O amor não é justo:uma leitura de Miguel de Mañara

Da conferência proferida no âmbito do “Meeting de Lisboa 2017” que tinha por lema “Do amor ninguém foge!”, a intervenção do P. Pedro Quintela
P. Pedro Quintela

Como o Don Juan lendário que originou livros e poemas, óperas e quadros, personagem devasso e orgiástico - mas desta vez com pretensões históricas, devidas principalmente ao testamento escrito pelo seu próprio punho - convido antes de mais a determo-nos no que conta de si mesmo Don Miguel Mañara:

“Cinzas e pó, desditoso pecador, pois a maioria dos meus logrados dias ofendi a majestade altíssima de Deus, meu Pai, cuja criatura e escravo vil me confesso. Servi Babilónia e servi o demónio, seu príncipe, com mil abominações, soberbas, adultério, juramentos, escândalos e latocinios; cujos pecados e maldades não têm número e só a grande sabedoria de Deus pode numerá-las e a sua infinita paciência sofrê-los e a sua misericórdia infinita perdoá-los.
E escrevo isto (com dor no meu coração e lágrimas nos meus olhos o confesso), mais de trinta anos eu deixei o monte santo de Jesus Cristo e servi louco e cego Babilónia e os seus vícios”.


Pois é este mesmo sevilhano de outras eras que foi declarado venerável pela Igreja e que tem o processo de beatificação a correr, e foi sob a sua figura histórica que o génio de Oscar V. Milosz intuí e constrói dramaticamente a peça de Teatro que hoje aqui nos reúne.

Muito sumariamente, e para quem eventualmente a não conheça, diria que o enredo nos coloca num primeiro quadro perante a devassidão de D. Miguel; depois face ao seu encontro com a inocência em Jerónima, a qual desposará sendo o leitor levado a acompanhar concomitantemente a sua conversão e finalmente a oferenda de si mesmo aos miseráveis.

Notícias:
1. Sobre Milosz
Mas queria começar por dar nota biográfica do autor de Miguel Mañara, ou seja, O.V. Milosz.
Em 1938, a poucos meses de morrer, numa carta a um poeta seu amigo, o próprio Oscar Milosz (1877-1939) lamentava-se do obnubilamento da sua pessoa e da sua obra na Paris de então: "não encontro editor para as minhas obras completas. A maior parte dos editores ignoram até o meu nome e a minha existência!". Daí que eu mesmo comece por saudar o Meeting de Lisboa 2017 por este evento que - quase 80 anos depois - certamente alguma coisa resgatará do apoucamento e da irrelevância entre nós deste escritor lituano, segundo sei ainda não publicado, em qualquer das suas obras, entre nós, nem sequer o seu livro "Miguel de Mañara" que hoje nos ocupa (NR - o livro foi entretanto publicado, ver secção de publicações).

Queria começar por sublinhar alguns traços da biografia de Oscar Milosz: nascido, perdido, por entre um pai aristocrata que terminará os seus dias louco e uma mãe obsessiva que o persegue até ao insuportável, à beira do fim do mundo dos czares (e dos 30 000he que a sua família possuía na Lituânia de então, hoje Bielorrússia), patriota combativo face à Polónia, que sempre detestará e à Rússia que temerá, exilado e depois naturalizado francês, embora sem o ser, o autor de "Miguel Mañara" é sobretudo um homem solitário. Um homem só, embora pessoalmente dedicado ao outro sexo...

De cultura enraizada na fé cristã tardará a acolher a conversão ao catolicismo, apenas em 1927. Pelo meio e sempre, como não é raro na cultura da Europa oriental, mescla-se com o mundo da cabala. Nesse mergulho faz a surpreendente descoberta que seja em hebraico, seja em basco o número 666 quer dizer "América"...

Certo é que este mundo povoado de grandeza e devastado por angústias o leva, em 1901, a fazer uma tentativa de suicídio. Será por essa época, também, que começará a escrever o seu Don Juan, só 10 anos mais tarde, porém, irá escrever o "Miguel Mañara", publicando-o em 1912 na revista Nouvelle Revieu Française, de André Gide; em 1919 será publicada a sua tradução polaca. Trata-se de um dado interessante já que será esta versão a ser lida em voz alta, mas clandestinamente, no teatro rapsódico de Cracóvia, nos anos da Segunda Guerra Mundial, pelo jovem estudante Karol Wojtyla.

Todavia e segundo indicação do prémio Nobel Milosz, este texto só raramente foi representado.

