
O terço de um agnóstico
O “precioso significado” do manifesto de CL na carta do cientista espanholCaros amigos de CL
a leitura do texto “A esperança da paz” comoveu-me especialmente pelo significado, precioso sobretudo nos tempos atuais, das duas propostas que apresenta: oração e testemunho.
Poderia parecer chocante que um “cientista agnóstico” – se assim se pode definir –dê valor a um gesto aparentemente tão “sectário” e “inútil” como rezar o Terço. A Palestina sangra, e os cristãos não têm nada de melhor para fazer do que disparar um Terço, rezando Ave-Marias?
No entanto, eu quero vir em defesa destes Terços. Quando eu era pequeno, rezava-se o Terço em casa da minha avó e, todos os verões, na nossa casa de praia, eu participava no ritual. Os meus primos ficavam impacientes e muitas vezes escapavam, mas eu gostava da serenidade daquele momento, quase sempre pouco antes do pôr do sol, com as vozes a repetirem uma fórmula mágica repleta de bonitas palavras. Também sentia, com a intuição de uma criança de dez anos que se apercebe da vida com novos olhos, que aquele ritual contribuía para tornar o mundo melhor.
Nestes dias, somos testemunhas de um enorme ruído, de uma explosão de barulho e fúria que emula, metaforicamente, as bombas que caem sobre Gaza. Assistimos a declarações, manifestações, boicotes, protestos e todo o tipo de ações, se não violentas, muitas vezes à beira da histeria. É difícil escapar à impressão de que aqueles que tanto protestam e reivindicam estão, no fundo, a interpretar um papel em que são eles os protagonistas, e não aqueles que sofrem em Gaza.
Demasiadas pedras lançadas pelos meios de comunicação social – sem que ninguém se aperceba de que só quem está sem pecado deveria atirar a primeira pedra –, demasiado teatro de marionetas, demasiada raiva e demasiados preconceitos, com a desculpa de defender uma boa causa. Perante tudo isto, rezar o Terço – recolhimento, paz e a possibilidade de canalizar a nossa dor e a nossa solidariedade numa súplica – parece uma boa opção.
Haverá quem defenda que a oração só faz sentido se acreditarmos que alguém nos ouve. Eu creio que não é assim. Para começar, o cristão, quando reza, baseia-se numa esperança, numa fé, numa promessa, não numa certeza absoluta. E o agnóstico, por sua vez, tem a oportunidade de formular essa oração por si mesmo, por aqueles que o acompanham, por aqueles que sofrem, ou por aquele mesmo Deus de cuja presença não se apercebe, exceto quando olha os seus filhos nos olhos.
Há alguns anos, eu e a minha família participámos numa excursão de verão organizada pelo Javier Prades e outros amigos, durante a qual subimos até ao paraíso do céu azul dos Pirenéus, enquanto os nossos joelhos desciam ao inferno. A caminhada começou com uma hora de silêncio, sem ordens precisas, mas com uma clara sugestão de oração, pois rezar é, acima de tudo, olhar para dentro de nós mesmos. No dia seguinte, participámos numa bonita Missa ao ar livre, que me comoveu, bem como à minha mulher e ao meu filho, que me acompanhavam. Um ritual, sim, uma simples (simples?) repetição de gestos e palavras, um homem que levanta os braços para o céu segurando um pedaço de pão ázimo e pronuncia uma fórmula mágica. Os meus amigos cristãos acreditam que este ato transforma a substância do pão e do vinho. Eu não chego a tanto, mas a minha alma sentia-se mais leve no final da missa.
Hoje, lendo “A esperança da paz”, lembrei-me daquela manhã, daquele céu azul e daquelas orações silenciosas, e não posso deixar de oferecer também as minhas, para que os sofrimentos na Terra Santa acabem o mais depressa possível.
Há algum tempo, o Javier Prades pediu-me para rezar uma Ave-Maria para ajudar a sua mãe a recuperar de uma cirurgia grave. Eu objetei que talvez a oração de um agnóstico não tivesse valor. Ele respondeu: vale o dobro.
Envio-vos um forte abraço.
(Este texto foi escrito antes da entrada em vigor do cessar-fogo em Gaza).