Enche-nos o coração

O nosso grupo de fraternidade faz caritativa mensalmente, ajudando as Irmãs Missionárias da Caridade, de Setúbal.

Muitos dos miúdos são deficientes profundos e a sua maioria tem mobilidade reduzida. Apesar das Irmãs terem muitos voluntários que as ajudam, sair da casa com os jovens, implica ter mesmo um grupo alargado de voluntários, porque logisticamente é difícil conseguir levá-los a passear. Por isso as Irmãs e as crianças contam sempre que durante a nossa caritativa os levemos a dar um passeio.
No mês passado assim estava previsto, mas o nosso grupo de voluntários estava reduzido. As primeiras comunhões de muitos dos filhos dos nossos casais impediam a sua ida. A primeira possibilidade era adiarmos e agendarmos para outro dia, mas não era justo para aquelas crianças. Fomos, mas com um segundo plano no pensamento: ficamos na casa, cantamos uns cânticos e jogamos uns jogos.
Durante o caminho até Setúbal íamos comentando entre nós: “estão algumas nuvens, até já choveu de manhã, é mesmo melhor ficarmos em casa com as crianças”, etc. etc.
Quando chegámos, as Irmãs já tinham os miúdos vestidos e prontos para saírem e os levarmos a passear! E nós, com a nossa “carapaça”, ainda questionámos: “mas Irmã, e se começa a chover?” A Irmã, consciente da importância do que é para eles terem uma tarde diferente, e que é muito mais importante que uns pingos da chuva, disse-nos “abriguem-nos e levem impermeáveis!”
Sempre ouvimos e reconhecemos como verdadeiro que seguir quem é uma testemunha e vai mais à frente no caminho da santidade é o mais importante, pelo que a realidade impunha-se. Arriscámos seguir e começámos a levá-los a passear, mas ainda assim com pouco entusiasmo. Como éramos poucos, tivemos que descer a ladeira que acede à casa faseadamente, cadeirinha a cadeirinha.
Decidimos mudar o itinerário que costumamos fazer. Em vez de irmos por um passeio junto ao rio até uma pequena praia, fomos ver o rio mas cujo destino era um parque infantil. Conseguimos pôr alguns dos miúdos num pequeno escorrega e depois voltar para casa.
No regresso, cruzámo-nos numa rua com um casal que vinha passear com a sua filha pequena e dois cães. Os miúdos ficaram receosos porque a rua era estreita e os cães ao avistarem-nos, começaram a abanar a cauda cheios de vontade de brincar: eram dois labradores pretos.
Nós começamos a dizer aos miúdos que os cães não faziam mal, e o casal também muito atento e empenhado começou a interagir com os miúdos e a explicar que os cães eram amigos e estavam treinados.
Diziam para um dos nossos rapazes: “Diz ao cão para se sentar que ele se senta.” E assim foi. A surpresa foi total para uma criança ver um cão a obedecer-lhe pela primeira vez. Todos se riam. O Cláudio, que pouco fala e não consegue dominar os seus movimentos, fez um cão sentar-se!
Depois, o dono do cão perguntou: “Querem dar de comer aos cães? Estendam a mão.” Coloca um biscoito na mão dos rapazes e das raparigas e os cães docilmente lambem-lhes as mãos e comem. Alegria total. A Eleana diz “cão não é mau.”
A filha do casal, que inicialmente estava receosa ao ver as nossas crianças especiais e agarradas às cadeiras de rodas, aos poucos larga a perna do pai e também interage com os nossos miúdos.
Explicámos ao casal que vimos mensalmente às Irmãs e passeamos com estas crianças. E o casal diz-nos: “Nós também podemos passar a vir com vocês? Da próxima vez digam-nos quando vêm porque queremos vir convosco.” Trocamos contactos e a promessa de nos voltarmos a ver.
Voltámos para as Irmãs com o coração cheio de alegria. Depois de lhes darmos o jantar e lhes vestirmos o pijama, o Cláudio tentava contar à Irmã que tinha dado de comer a um cão e eu confirmei, “sim Irmã, o cão comeu na mão do Cláudio”.
“Não acreditamos na possibilidade de resgate, numa mão que nos levanta e de um abraço que nos salva, que nos inunda de um amor infinito. (…) Quando se experimenta o abraço da Misericórdia, quando nos deixamos abraçar, quando nos comovemos: então a vida pode mudar, porque procuramos responder a este dom imenso e imprevisto, que aos olhos humanos pode mesmo parecer “injusto”, de superabundante que é”, como nos disse o Papa Francisco.
Ou, como ouvimos nos Exercícios “Se ouvirmos as testemunhas com coração atento e nos abrirmos aos sinais com que o Senhor não cessa de autenticar as Suas testemunhas e de atestar-se a si mesmo, então saberemos que Ele verdadeiramente ressuscitou; Ele é o Vivente. A Ele nos entregamos, sabemos que assim caminhamos pela estrada justa. É isto o que é perturbador, naquele tempo tal como hoje.”
Uma Igreja em saída, que comove e se deixa comover por uma Beleza desarmada.
Não são as nossas capacidades ou os nossos limites que nos definem, mas sim a promessa que o Senhor tem para nós, o cêntuplo a cada dia. Esta caritativa ficará para sempre na memória de todos, encheu-nos o coração de alegria.
Miguel, Lisboa