Um caminho que dura a vida inteira

Este ano era para não haver peregrinação a Fátima, em virtude da pandemia. No entanto, algo inesperado fez com que um grupo de nove peregrinos portugueses fizesse a peregrinação em nome de todos.

Este ano era para não haver peregrinação. Em virtude da pandemia pensámos que não havia condições para realizar a 31ª edição da nossa peregrinação. Mas aconteceu algo inesperado que nos fez mudar de ideias. Quatro universitários finalistas brasileiros, percebendo que a necessidade de agradecer a Nossa Senhora pelo curso feito não podia ficar de quarentena, resolveram fazer uma peregrinação a pé ao Santuário de Nossa Senhora da Aparecida. Também eles realizaram que não podiam ir todos, mas decidiram ira alguns em nome de todos. Então, usando os meios digitais que a tecnologia hoje em dia disponibiliza, estes jovens permitiram que a sua peregrinação fosse seguida por centenas de jovens de vários países da América Latina, tornado esta peregrinação não só uma possibilidade para os quatro que caminharam como também para aqueles que os acompanharam. O comovente testemunho destes quatro jovens fez nascer um nós uma pergunta semelhante à dos discípulos de Emaús: "não nos mordia cá dentro o coração sempre que nos lembrávamos que este ano não ia haver peregrinação?". Foi assim que mudámos de ideias e decidimos seguir o seu exemplo.

A decisão de fazermos a peregrinação em nome de todos encontrou logo uma grande receptividade quer da parte do grupo de nove peregrinos convidados, que disseram logo que sim a uma proposta que implicava alterar rapidamente planos de vida pessoal e profissional, quer da parte de tantos amigos que se comoveram com a iniciativa, nomeadamente de quem nos ofereceu três refeições (para nove peregrinos), de quem nos ofereceu alojamento para duas noites, de quem nos deu as t-shirts e de outros que se ofereceram para nos levar as refeições.

Estas graças fizeram-nos perceber com mais clareza que ir a Fátima a pé para pedir o fim da pandemia era pouco. Para nós era claro que não bastava pedir coisas a Deus, era preciso pedir o próprio Deus, que Ele viesse às nossas vidas, que Ele se tornasse mais familiar às nossas vidas. Percebemos ainda que a própria conversão não é o pedido que se faz apenas numa peregrinação, mas um pedido que se faz durante uma vida inteira. Por isso, escolhemos como tema da peregrinação a conversão como um caminho que dura a vida inteira, inspirados no capítulo quarto do livro O Brilho dos Olhos.

Esta consciência fez-nos ter tanta certeza no caminho que íamos fazer que nos lançámos à estrada no dia 8 de Outubro, sem a mínima preocupação com o facto de que poderíamos não conseguir entrar no Santuário devido às medidas de contenção da pandemia que tinham sido adoptadas.

A beleza de uma peregrinação é que é uma parábola da vida, no sentido de que o nosso pedido e o nosso desejo precisa de ser continuamente despertado por factos e acontecimentos que o Mistério "semeia" continuamente ao longo do nosso caminho. O primeiro facto foi algo que nos demos conta logo no início da peregrinação: não podíamos ser mais diferentes uns dos outros (em interesses, maneiras de ser, percursos e estados de vida), e contudo caminhávamos juntos. Era tão claro que a nossa unidade não nascia das nossas afinidades ou da nossa vontade mas de Alguém maior do que nós que nos punha juntos.

Como se isso não bastasse, logo no primeiro almoço da peregrinação encontrámos uma ex-peregrina que nos veio servir o almoço e que nos disse com os olhos a brilhar que decidiu pedir o baptismo. Mais uma vez, para nos arrancar da nossa distracção, o Senhor colocava à nossa frente alguém que na idade adulta descobriu Jesus Cristo como significado da própria vida. É verdade que histórias como estas têm acontecido ao longo destes trinta anos de peregrinações (gente que se converte, que se aproxima dos sacramentos; namorados que decidiram casar-se na peregrinação), mas, sempre que acontece uma nova, ficamos sempre desarmados.

Todos os dias o Senhor escolhia uma maneira diferente de nos arrancar do nada em que frequentemente caíamos. Por exemplo, um grupo de camponeses que, vendo-nos passar com a cruz(1), tiram logo o chapéu em sinal de reverência, ou uma senhora que, sem nos conhecer de lado nenhum, nos dá dinheiro para comprarmos uma vela e acendermos pelas suas intenções quando chegássemos a Fátima. Estes acontecimentos faziam-nos perguntar "o que é que os outros vêem em nós que nós não vemos?". Era evidente que as pessoas, ao ver-nos, reconheciam os traços inconfundíveis de uma Presença que caminhava connosco.

Até os contratempos eram ocasião para vê-l'O em acção. Houve um dia em que o sacerdote que vinha de Lisboa para celebrar missa ficou a meio caminho com o carro avariado. Já nos tínhamos resignado à ideia de que íamos ficar sem sacramentos quando nos surge do nada um diácono permanente que se oferece para nos fazer uma Celebração da Palavra.

Também nos comovia o número crescente de pessoas que nos acompanhavam através da página do Facebook(2), não tanto pelos comentários que faziam mas por participarem connosco em alguns dos gestos que fazíamos, nomeadamente a recitação do terço ou na escuta de uma palestra.

É claro que todas estas coisas belas que o Senhor fazia acontecer na nossa peregrinação teriam caído em saco roto se não tivessem sido acompanhadas por um trabalho contínuo. De facto, a oração das laudes, a recitação do terço, a hora de silêncio, a escola de comunidade(3), os serões, permitiram que todos estes acontecimentos nos tocassem e nos preparassem para a chegada a Fátima, para esse encontro tão desejado com a Mãe de Deus.

Ao fim de cinco dias de caminhada chegámos a Fátima com o coração de tal modo cheio que estávamos certos de que, ou íamos conseguir entrar no Santuário, ou Nossa Senhora nos ia dar forças para suportar o sacrifício de não poder entrar. Quando parecia que já nada nos poderia surpreender, acontece o inesperado. Não só conseguimos entrar como tivemos a graça de transportar o andor na procissão das velas! Mais uma vez fizemos a experiência de uma super-abundância de graça que nos deixou rendidos.



Talvez o mais belo sinal de que a peregrinação foi uma coisa grande que nos aconteceu foi que durante a procissão do adeus não estávamos saudosisticamente com pena por a peregrinação ter acabado, mas cheios de vontade de retomar a grande peregrinação da vida, esse caminho que dura a vida inteira.

Ricardo Saldanha




(1) Como ajuda ao nosso caminho, a abrir o cortejo, há sempre uma cruz bem visível levada pelo peregrino mais adiantado
(2) Criámos esta página para que aqueles que não puderam ir conseguissem acompanhar a peregrinação https://www.facebook.com/Um-caminho-que-dura-a-vida-inteira-101013571769597
(3) Catequese que os adultos e universitários de Comunhão e Libertação fazem regularmente.