Coisas importantes saíram de questões desoladoras
Sem poder sair de casa comecei a rezar mais, a lavar as paredes de azulejos, e a montar maquetes com kits que montei e pintei, em vez de ouvir a toda a hora notícias contraditórias sobre a epidemia, ou de jogar playstation.O Padre Carrón, nos Exercícios da Fraternidade, começa por nos alertar para “a ilusão de controlarmos a realidade, de planearmos a nossa vida” – ilusão que se desmoronou violentamente com a invasão do covid 19.
Repetimos constantemente que a nossa vida está nas mãos de Deus, mas não cedemos à tentação de nos esquecermos dessa Verdade, e avançarmos com evidência no nosso planeamento.
Nos primeiros meses de 2020, março, abril e maio, todos os grandes projetos para esses meses e os seguintes: as Missões de São Tomás no Alvito, a visita de estudo à Alemanha, a ida à China com os alunos de mandarim, ficaram sem efeito. Impossível sair de Lisboa, ficar em casa era obrigatório, nem sequer à Missa podia ir.
Sem os meus amigos, a minha família, sem trabalhar, sem poder cuidar dos 1.000 alunos que tanto precisam de atenção, e dos professores que precisam da minha alegria – percebi finalmente durante esses meses que o Senhor me concedeu o dom extraordinário da alegria - que fazer?
Mas como não sou dado a lamentar as minhas tristezas, comecei a rezar mais, a lavar as paredes de azulejos, e a montar maquetes referentes à Segunda Guerra Mundial, com kits que montei e pintei -, em vez de ouvir a toda a hora notícias contraditórias sobre a epidemia, ou de jogar playstation.
O Padre Carron interpela-nos: “Tenho esperança? Ou tenho vergonha de pensar se tenho esperança? O que me pode ajudar a ter esperança?” Humildemente, na fragilidade da minha fé, nunca deixei de ter esperança.
Apesar de o Senhor me ter desiludido algumas vezes: Quando o meu pai adoeceu e morreu, quando os meus primos Luís e Francisco, tão novos, morreram repentinamente, ou quando o meu tio João adoeceu.
Mas como acredito que “os desígnios do Senhor são insondáveis”, sei que desconheço porque morreram ou adoeceram, mas que Deus tem uma razão. E que a compreenderei quando, sem o merecer, mas devido à Sua infinita misericórdia, chegar ao céu, e puder perguntar-Lhe.
O Padre Carron refere que “coisas importantes saíram de questões desoladoras”. Refletindo com amor e fé em Deus, verifico que após a morte de meu pai, que me deixou, e ao meu irmão, à minha mãe e a toda a família e amigos, completamente de rastos, um mundo novo e fascinante me foi proposto por Nosso Senhor.
A minha mãe aceitou produzir um filme em Macau, onde vivemos durante um ano. Fiz muitos amigos chineses e macaenses, aprendi os seus costumes, convencionalismos e formas de relacionamento, aprendi a falar um pouco em cantonês (chinês). Macau era uma festa, com constantes celebrações de deuses chineses, lojas que inauguravam, tudo era pretexto para panchões, dança do dragão, e música chinesa nas ruas. Um dia não aguentei mais e perguntei a minha mãe: “Mãe, descobri uma coisa incrível; nós em Portugal só temos um Deus. Eu não sabia que afinal há imensos deuses. Os chineses têm muitos deuses”. Eu tinha 11 anos. Aprendi a andar de skate, e aprendi a montar kits. E como fomos muitas vezes à China, - em qualquer aldeia ou cidade éramos bem recebidos – descobri um mundo de pobreza que muito me alertou para outras realidades.
Conheci o Padre Luís, responsável dos Jesuítas em Macau, amigo da família desde criança. Além de ser uma pessoa com uma alegria contagiante, dirigia o colégio católico chinês, e à noite percorria as ruas, recolhendo os chineses sem abrigo. Conhecia toda a gente e como falava cantonês como um verdadeiro chinês, tinha um relacionamento único com os chineses.
O Padre Carron diz-nos “O homem está sempre à espera. Tudo é uma espera. Mas só arriscando, ganha a vida”. Simeão e Ana esperavam o Messias. Não de uma forma passiva, ficando em casa, ou perdendo tempo com as pequenas inutilidades do dia a dia. Mas indo todos os dias ao Templo rezar, na certeza da espera, na certeza da Presença, que viria ao mundo para cumprir a nossa humanidade.
