez que foi a uma Escola de Comunidade (EC) e que imediatamente o agarrou: “Já não se falava – como estava habituado na paróquia onde ia –, do Evangelho ou do pecado, etc.. Falava-se da solidão! E eu pensei: ‘isto acontece-me a mim!’». A experiência de vida cristã proposta pelo movimento – a EC, a caritativa, os passeios e férias juntos, a forma como se cantava – continuou a fasciná-lo e, no tempo, fê-lo perceber que tinha começado a fazer a mesma experiência que os discípulos: “Podia verdadeiramente dizer que Cristo tinha vindo ao meu encontro! Com os meus olhos via coisas que até ali não tinha visto”.

Um encontro decisivo. “Depois de toda a minha enorme procura, foi verdadeiramente encontrar-me com algo que era real, que me mudava, que atraía a minha razão e que atraía o meu afeto!” A tal ponto que decide entrar no seminário.
Mas nem uma decisão tão radical tiraria do seu coração a fraqueza deixada pelo positivismo que moldou a sua geração. “De vez em quando entrava em crise, entre o que viam os meus olhos – que não podia negar, era excecional! –, e o que acontecia quando me queria ajoelhar para dizer: ‘obrigada Senhor’; surpreendia-me, como que pensando, ‘a quem o estou a dizer?’ Era como se não tivesse fé, e assim…não me podia ordenar!”

A primeira companhia. A amizade filial do Padre Nacho com o Padre Julian Carrón nascera nos tempos do seminário. A pouco tempo de ser ordenado, conta a Carrón a crise que o bloqueava. Carrón ouve-o com paciência e, no fim, diz-lhe: “concedo-te isso tudo, não nego o que me estás a dizer, não te digo que exageras, nem te digo que não te preocupes; tudo bem, tens estes problemas”. E acrescenta: “Mas tu, neste instante, não dás a vida a ti mesmo e tens de fazer contas com isto!”.

Pouco a pouco foi começando a perceber o que lhe tinha dito Julian: “Durante anos tinha dado a realidade por adquirida, porque não tinha Cristo diante dos olhos – tudo acontecia na minha cabeça, e a realidade era como um pano de fundo onde estavam os meus pensamentos. Pela primeira vez comecei a surpreender-me diante do facto de que existe a realidade e não o nada e de que a realidade não é virtual. É um espetáculo, é a primeira companhia, não estou só, há alguém que sustenta o ser das coisas!”.
Uma companhia à qual já não conseguia levantar objecções: “Para mim isto foi uma revolução porque a Cristo já o tinha encontrado, agora por fim podia pôr-me de joelhos e dizer, obrigado Deus meu, obrigado Senhor, obrigado Cristo!”.
Durante alguns anos Nacho assumiu a responsabilidade de acompanhar os universitários de CL em Espanha. Também aqui a amizade com Carrón seria determinante. Conta-nos que quando ia falar com Carrón, este tinha sempre o livro de EC aberto sobre a mesa. “Quando eu lhe contava um problema, lia-me um parágrafo da EC e dizia-me ‘vês? Tudo tem que a ver com a EC!’. Tinha claro que isto queria ensinar aos universitários”.

Aquela amizade com os universitários fá-lo-ia viver na primeira pessoa o risco educativo: “Nós os padres, e os educadores, temos um defeito: eu fiz um caminho, tenho uma experiência e conhecimentos e quando tu – aluno, estudante, discípulo –, vens com um problema, eu como já passei por isso digo-te: ‘faz isto ou faz aquilo!’ Mas dizendo-te o que tens de fazer impeço-te de fazer experiência e que tu nessa circunstância possas dizer: ‘aprendi!’ ou ‘meti a pata na poça!’. Não posso fazer experiência se há alguém que ‘por caridade’ me diga, não faças isso ou faz aquilo”.

