Ser livre é ter o coração preso

No contexto do meeting de Lisboa o abade geral da ordem cisterciense, P. Mauro-Giuseppe Lepori, fez a conferência central sobre o tema "Ser livre é ter o coração preso". Eis o que disse...
P. Mauro-Giuseppe Lepori

O paradoxo cristão

Perante o tema desta edição do Meeting Lisboa, senti-me um bocado desorientado, como um músico a ter de tocar ou dirigir um concerto, mas que recebe uma partitura com as páginas fora de ordem; e o músico pergunta-se: «Por onde vou agora começar este concerto? Pela página da liberdade, pela página do coração, pela página da pertença? Como compô-las para que a grande sinfonia, que é o mistério do homem, possa ser interpretada?».

Com efeito, este tema demonstra o paradoxo cristão, que consegue fazer coincidir aquilo que parece oposto ao homem, aquilo que lhe parece estar em contradição. Tudo, no cristianismo, é harmonia dos opostos, porque o cristianismo se fundamenta na coincidência impossível, impensável, inconcebível e, para muitos, inaceitável, entre Deus e o homem, entre o Criador e a criatura; em Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem; em Cristo, no qual tudo foi criado e que vem viver para dentro da criação, que vem ser “feito carne”, criado como homem, sem perder o seu ser “gerado, não criado, consubstancial ao Pai”.

São João, no Prólogo do seu Evangelho, continua a repetir-se, e a voltar a manifestar este paradoxo: “A luz brilhou nas trevas... Ele estava no mundo e por Ele o mundo veio à existência... E o Verbo se fez carne!” (Jo1,5.10.14).

Não reduzir o mistério do homem

Agora, o mistério que em Cristo não pode ser reduzido, o mistério de Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, que n’Ele continua a permanecer mistério ativo, presente, irredutível, vem a refletir-se como mistério no seu Corpo que é a Igreja e, num certo sentido, torna-se ainda mais sensível como mistério dentro da humanidade da Igreja. É um grande mistério Deus ter-se tornado homem! Mas que mistério ainda mais incrível a sua presença e ação divina na humanidade eclesial, nos pecadores que o mistério torna membros do seu Corpo divino!

O mistério de Cristo, o mistério que Cristo é, reflete-se realmente no homem, o que torna a nossa humanidade uma realidade revelada a si própria pelo paradoxo que dá consigo a encarnar. E é aqui que reencontramos o nosso tema: “Ser livre é ter o coração preso”, frase que reflete na nossa humanidade, na nossa experiência humana, quotidiana, elementar, o mistério de Cristo, que veio revelar-nos o mistério do homem.
Como lemos na Gaudium et spes: “De facto, somente no mistério do Verbo encarnado o mistério do homem encontra verdadeira luz. Por isso, Adão, o primeiro homem, era figura do segundo Adão (Rm5,14), ou seja, de Cristo Senhor. Cristo, que é o novo Adão, revelando o mistério do Pai e do seu amor, desvela também plenamente o homem ao homem e dá-lhe a conhecer a sua altíssima vocação” (Gaudium et spes, 22).

O mistério do Verbo encarnado, o Verbo encarnado como mistério irredutível, reflete-se no homem, total e ontologicamente dependente do mistério de Cristo, do qual é imagem. Isto significa que, sem a “verdadeira luz” de Cristo, sem a luz do Verbo encarnado, o homem não consegue compreender-se a si próprio, a si próprio como mistério, não consegue divisar em si o mistério e, portanto, não sabe quem é, não sabe porque é que existe, qual a sua vocação enquanto homem, não sabe a que está chamado, qual o sentido de ser homem, de viver uma vida humana, de ter um coração humano.
É por isso que só o cristianismo resolve o paradoxo da vida humana, da condição humana, do coração humano, sem censurar o paradoxo, sem ter de eliminar ou anestesiar um dos polos de tensão que o constituem, sem censurar o drama da contradição de que Cristo é sinal. Entrando no mundo humano como verdadeiro Deus e verdadeiro homem, Jesus é um sinal de contradição que resolve a contradição do humano só através da sua presença: “Ele está aqui para queda e ressurgimento de muitos em Israel e para ser sinal de contradição (...). Assim hão de se revelar os pensamentos de muitos corações» (Lc2,34-35).

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Texto integral em anexo.