O trabalho canta

Já se ouviam as últimas palavras do encontro sobre o trabalho e a obra de Millet na Tenda do Meeting, quando se começaram a ouvir, no fundo da sala, uns primeiros passos acompanhados de uma voz que parecendo solitária, era a de dezassete companheiros.
Carmo Soares Mendes

Começava a actuação de um grupo de amigos alentejanos de visita ao Meeting.

Quando fui ao portão recebê-los avistei uma camioneta que vinha cheia de malta mais velha. Acenei e recebi de volta muitos acenos: eram eles. Não os conhecia ainda, mas foi logo com um abraço que me apresentei ao Sr. Afonso, o responsável. Já estava, já nos queríamos todo o bem. Já éramos amigos. Descem do autocarro com um grande sorriso, cumprimento um por um com um belo aperto de mão e pelo nome: "Boa tarde. José António Formiga". Digo-lhes que estou muito contente por terem vindo, e respondem-me, "nós também, afinal vimos cantar-vos a nossa música". Era isto que sabia do cante, que quem o canta, canta alguma coisa que é sua, uma dor que é sua, uma alegria que é sua. Não cantam uma coisa alheia, cantam o que é seu.

"Quinta-feira da Ascensão", dia de festa, quando "as moças saem pro campo" com o seu vestido de festa, um laço no chapéu e "um raminho na mão", foi a primeira moda que nos fizeram ouvir. E foi em ambiente de festa que fomos rapidamente envoltos; principalmente no refrão, quando entram todas aquelas vozes perfiladas e enchem de música a tenda. Imagine-se quase vinte homens cantando e trajados a rigor: havia um lavrador, um feitor, um ceifeiro, um almocreve, um faniqueiro e um pastor, que dispensou o capote, pela força do calor que se fazia sentir na tenda.

"Que inveja tens tu das rosas" foi outra moda que nos cantaram. "Trabalhei enquanto pude,/ levantei a minha enxada./ Perdi no campo a saúde,/ não posso perder mais nada." "Que inveja tens tu das rosas,/ se és linda como elas são?/ A rainha das «felores»/ tratadas por tuas mãos". Lembra Millet e as notas que escrevia em alguns quadros, como aquela em que diz, «E vejo também na planície os cavalos fumegantes que trabalham; mais longe num lugar rochoso, um homem curvado de quem toda a manhã se ouviu os “ah!” e que agora procura endireitar-se um momento para retomar o fôlego.» O trabalho por si só não existe, o que existe é o homem que trabalha, a mulher que cuida das rosas, um outro que pega na enxada.

No final o Sr. Afonso contou-me comovido, "Carmo, foi das poucas vezes que nos ouviram em silêncio." Disse-lhe, "pois, é normal...". "Não, Carmo, não estavam só caladas, estavam em silêncio". Era aquele silêncio próprio de quem espera alguma coisa em cada instante.

Cantar o trabalho nos dias que vivemos não é óbvio. Hoje ouvimos cantar quem está alegre ou quem está triste e exprime a sua dor na música. Mas como o trabalho hoje em dia não é nem alegre nem triste, é uma coisa que tenho de fazer para depois ir à minha vidinha, quem poderá cantar o trabalho?

"O trabalho é o local onde se encontra a vida", contava o professor Henrique Leitão na conferência que precedeu o cante. E dizia ainda, "o trabalho diz de nós próprios. A constituição de nós mesmos. As figuras não estão distraídas." E acrescentava, "O que distingue a posição livre é o oposto da dissolução da vida, o estar espraiado, dissolvido – esse é o escravo. O movimento que caracteriza o homem livre é o movimento sobre si próprio. São figuras que se têm a si próprias livres".

Assim é, que até se poderá dizer que estar sentado numa plateia ouvindo cantar foi trabalho, enquanto posição livre de quem espera. A partir daqui, tudo é razoável.