O sectarismo e o valor do outro
Passou o calor do momento, mas a essência do problema subsiste. A morte de Odair Moniz e os acontecimentos subsequentes trouxeram à nossa porta uma questão que aflige a generalidade do mundo ocidentalÉ ainda agora difícil olhar de frente para a violência daqueles dias em Lisboa. Não foram só tiros disparados e um corpo no chão, como nas séries televisivas a que entregamos o nosso descanso. Não foi um efeito pirotécnico especial, o homem em chamas a fugir do autocarro que conduzia. A morte não é banal, muito menos uma morte intempestiva. Alguém morreu para pais que podíamos ser nós, para filhos que podiam ser os nossos; o vazio angustiante de ter perdido alguém com quem se dividia a vida, que como que arranca metade do corpo, da memória e da esperança, podia ter-nos acontecido a nós. E o terrível infortúnio de matar alguém comporta todo esse peso. Do mesmo modo as marcas das queimaduras — que não desfiguram só a pele — poderiam ser a nós que perseguiriam para sempre.
Quem morreu, quem sofre, nomeadamente por causa da violência alheia, é-nos próximo, se queremos ser plenamente humanos. Não é — não pode ser — uma questão de nós e os outros, de “bons” e de “maus”, como numa brincadeira infantil, em que nos contentamos em partilhar a dor dos do grupo a que pertencemos e a maldizer — ou agredir — os do grupo que não é o nosso. Essa bipartição simplista em que categorizamos as nossas relações sociais e políticas não explicam nem constroem a sociedade em que queremos viver, nem a sociedade em que, de algum modo, ainda vivemos.
Portugal tem, desde há muito, e até há bem pouco tempo, uma cultura inclusiva, uma cultura que soube aprender da diferença (o Patriarca de Lisboa recordava isso mesmo na nota que escreveu a propósito). É historicamente apanágio dos portugueses — pelo menos da maior parte dos portugueses — perceber o outro, diferente de mim por raça ou religião, como positivo, como um bem, para mim — o que é um dos aspectos determinantes do discurso de S. Paulo. Não é a imigração recente (também de países mais afluentes que o nosso), resultante do acolhimento que sabemos proporcionar a outras nacionalidades, sinal disso? — vestígios de uma mundividência cristã de que, possivelmente, se esqueceu a raiz, o que os torna gradualmente mais inoperantes.
O problema actual não é, então, principalmente, um problema de injustiça social. É um problema de sectarismo.
Há uma justiça maior do que “olho por olho e dente por dente”; fazer o outro pagar pelo mal que me fez não acaba com esse mal, antes o continua e multiplica. Algures será necessária a magnanimidade madura de quem aceita não desagravar uma falta de respeito, tendo em vista de um bem maior, para si e para os seus: exactamente a defesa daquela cultura que está na origem da sociedade que é a nossa, em que, tudo somado, há ainda liberdade, segurança e paz.
Foi uma morte dramática que deu ocasião a estes acontecimentos, mas eles desenvolveram-se porventura, mais do que como procura de justiça, como vontade de poder, procura de reconhecimento. A recorrência do assunto nos Mass Media atesta que a questão é outra, e actual. A nossa sociedade hoje parece tecer-se por meio de fracturas, entre grupos que se auto-segregam, que preferem manter-se incomunicáveis e irreconciliáveis, numa estratégia de afirmação de si por feroz contraposição aos outros. É, como se percebe, uma estratégia imatura, ineficaz — porque uma identidade sólida não se pode construír só nas margens —; e uma estratégia inadequada — porque resulta maioritariamente da importação de modelos de outras sociedades e de outros países com situações e história distintas das nossas. Como qualquer um de nós, cada um dos indivíduos que compõe os grupos que desenvolveram os acontecimentos de violência que mantiveram Lisboa em suspenso quer ver-lhe reconhecida a identidade. O seu desejo é o de todos e é verdadeiro. A sua expressão adquiriu uma forma inapropriada.
E, contudo, é preciso notá-lo, é porque se é amado que se consegue reconhecer valor no outro, apesar da sua diversidade, e abraçá-lo, sem o homologar a nós. Ora, só a consciência e a experiência de um amor radical — no fim de contas, do amor por mim de Deus, que me quer agora, tal como foi revelado em Cristo —, só um amor assim, cria as condições para amar assim (na Igreja, nas suas comunidades vivas, por graça e não sem erros, há disso experiência). Só na consciência de ser criatura — de ser filho — está a base mínima necessária para o diálogo e a reconciliação entre antagonistas.
O Cardeal Pierbattista Pizzaballa, Patriarca Latino de Jerusalém, na mensagem em que assinalava o primeiro ano do início da Guerra no Médio Oriente, lembrava que não cabe apenas aos responsáveis políticos encontrar soluções, mas “também nós temos o dever de nos empenharmos pela paz, antes de mais preservando o nosso coração de qualquer sentimento de ódio e acalentando, em vez disso, o desejo de bem para todos”.