Mas passemos adiante. Detenho-me agora, como facto digno de nota, no encontro ocorrido, em 1931, entre os dois Mislosz. O nosso autor maduro nos seus 54 anos e o futuro prémio Nobel apenas jovem de 19 anos. Relata-o, assim, o primeiro, numa carta a uma sua confidente:

"Este verão, tive a alegria de conhecer o meu sobrinho, descende directo [sic] de um irmão do meu bisavô. Esperava a aparição de um horror, de um monstro digno do resto da minha família de sujos burgueses, ex-grandes senhores de terras e militares.

Qual não foi a minha surpresa ao encontrar-me perante um jovem de 19 anos agradável fisicamente. Poeta, à vez muito entusiasta e muito ponderado, animado no que a mim diz respeito de sentimentos respeitosos, devidos à minha obra, muito ligada ao lado inteligente e venerável da tradição monárquica, católica e nobre, um pouco comunista, exactamente o necessário para render justiça à nossa época inverosímil — numa palavra, um jovem cavalheiro que eu considero um pouco como meu filho."


Por sua vez, e visto do lado do longínquo sobrinho, este conta que através das cartas trocadas entre ambos, o tio lhe havia recomendado que comprasse roupa antes de se encontrarem. A figuração do parente mais novo como meio selvagem devia afligir mesmo o nosso autor...

Certo é que o mesmo jovem parente viria a dizer: "aprendi bastante com ele, permitiu-me aceder a uma compreensão mais profunda da religião do Antigo e do Novo Testamento, e impôs-me a necessidade de um hierarquia rigorosa, ascética, em todos os domínios do espírito, incluindo aquele que diz respeito à arte". Neste domínio, ele considerava que o grande pecado era o facto de se colocar tudo o que é secundário sobre o mesmo plano do que é primordial. Aliás, é de Oscar Milosz, tio, a frase segundo a qual "não podemos atingir nada se ficarmos excessivamente ligados aos problemas da forma."

não podemos atingir nada se ficarmos excessivamente ligados aos problemas da forma.

Note-se que tudo isto tinha uma tradução concreta na relação com o próximo. Ainda segundo o prémio Nobel "os criados [do seu tio Oscar Venceslau] deviam apreciar nele antes demais o dom da atenção, uma atitude que mostrava que ele estava consciente da presença dos outros!"
Certo é que, sem concessões edificantes, e segundo lemos num poema seu, devemos amar os homens com um velho amor "desgastado pela piedade, a cólera e a solidão", pois também assim se teceu a filigrana da sua vida, a qual sem a devassidão literária ou factual de Don Juan, bem conheceu o sofrimento de não "pertencer".
É, ainda, dele o poema onde se lamenta porque:

"não encontrei paz na minha juventude,
[paz] junto daquela que se oferece sem angustia,
obedecendo [obstinado] a um destino que quer que ela se ofereça toda inteira."
E com a mesma veemência ferida, diz também noutro lugar:

"Encontrando-me nos confins da luz,
deitado sobre todas as ilhas da noite,
eu repetia de naufrágio em naufrágio esta palavra,
a mais terrível de todas:
aqui!"


Mas certo, porém, é que o seu é um caminho de conversão, de redescoberta de outro sabor de tudo. Habitua-o a inquietação por uma experiência outra de existir, de co-existir com a verdade de si mesmo, sem censuras e mutilações do seu eu aspirando a

Ser puro, perfeitamente idêntico à tua necessidade

sabendo

Que só o amor tornado morada permanece.

e depois numa afirmação nas antípodas de qualquer versão de pretensioso iluminismo

Oh meu Pai, o meu mal não tem o nome de ignorância mas é o esquecimento!
Reconduz o teu filho às fontes da Memória!

E, na verdade, assim lhe foi dado, tal como nos diz um outro poema seu:

a primavera regressou das suas longínquas viagens.
E ela traz-nos a paz do coração!

Enfim, faço notar que com este pequeno percurso por entre outros textos de Oscar Milosz, para além do "Miguel Mañara" pretendi apenas aflorar, se não adentrar-me, no coração do autor que na cor da carne doída vivera o que nos haveria de traduzir e oferecer em "Miguel Mañara". Texto este que não sendo autobiográfico certamente não deixa de ser indiciador de uma vida longamente desligada do amor. Pois que a grande passagem de Mañara, da vida, e da via, devoradora, mastigando mil mulheres, até ao caminho da oferenda de si mesmo foi também a do êxodo de Oscar Milosz.

