Um detalhes do “Menino Jesus das mãos” de Pinturicchio

Natal: um calor que amolece os corações endurecidos

Davide Prosperi escreve ao jornal Corriere della Sera: com o mistério da Encarnação, o Destino faz-se companhia humana. Para todos.
Davide Prosperi - Presidente da Fraternidade de CL

Caro diretor,

numa entrevista recente ao Corriere, Lorenzo Jovanotti disse a certa altura, comentando a canção Imagine de John Lennon: «Um mundo sem religião seria pior, pois a fé é a coisa mais humana em nós. […] O ponto não é libertarmo-nos das religiões; é libertarmo-nos». E mais adiante: a Igreja é «minha casa». Nisto, Jovanotti descreve uma experiência que é também a minha. Mas sobretudo expressou uma posição revolucionária em relação ao pensamento comum.

As suas palavras levantam interrogações que, ao meu ver, dizem respeito a todos: em que sentido a fé pode libertar-nos? E de que modo é que a Igreja, isto é, uma realidade humana composta de pessoas limitadas e frágeis como todos, pode ser lugar de verdadeira libertação? Parece só um conto de fadas, ou um absurdo. Há porém um dado inegável: todos têm o desejo de ser realmente livres. Livres daquele sentimento de não serem nada, de serem números casuais perdidos numa massa indistinta; um sentimento que nem a expansão de uma liberdade baseada nos direitos e na tecnologia é capaz de aplacar.

Assim, damos por nós a suprimir este desejo com distrações várias, imersos numa cultura que faz de tudo para favorecê-las. E então? Escreve Italo Calvino, referindo-se àquela espécie de “inferno” que costuma ser o dia a dia: «Há dois modos de não o sofrermos. O primeiro torna-se fácil para muita gente: aceitar o inferno e tornar-se parte dele a ponto de já não o ver. O segundo é arriscado e exige uma atenção e uma aprendizagem contínuas: tentar e saber reconhecer quem e o quê, no meio do inferno, não é inferno, e fazê-lo viver, e dar-lhe espaço».

Aparentemente, perante a multiplicação de guerras e de episódios de intolerância e violência, perante a aridez que costuma prevalecer nos nossos dias, surge a tentação de nos conformarmos ao primeiro modo. A não ser que, no meio do inferno, haja realmente algo que não é inferno. Don Giussani comenta assim a frase de Calvino: «“Quem e o quê, no meio do inferno, não é inferno”. Isto aconteceu! […] o Destino, o nosso Destino, tornou-se Presença. Mas Presença como pai, mãe, irmão, amigo, como - enquanto caminhávamos – um inesperado companheiro de caminho. Um companheiro de caminho: Emanuel, o Deus conosco! Isto aconteceu!» Num momento preciso da história, aconteceu algo novo que mudou tudo. Contudo, sem aparentemente mudar nada.

Eis o aspecto verdadeiramente “revolucionário” do Natal. Com efeito, o que é que um menino deitado numa manjedoura pode mudar? Por mais que nos esforcemos por obscurecer seu significado, esta ontinua a ser a festa que une todos, crentes e ateus. Quase inconscientemente, todos sentem o estranho calor paradoxal que emana daquele recém-nascido deitado ao frio. Um calor que amolece os corações endurecidos, que une e reconcilia, devolvendo a esperança. Não creio que seja um acaso que enhamos tendência a festejar o Natal com os nossos entes queridos. É precisamente no Natal, diante de um Deus menino que dorme nos braços de sua mãe, que redescobrimos o poder – que até os nossos frágeis corpos têm – de nos dizermos uns aos outros aquilo que é mais essencial, trocando as únicas palavras que realmente libertam: és amado. Don Giussani dizia que «é preciso olhar para a família como o exemplo mais impressionante da Encarnação».

Através da pequenez aparente da nossa humanidade, continua a passar o calor da companhia de Deus à nossa vida: pai, mãe, irmão, amigo. Dante faz alusão a tudo isso ao seu modo, no XXX Canto do Purgatório: «Já via, do novo dia ante o retorno, / a parte oriental toda rosada / corar, do azul do céu sereno adorno; / e a face do Sol nasceu velada / tanto, que pelo efeito dos vapores, / sustentá-la podia minha mirada». Assim como a intensidade ofuscante da luz do sol se torna suportável ao amanhecer, graças aos “vapores rosados” que naquele momento a “temperam”, também o amor divino se torna apreensível, perceptível, através do “rosa” da nossa carne, isto é, por meio de uma companhia humana. Não há anúncio mais paradoxal e, ao mesmo tempo, mais razoável. E eu dou por mim a dizer, com humilde gratidão, juntamente com tantos outros amigos, que esta companhia guiada pelo Papa, a Igreja, «é minha casa». Com o desejo de dar-lhe espaço, oferecendo-a a todos.