De mãos vazias e pés descalços
O covid deixou marca. No entanto, entre o medo e a desorientação, permanece «o desejo de que o retorno à normalidade seja algo novo e útil».Chama-me muito a atenção ver tanta gente que reaparece no cenário da vida, do trabalho, da escola e das cidades meio desorientada, desinteressada e afastada, desmotivada, com a cabeça nas nuvens, alegremente desnorteada e com a vaga suspeita de uma “coisa” que pode dominar malignamente a tudo e a todos; ainda mais os jovens que não querem voltar à escola, depois de terem recusado até as aulas on-line… Sim, tudo isso me chamou a atenção.
Vi muitas situações assim nestes meses, ao trabalhar com os jovens de O Imprevisto em Pésaro, uma comunidade de recuperação para jovens com transtornos e dependências químicas, e também com muitas outras pessoas, dezenas de histórias com que me cruzo diariamente.
No entanto, olhando bem, dá para ver, dá para intuir também o desejo de que este retorno seja realmente algo novo, interessante e útil. Para os jovens e para os adultos. Deseja-se que este recomeço, levando em conta tudo o que aconteceu, seja também um novo ímpeto.
Para isso, é necessário um compromisso constante na tentativa de compreender quem somos, para onde vamos, como e com quem vamos, para fazer o quê.
Precisamos de cuidar de nós mesmos em virtude da espera que vivemos e esperámos – mesmo inconscientemente – nos longos meses passados em isolamento. Podemos alcançar o “muito” só na medida em que o tivermos esperado!
Nisto, a nós cabe-nos lutar pela consciência daquilo que realmente importa, daquilo que realmente conta: cabe-nos a nós olhar, conquistar e admirar o eu. A pessoa, a pessoa de cada um de nós. O facto mais único e excepcional é certamente a pessoa de cada um de nós.
A força não há de vir só dos remédios, das técnicas e metodologias de saúde, políticas ou sociais: a força vem da pessoa. E quanta confiança infinita precisamos saber depositar no coração de cada pessoa!
Quando eu era pequeno – reinava o 68 – costumavam repetir o seguinte slogan: «Para que um pobre deixe de ser pobre, é preciso ensiná-lo a pescar, em vez de lhe dar o peixe». Mas com o passar do tempo fomos percebendo que nem isso era suficiente. Para pescar (isto é, para estudar, para trabalhar, para formar uma família…) é preciso ter uma grande razão, um objetivo fascinante, senão não se tem a energia suficiente e necessária.
Por exemplo, quantos pais nos procuram e, depois de exporem todos os muitos e dolorosos problemas que sofrem com os seus filhos, concluem o relatório com esta frase: «Mais do que as drogas, do que os desvios e a delinquência, do que a prisão ou a automutilação… o que mais nos dói, o que mais nos dilacera e abate é ver que nosso filho não se levanta de manhã, é não conseguir tirá-lo da cama».
É preciso uma sacudidela, um sobressalto, uma vibração, um respiro, uma luz que nos ilumine: a verdadeira necessidade é a de um olhar que dê força. Sim, somos necessitados, somos uns coitados, não precisamos de nos envergonhar em admiti-lo. Estamos de mãos vazias e pés descalços.
Não podemos pensar que damos conta sozinhos contra tudo e contra todos, que vivemos para sermos capazes, forte e sagazes, que temos de olhar para as nossas capacidades, para o que sabemos e conseguimos fazer. Mais do que isso, temos de implorar a honra de ver aquilo que é mais vivo, novo e forte na realidade. Precisamos olhar, aguçar a vista tendo a invocação, o grito por um caminho indicado, por um guia que nos acompanhe para que o nosso coração possa despertar.
Silvio Cattarina, "L’imprevisto", Pésaro