2. Sobre "D. João e a Máscara" de António Patrício

Mas, ainda dentro do capitulo que nomeei de "notícias", queria agora fazer justiça por minhas próprias mãos, ou melhor, a partir da minha voz, ao excepcional texto de António Patrício, certamente não tão morto entre nós como o "Miguel Mañara" mas, em minha opinião, pouco, ou nada, visitado pelas gentes católicas.
Certamente que traz consigo tiques da obsessão provinciana das nossas elites anticlericais do século XIX e XX que se espraiam concupiscentemente a imaginar claustros inundados de eróticas sorores Marianas. De igual modo, sublinho que António Patrício fica aquém de dizer o Único nome que nos salva. Apenas se refere a Cristo como a um perdido ideal.

Trata-se de uma prece ao Deus desconhecido de um homem que se reconhece vazio de Deus e que O desconhece vivo

Todavia, como o seu D. João é expressivo, autêntico, íntegro, livre e sagaz a percorrer os esconsos das almas, os vazios dos desencontros, a vertigem orgiástica do nada. Como é "puro" a falar da impureza.
Mais, escrito por um diplomata algo diletante, don juanista com um currículo que lhe acarretou dissabores, poeta e escritor, o D. João e a Máscara é o De Profundis do autor português. Escrito no sangue no verão de 1924, seis anos após a morte em Atenas do seu filho, também ele António. Trata-se de uma prece ao Deus desconhecido de um homem que se reconhece vazio de Deus e que O desconhece vivo.

Parece-me, com efeito, que o drama do nosso autor poderia conversar de um modo muito fecundo com o "Miguel Mañara". Na verdade, penso que alarga a perscrutação do coração humano, que vemos no primeiro quadro do texto de Oscar Milosz.
E aqui deixo algumas ilustrações ao que acabo de dizer:

Primeiro, o aceno e a suplica que D. João vai repetindo ao Mistério: "Qualquer coisa de novo... qualquer coisa. Qualquer coisa ou Alguém... Não posso mais!". Refrão este que será repetido vezes. E ainda "tenho tédio, imenso tédio, tédio. O destino boceja sobre o mundo" (pág. 39). Na mesma direcção, em ruptura com o seu mundo antigo, queixa-se D. João que "já não consegue distrair-me o risco"... [no que me pergunto, eu próprio, se esta não será uma pergunta sobre a deserção de tantas gentes católicas, hoje obcecadas com os desportos ou os turismos e sabores radicais, assumidas na vida como manobra de diversão face ao apelo viril do Mistério...].

Mas é, sobretudo, na descrição do seu próprio coração ferido, coração que derrama a sua sede na travessia da vida, que António Patrício é mais feliz:

Pergunta-lhe a sua suposta mulher, D. Elvira:
"Mesmo gelado, há uma febre em ti...
responde-lhe D. João:
Há uma febre de beijar mais fundo (...)
sou um buscador de fontes por destino; mas por mais que procure, nunca as oiço
... (pág. 41)
No mesmo sentido, a outra das suas mil mulheres pergunta D. João:
"O que tu amas em mim?
responde-lhe Helena:
"A tua sede
pergunta-lhe D. João:
Uma sede que os beijos exasperam?
replica Helena:
Uma sede a que os beijos dão mais sede (pág.78)
Ele bem sabe, D. João, que é alguém
"que toda a vida amou uma só (...)
enforquei o meu desejo em muitas tranças
...(pág. 84)

Mas atiça-o uma mesma voz:
Foi sempre poluir o teu destino; o que fizeste a tua vida toda?

Ao que D. João responde:
"ter sede, ter sede.... Um possesso de eterno, é o que eu fui sempre.
Toda a minha virtude, a minha sede
... (pág.s 100 -102)

Mas eis que tudo renasce de D. João diz:

só os olhos de perdão me fazem medo (pág. 176)
E onde quer que as almas se conheçam, é aí a piedade!


A culminar na grata certeza de que
"Até eu dou flor. Tudo dá flor (pg 191)

Enfim, talvez não andemos longe do que a liturgia da Quaresma nos faz rezar por estes dias

Senhor, Pai Santo, que amais a inocência e a restituís aos que a perderam...