Relata-nos um exemplo de uma universitária que tinha começado a namorar com um rapaz que era o típico pior da turma (ateu, etc.). “Muitos padres disseram, ‘com esse não que te perdes!’ Eu fui assistindo ao que se passava, mantive a relação com ela e para mim foi um verdadeiro espetáculo ser espectador privilegiado de tudo o que aconteceu naquela relação e naquele rapaz, de como mudou. Até ao ponto em que este rapaz, dando-se conta do que era aquela mulher, dando-se conta de como o estava a fazer descobrir um mundo – o seu sentido religioso – teve um momento em que disse: ‘Não! Se continuo assim não quero’. E acabou tudo. Ainda me lembro quando esta rapariga chegou a minha casa, em lágrimas. Perguntei-lhe: ‘Também te queres ir embora?’. Naquele momento ela podia ter estalado os dedos e ele voltava, desde que não insistisse muito, se se mantivessem cada um no seu campo, continuariam perfeitamente juntos. Toda a dor desta rapariga era porque a pessoa que amava virava as costas ao seu sentido religioso, a dor profunda que sentia era por este facto e não porque não podia tê-lo. A mim corrige-me a tentação de dizer o que tens de fazer quando vejo o bem que me faz a mim não perder o espetáculo de como estes jovens fazem experiência das coisas grandes que lhes acontecem”.

Para o Padre Nacho a afetividade, mais totalizante nos jovens, constitui a possibilidade por excelência de conhecer quem é o Mistério. “Pensando por um momento que não existia a diferença sexual, que nós, em vez de sermos homem e mulher fôssemos ser humano, sem a diferença, pergunto-me – e deixo-vos esta pergunta – teríamos mesmo assim o sentido religioso como o concebemos?”.
Nacho relata-nos a experiência que o fez descobrir a resposta: “Eu apaixonei-me pela primeira vez quando tinha 12 anos, por uma da minha turma. Fui de férias a pensar nela e dei-me conta de que foi o momento em que os meus pais, o futebol, os meus amigos, etc., não estavam à altura do que me tinha sucedido! Eu por aquilo atravessaria mares, galgaria mundos, daria a vida. Tive esta intuição: passou-se alguma coisa que já não dava para voltar atrás, pela qual valia a pena dar a vida!”.

Para o Padre Nacho a resposta àquela pergunta só pode ser negativa. “Teríamos ainda o sentido religioso na experiência da solidão (‘preciso de estar acompanhado de outro ser humano’); poderíamos ter ainda a experiência da necessidade da eternidade (‘não quero morrer’); mas faltar-nos-ia a surpresa do ‘tu’ – não do amigo, do que me acompanha –, mas do tu que um homem experimenta com uma mulher e uma mulher experimenta com um homem; que é o lugar por antonomásia com o qual o Senhor nos marcou, para que toda a nossa vida seja um ‘tender a’, que eu levo na carne, fisicamente, animicamente, e psicologicamente. Eu estou marcado, eu estou em tensão para o tu. E é assim também para os padres”.

Sobre a importância de viver a afetividade com este horizonte, conclui: “Preocupa-me quando distinguimos as regras da educação afetiva do afeto ao destino! O afeto é só um. O afeto educamo-lo para que tenda ao destino. Quando isso se educa, que espetáculo uma relação afetiva!”

Um único afeto que permite olhar mais a fundo também a crise política e social que se vive hoje em Espanha. “Na época de Zapatero parecia uma crise para a Igreja, uma crise de identidade. Com o tempo vimos que é uma crise para todos porque faltam as evidências (o que é a democracia, a dignidade humana, a diferença sexual, etc.). Neste sentido, todos estamos mais humildes, mais acanhados, mais doridos. A fratura social e as feridas são muito maiores”.

As crises atuais trazem uma oportunidade.
“Há 20 anos era difícil encontrar um jornalista que se pusesse diante da sua humanidade, da sua pergunta, do seu sentido religioso e hoje em dia em todos os jornais esta pergunta, esta experiência humana de cada um, está continuamente presente. Os anos que vivemos agora são anos excecionais para dar espaço ao cristianismo, para encontrar a humanidade das pessoas do ponto de vista da experiência cristã”.