O covid arrasou a espera. Porque baseávamos a espera numa realidade, na nossa realidade. Com o covid, a espera ultrapassou o que poderíamos imaginar. Porque habituamo-nos à espera da Presença na Celebração da Missa, ou na Eucaristia, ou na confissão, ou no terço familiar ou comunitário, ou no Ângelus no Colégio. Tê-Lo presente, sem nada disso, parecia muito difícil.
Quando pude voltar a trabalhar em finais de maio, no princípio de junho um problema físico, obrigou-me a parar, durante 11 meses. As dores eram tao terríveis, que não conseguia levantar-me da cama.
O Padre Carron interroga-nos se “com o covid ficamos prisioneiros ou ficamos livres atrás das grades”.
Eu sinto que fiquei mais livre para encontrar Cristo, não por causa do covid, mas deitado, a sofrer, pensando em Jesus constantemente, pedindo Lhe e a Nossa Senhora que me ajudassem. Acho que se não tivesse Cristo comigo, seria como estar morto. Lembrei-me muitas vezes do Papa Francisco “Não desperdices este tempo covid”. O Padre Carron aconselha nos transformar o sacrifício e a dor em amor ao Senhor”. Tentei. Acho que fiquei bastante aquém.
Mas os sinais do amor de Deus, os seus cuidados comigo foram bem visíveis, nestes meses de verão e após verão, até ser operado em dezembro, e na longa recuperação em 2021. O Padre Carron lembrou-nos Jesus: “Sou Eu, não tenhais medo” Não tenho medo, pois Jesus prometeu que nunca nos deixaria até o fim do mundo. E está presente, através da Igreja, mesmo que não possa lá ir, a Igreja veio até mim. O Padre Gonçalo, da minha paróquia da Penha de França, e que eu mal conhecia, veio várias vezes visitar-me, para me confessar, dar a Eucaristia, conversar e dar-me a Bênção dos Doentes. A minha prioresa Rosarinho, da minha Fraternidade, de braço partido, vinha de carro com os pais aos domingos, dar-me a comunhão. A Escola de Comunidade da Sofia e da minha prima Maria, enriqueceram-me e fortaleceram-me durante este período difícil. E o Terço da Fraternidade ao sábado, em que revia os meus fraternos, e me unia a eles na oração, na fé, na fraternidade.
E que melhor exemplo e amizade posso ter na minha vida, que a do meu querido tio João, que supera todas as suas limitações físicas, com a sua infinita fé em Deus, com o seu amor e caridade ao próximo, com a sua Esperança na vida eterna? Todo este ano de covid e imobilidade física aproximou-me ainda mais do meu tio, pois tive várias dezenas de consultas e exames, fisioterapia trissemanal. E aproveitei, sempre que obrigatoriamente saía de casa, para o visitar. A sua santa e paciente amizade fortalece-me.
O Padre Carron diz-nos “é preciso viver intensamente o real, sempre com serenidade, sem censurar nada”. Serenidade feita de fé, que por vezes faltou aos apóstolos, que ainda não reconheciam o Divino em Jesus. E ainda: “A inércia não ajuda à fé cristã”. Lembro-me que quando cheguei ao Maio, ilha de Cabo Verde, na equipe de voluntários do GásNova, todos nos afligimos, porque o contentor com bens para a população e comida e água para a equipa, não tinha chegado. (só chegou várias semanas depois). Saí da nossa casa, e encontrei muitas crianças e jovens que nos esperavam. Conversámos, e convidaram-me para ir pescar com eles. Lembrei-me logo dos Apóstolos. Fizeram uma cana de pesca para mim: uma tábua, com fio de pesca preso e um anzol. E todas as manhãs, às cinco da manhã, ia pescar peixes enormes, o nosso alimento a todas as refeições. Eu só pensava: “O Senhor providencia”.
Se Tenho Esperança, Padre Carron?
Sim, tenho Esperança. Tenho Esperança nesta vida e na vida eterna.
Tenho Esperança num mundo melhor, em que os nossos corações se condoam e ajudem quem mais precisa, em gestos de amor e fraternidade.
Tenho Esperança que a pandemia termine, e que o Senhor receba aqueles que partiram.
Tenho esperança que o meu primo João e eu fiquemos curados, e o meu tio não sofra muito. Tenho esperança que o meu irmão Miguel e sua família consigam entrar em Portugal.
Tenho Esperança que um dia todo o Ser Humano adore Deus acima de todas as coisas, ame o próximo como a si mesmo, e venere e ame a Mãe de Deus, nossa mãe e Rainha de Portugal. Tenho Esperança de os encontrar a todos no Ceu.
Kiko, Lisboa