Sobre a Taça e, sobretudo, o que eu dela bebo

A leitura que resgatou "Miguel Mañara" do esquecimento e lhe sublinhou a excepcionalidade já foi feita e está publicada, também em português, desde 2010. Trata-se, obviamente, do texto do padre Giussani.
Pelo que não vou repisar o que já bem conhecem.
Prossigo, porém, procurando descrever o que escorreu da leitura deste texto para a minha taça (mais à frente falarei de cálix).
Partindo do texto, permito-me fazer quatro incursões sobre temas que me parecem presentes ou afins ao texto que estou a comentar.

Primeiro:

Trata-se de um eminente drama sobre a conversão da ambição em procura!
Uso para comigo mesmo uma prática que é esta: estimar muito as palavras que comparecem nas Escrituras. Por exemplo,"liberdade", "caridade", "carne", "testemunho" e não me fixar noutras que não comparecem nos Evangelhos. Por exemplo, "exemplo" (apenas comparece uma vez em todos os santos Evangelhos!), "valores", "auto-conhecimento", "solidariedade", "ambição!", etc.

Ora, penso que ambiciona pouco quem apenas ambiciona, mesmo que diga ambicionar muito!
Ambição é uma palavra que vem do latim. Composta por "amb" (que significa por um lado e por outro lado) + verbo ir. Portanto, é uma palavra que significa etimologicamente rodear por um e outro lado.
Ora, primeiro ambiciona o sedutor capturar a sua presa. E assim o devasso Mañara. Todavia, Deus quere-o para mais. Quere-o para o que não pode ser cercado!

ambiciona pouco quem apenas ambiciona, mesmo que diga ambicionar muito

Pelo que muito mais rica é a ideia que vem incluída no verbo procurar.
"Que procurais" pergunta Jesus, não "que ambicionais?". E perguntou-o ontem a André e João, depois a Mañara, hoje, a ti, e a mim!
Antes, o que podia rodear com as minhas mãos, agora o que posso receber das mãos de um Outro. Assim, na cena dos avanços honestos de D. Miguel perante D. Jerónima: "E amais-me? Amais-me de amor recto diante dos homens?", ao que esta lhe responde "Diante de Deus", fazendo uso de um critério que liberta a subjectividade das suas próprias inseguranças.

De facto, a conversão de D. Miguel fá-lo regressar do mundo do subjectivismo o qual tem por nefasto efeito paradoxal a degradação dos sujeitos em objectos: corpos sem vocação, como máquinas eróticas, pretensamente utilizáveis em qualquer direcção presumindo-se que sem consequências pessoais e podendo-se "eutanasiá-los" quando sentidos como "coisa" inútil.
Com efeito, a tentativa de existir sem culpa e sem responsabilidade, apenas sob pulsão e emoção, sem transcendência, acarreta a frustração desse movimento - que não aceita viver cercado - que é o amor. Creio que deseducamos se pretendemos que os nossos se movam na pequena área do eu. E que os lançamos para o que é grande se assinalamos o Tu absoluto que chama.

...deseducamos se pretendemos que os nossos se movam na pequena área do eu. E que os lançamos para o que é grande se assinalamos o Tu absoluto que chama.

Segundo:

Parece-me que o texto de Milosz permite-nos prestar atenção à diferença entre o significado de uma vida honesta e de uma vida verdadeira.

Paradoxalmente diria que Miguel Mañara é nos apresentado, antes de mais, na desonestidade da sua vida. Devasso, egoísta, perdulário, beberolas, tem consigo os títulos relevantes da má vida. Todavia, desde o início é apresentado como um homem ferido pela questão da verdade, mesmo se sob palavras de desdém. Com efeito, a questão da verdade poderá "ser obscurecida e pisada, porém jamais destruída”.

"A beleza é o resplendor da verdade, afirmou Tomás de Aquino, e poderíamos acrescentar que a ofensa à beleza é a auto ironia da verdade perdida" (Ratzinger in “Porque permaneço na Igreja”). Aliás, lá para o fim do primeiro quadro o rosto roto de D. Miguel mostra-se já em demanda de alguém. E lança assim aos seus compinchas o desafio. "Continuareis a fazer troça de Deus, justamente como antes, e Mañara fará troça de vós, justamente como antes, senhores."

Ora, parece-me que o aburguesamento dos cristãos, nas travessias do final do séc XX, esse pretender um cristianismo dentro de uma vida que anseia principalmente por uma história de final feliz, fez cair a distinção necessária entre honestidade e verdade. Com efeito, a maior pretensão de honestidade poderá corresponder a uma vida sem verdade. E, pasme-se, a verdade poderá ser mais viva por entre os destroços de uma vida desonesta.

a maior pretensão de honestidade poderá corresponder a uma vida sem verdade

E vamos às palavras: honesto deriva da palavra latina honos que quer dizer prémio, ou reconhecimento público que se atribui a quem ganhou; honestos, no mundo romano, são aqueles que têm um cargo público, quer dizer, a honestidade poderá ter muito de narcísico. Muito honesta poderá ser uma vida de sucessos atrás de sucessos conseguidos com esforços individuais. E daí, não raro, o supremo orgulho que é não ter vícios, senão, e finalmente, o de não ter caridade. Pois o perfeccionismo honesto, poderá não permitir o dom de si mas apenas a degustação [palavra hoje muito impressiva] perante os outros de uma boa imagem narcísica.

Outra coisa é a verdade e os seus paradoxos!
E lembro Gomez Dávila:
"A superficialidade consiste, basicamente, no ódio às contradições da vida."
e ainda que "Toda a recta leva directamente a um inferno".


Mas cito ainda mais longamente e, no mesmo sentido, Baudelaire:
Deve-se estar sempre bêbado.
Está tudo aí: é a única questão.
(...)
é preciso que te embriagues sem trégua.
Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, a teu gosto.
Mas embriaga-te.
E se alguma vez,
sobre os degraus de um palácio,
sobre a verde relva de uma vala,
na sombria solidão de teu quarto,
tu acordas com a embriaguez já minorada ou finda,
pede ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio,
a tudo aquilo que foge,
a tudo aquilo que geme,
a tudo aquilo que gira,
a tudo aquilo que canta,
a tudo aquilo que fala,
pergunta que horas são;
e o vento, a vaga, o pássaro, o relógio, te responderão:
“É hora de te embriagares!"

E é também deste excessivo autor uma outra afirmação menos conhecida segundo a qual "é preciso eleger o caminho que desce até à salvação".
Melhor não diria um santo.

Não me espanto, portanto, que o rapaz pretensioso e ateu que foi Claudel tenha afirmado que "o primeiro brilho de verdade surgiu-me do encontro com os livros de um grande poeta, a quem devo a eterna gratidão: Arthur Rimbaud. A leitura das "Iluminations" e alguns meses depois , "Une Saison en Enfer" é um dos acontecimentos capitais na minha vida!"

O que eu quero dizer é que, por demais, a honestidade contida do narcisismo, sempre atento à selfie, joga na pequena área do eu. Ao passo que a verdade vai e vem em investidas, ganhos e perdas, choros e gratidão, perante o rosto do Tu!

E escorre-me naturalmente chegar a Stª Teresa do Menino Jesus.

Oh Face Adorável de Jesus,
Única beleza que arrebata o meu coração,
Digna-te imprimir em mim a tua divina semelhança,
para que não possas olhar a alma da tua pequena esposa
sem Te contemplares a Ti mesmo.
"

Pelo que, e defendo-me de algum mal entendido que resulte deste elogio da verdade face à honestidade, concluo com o seguinte: todos os santos são profundamente honestos. Mas, tragicamente, muitos dos honestos não querem saber para nada da santidade.

E permito-me um jogo de palavras. Mañara sempre quis beijos o que culminou na sua vida de adoração, já que esta palavra significa ir com a boca.
À Eucaristia, portanto.

Ora, é então aqui, finalmente, que chego ao tema que me foi dado comentar:
"O amor não é justo: uma leitura de Miguel de Mañara"

O que eu entendo desta afirmação (e não sigo na direcção que estabelece uma relação dialéctica entre justiça e amor) é que amar não é ser honesto à maneira dos escribas e dos fariseus mas isso, sim, ser da verdade, ao modo de Jesus, em Jesus.

amar não é ser honesto à maneira dos escribas e dos fariseus mas ser da verdade, ao modo de Jesus

Com efeito, "se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos céus." (Mt 5.20).

O amor não é auto-complacência, auto-conhecimento, ou qualquer outra versão de uma busca de auto-justificação. E é aqui que devemos recusar a suave invasão do território da fé pela suprema profanação, a saber, contrapor a Jesus que nos ensinou que "só Deus é bom" (Lc 18.19) uma amnistia internacional religiosa em que os cidadão se julgam éticos e justos. Parafraseando e parodiando a partir de S. Paulo, o justo deixa de ser aquele que viverá da fé, mas isso, sim, aquele que pronuncia o credo mínimo, a saber "eu cá tenho a minha fé", honestamente convencido de que é uma "boa pessoa".

"Oh, poderia dizer que ele era honesto, como o senhor o chama, mas para que serve a um homem ser honesto no seu culto da desonestidade?" faz Chesterton dizer ao Father Brown. Quanto a mim, se trocarmos a palavra honestidade por justiça, creio que alcançamos o mesmo resultado, a saber a denúncia dos estados confusionais em que o homem abraça uma versão da justiça que tem esse traço de grande pretensão, i.e,. o recusar-se ao Mistério.

"Um gentleman não deve nada a ninguém", dizia ainda nos seus dias cínicos outro Oscar, Wilde, "não deve nem mesmo a sua salvação..."
Pois, o Verbo veio para os seus e os seus não o receberam...(Jo 1.11)

Pelo que nada de confusões. Vejamos o grande profeta do "Miguel Mañara" para mim o personagem nomeado D. Fernando. Porque ser profeta é dizer a verdade, sempre a tempo, muitas vezes contra o tempo. E ei-lo a afirmar contundente:
"Tu não és um fidalgo, Miguel, tu és um cão!.
O teu brasão é coisa para ser pregada sobre a porta de um bordel!"

Mas não se ficam por aí as profecias do texto de Milosz. Também a voz doce da bela amada, Jerónima, se levanta para profetizar: "Sei que sois má pessoa, D. Miguel!". Palavras pouco românticas. Mas libertadoras. Palavras que convocam, porém. De tal modo que um pouco mais à frente ouviremos D. Miguel a dizer: " quem me chama? Conheço essa voz. É como se o eco do grito de nascença despertasse de improviso no coração do homem velho!"

Na verdade, eis que o protagonista se sente veraz a dizer "Mudei tanto desde o dia do nosso encontro!" E o seu credo não consiste em justificar-se. Ao abade dirá peremptório que "busca o castigo de Deus ciumento, a humildade de coração, o amor ao real".
Portanto, tudo menos a ilusão do auto-conhecimento e justificações psicologisantes.

Terceiro:

Mas queria ainda enfrentar o tema do erotismo do personagem "Miguel Mañara". Desenfreado, primeiro, castrado, depois? É que se coloca a seguinte questão: estaremos, mais uma vez, perante o modelo de sexualidade católico que apenas tem sido "lesa-mundo", gerador de frustrações, este mesmo de que é preciso recuperar face ao lapso de tempo desumano que foram os séculos de cristandade?

Bom, obviamente que tenho outro entendimento das coisas!

As Escrituras, disse Bento XVI, "opuseram-se com a maior firmeza à ideia de eros como inebriamento e subjugação da razão. Ao fazê-lo, porém, não rejeitaram o eros enquanto tal mas declararam guerra à sua subversão devastadora, porque a falsa divinização do eros priva-o da sua dignidade, desumaniza-o."

Pelo que não se esqueçam estas duas coisas, diz ainda o mesmo Bento XVI: "primeiro, entre o amor e o Divino existe alguma relação: o amor promete [e deseja] infinito. A segunda, é que o caminho para tal meta não consiste em deixar-se simplesmente subjugar pelo instinto. São necessárias purificações e amadurecimentos, que passam também pela estrada da renúncia. Isto não é rejeição do eros, não é o seu envenenamento, mas a cura em ordem à sua verdadeira grandeza (cfr. Deus Caritas Est 4-5)."

entre o amor e o Divino existe alguma relação: o amor promete [e deseja] infinito.

E assim penso que de facto tem razão Mário Cesariny quando diz "ama como a estrada começa". Com efeito, este precioso poema diz qualquer coisa em que acredito, mas ao contrário do que desdiz, com não pouco cepticismo e ironia, o seu autor: É que a estrada começa! E o eros é sobretudo isso, desejo de plenitude, saudade de encontro havido, a haver? E regresso. lá onde o mistério da estrada começa!

Aliás, por mais estranho e paradoxal os poetas mais adversários da memória católica da vida sabem-no. Lembro, por exemplo, Herberto Hélder (in Poemacto), mas de novo lendo-o e confrontando-o eu próprio e desejando ir para além do seu ensimesmamento.

“Minha cabeça estremece com todo o esquecimento.
Eu procuro dizer como tudo é outra coisa.
Falo, penso.
Sonho sobre os tremendos ossos dos pés.
É sempre uma outra coisa, uma
Só coisa coberta de nomes.
E a morte passa de boca em boca
Com leve saliva,
Com o terror que há sempre
No fundo informulado de uma vida
(…)
Por vezes tudo se ilumina.
Por vezes sangra e canta.
(…)"


Quarto:

Bom, aqui chegado, e depois de ter feito o elogio da embriaguez de vida, e dos caminhos afundados onde esta tantas vezes brota com mais autenticidade do que na contenção "ética" da existência, queria agora dizer que sou dos que crêem que não é preciso pecar para ser humano e que para ter grande experiência de vida não é preciso juntar na contabilidade amorosa seis duquesas, não sei quantas marquesas e por aí afora como se diz do velho Mañara.

A questão não é simples e na existência das pessoas, sobretudo numa perspectiva de cultura romântica, ter experiência de vida é ter experiência de pecado. Pelo que o desumano seria a inocência sexual entendida como inocuidade humana, tédio e, sobretudo, fracasso!

Nesse sentido lembro a frase da carta aos Hebreus segundo a qual Cristo foi "igual a nós em tudo excepto no pecado" (Heb 4.15) a qual recebe todo o desprezo e riso dos cínicos bem como a ansiedade e pânico dos colonizados pelo mundanismo para quem ser humano é ser muito “viajado”.

E para melhor me explicar recorro a um grande mestre dos estudos sobre a carta aos Hebreus:
"A ausência de todo o pecado na vida de Cristo, longe de diminuir a sua solidariedade connosco, reforça-a, porque o pecado ameaça a solidariedade. Cada pecado é um acto de egoísmo que causa divisão. É quanto o mostra a experiência e quanto atesta a Escritura. Depois do primeiro pecado, o homem acusou a mulher, a mulher acusou a serpente. Depois da idolatria do vitelo de oiro, Aarão, que tinha dado ao povo indicação de como proceder [pecaminosamente], nega toda a responsabilidade e acusa o mesmo povo (Ex 32.2-5;22). A autêntica solidariedade com os pecadores não consiste em tornar-se cúmplice da sua culpa, que agrava a situação. Consiste, isso sim, no assumir com ele generosamente as consequências desastrosas do pecado. E foi esta a generosidade que Cristo teve. Tomou sobre si a sorte dos homens pecadores, o suplício dos piores crimes, de modo que nenhum culpado pudesse sofrer uma pena sem encontrar, junto à sua própria cruz, aquela de Jesus crucificado."


A autêntica solidariedade com os pecadores não consiste em tornar-se cúmplice da sua culpa, que agrava a situação. Consiste, isso sim, no assumir com ele generosamente as consequências desastrosas do pecado. E foi esta a generosidade que Cristo teve.

E lembro ainda um dos formidáveis diálogos do filme sobre Duns Scoto, quando este didacticamente pergunta aos seus alunos qualquer coisa que está muito enraizada na média da opinião pública, a saber:

se não se pode pecar, não se é livre?

E acrescenta:

Eu sei que é uma questão delicada. Traz consigo basicamente o mesmo raciocínio da serpente no jardim do Éden do livro do Génesis. Mas o que nos diz ao invés a autoridade dos nossos padres? Anselmo, por exemplo, ensina que “o poder pecar não é liberdade, nem parte da liberdade”. O pecar não tem nada a haver com a liberdade em si. Este é o erro que cometeram pensando que pecar fosse uma expressão de liberdade.


Então alguém lhe pergunta:

E por que é que Deus nos daria a liberdade?

ao que lhe replica o beato da Imaculada:

Deus deu-nos a liberdade não para ofendê-Lo e arruinarmo-nos com o pecado, mas para amarmo-Lo e santificar-nos. Entenderam? O pecado não é expressão de verdadeira liberdade, mas o seu contrário!.


Citações e Vizinhança

A terminar queria ainda citar as Escrituras chegando ao que entendo ser a palavra mais expressiva dos Evangelhos quanto à inteireza do eros cristão, aquele que avassalou a vida do Mañara santo. Com efeito, parece-me que a declaração mais ousada do ponto de vista do desejo, vinda da boca do Senhor, são aquelas palavras acerca do seu corpo e da sua alma e de todo o seu ser que sempre ouvimos quando participamos na Missa.

“Tomai, comei e bebei:
isto é o Meu corpo, e o Meu sangue
entregue por vós,
para uma nova e eterna aliança,
fazei isto em memória de mim.”

Eis-nos, parece-me, chegados ao âmago do eros cristão quando este se encontra em aliança com a ágape (palavra preferida por João para se referir ao amor de caridade) – Cf. Deus Caritas Est 7. Aquele eros que veremos em Mañara convertido em potência de bem, em caridade, portanto.

Estamos, na verdade, no auge do desejo, esse de comungar o corpo e o sangue d'Aquele que desde o "Cântico dos Cânticos" dissemos desejar beijar .
"Que ele (o Pai), me beije (o Filho), com um beijo da sua boca (o Espírito Santo)".
Beijo esse de que nos unge a Eucaristia recebida em piedade, devoção, adoração!

"Voltemos lá, diria Agostinho, àquela unção de Cristo, àquela unção que nos ensina interiormente o que não podemos exprimir com palavras; e já que, por agora, vos é impossível a visão, esforçai-vos por desejá-la. Porque — e a afirmação é espantosa —toda a vida dum bom cristão é um santo desejo.
[Sim] desejemos, irmãos, porque havemos de ser saciados, Vede como Paulo aumenta o desejo da sua alma, para se tornar capaz de receber o que há-de vir: Não é que eu tenha já chegado à meta, ou já tenha atingido a perfeição. Não penso, irmãos, que já tenha conseguido o prémio.

Que fazes então nesta vida, se ainda não conseguiste o prémio? Só penso numa coisa: esquecendo o que fica para trás e avançando para a frente, continuo a correr para a meta, em vista do prémio a que Deus, lá do alto, me chama em Cristo Jesus.
Esta é [então], a nossa vida: exercitarmo-nos pelo desejo. Pois bem: tanto mais eficaz será este santo desejo, quanto mais nos libertarmos dos desejos que em nós suscita o amor do mundo.

Obviamente que tudo isto o descubro, percebo e vivo, junto de gente que soltou e viveu o eros a galope, à carga (e muitas vezes conto aos amigos do Vale de Acór a história do camponês que vê surgir a seu lado um rapaz pendurado, agarrado às crinas de um cavalo. Onde vais? pergunta-lhe o primeiro, "Pergunta ao cavalo..." responde o agarrado...).
Nesse sentido noto a perversão da experiência erótica no modo como se podem inverter na vida as palavras da consagração que acabei de referir:
Ninguém me toma e bebe o que quer que seja de meu.
Sou eu que agarro e injecto no meu sangue carente e cansado a censura do meu próprio eros, num perpétuo isolamento que será envenenado contra vós todos e contra mim, também para ampliação do desespero. Faço isto para fugir da memória de mim.

Donde disse que estava a terminar, o que afinal, parece ser verdade.
Mas não sem regressar ao texto. E fixo-me no quinto quadro do texto de Milosz quando estando Miguel Mañara reconciliado com a sua fé, acontece, à sua palavra, um milagre: o miserável e paralítico Johanes Mendelez deita fora as muletas e anda.
Ora, eis-nos face a face ao triunfo do amor.
Céu e terra, carne e santidade, desejo e consolação, tantas vezes andam dualisticamente e dicotomicamente divorciados.
Um milagre é sempre um ocasião de encontro e reconciliação: entre o que Deus pode fazer e acontecer na carne!
Ora, grande milagre é o erótico sacrifício de consagração do Mañara no final da obra. Final esse que encontra um modo de viver o desejo não longe de Deus. Porque o que define um sacrifico não é a renúncia (também os desportistas e os que fazem doutoramento os tem), não é a dor (que também os pais de família todos os dias vivem) mas a abolição da distância e separação, a comunhão, portanto! E trata-se de uma verdadeira vocação, quer dizer de qualquer coisa que se pode viver porque Deus o suscita e sustém. “Levanta-te e anda”, diz Manãra ao paralítico, como antes o Senhor lhe oferecera e permitira a ele mesmo também.

o que define um sacrifico não é a renúncia, não é a dor mas a abolição da distância e separação, a comunhão, portanto!

Pois Deus chama-nos sózinhos. Nas horas nocturnas, mesma aquelas que decorrem na travessia diurna dos dias, a consciência é exposta ao vazio da existência própria.
Mas o Senhor salva-nos como povo.
Tantas vezes – sempre - despertando alguns para cuidar e servir o povo, todo.
Portanto, perdemo-nos isolando-nos (mesmo na versões mais subtis disso mesmo, como o são parte da maioria, público comum de egoísmos gourmet, etc) e somos libertados, quer dizer, resgatados, da nossa vã forma de existir, na comunhão.