O mundo num quarto
É possível «viver intensamente o real» em terapia intensiva, sem poder mover nada a não ser os olhos? O testemunho de Jone Carrascosa, que o padre Mauro-Giuseppe Lepori também referiu nos Exercícios da Fraternidade de CL«O que poderá ser?». Sou fisioterapeuta para doentes neurológicos há 42 anos, por isso o formigueiro que sentia, cada vez mais intenso, não me agradava nada. Enquanto esperava pelo diagnóstico, nas urgências, disse: «O que quer que seja, deixemos que Ele faça o que quer». Vendo que o meu corpo se paralisava progressivamente e muito rapidamente, decidi dizer “sim” três vezes. Foi o início da minha aventura. A síndrome de Guillain-Barré é uma doença que nos tira tudo: deglutição, mastigação, fala, respiração, até os esfíncteres, tudo.
De repente, vi-me cheia de tubos por todo o lado: «E eu, que sou?». A situação não era nada atrativa, porém compreendi, mais do que nunca, qual é a dignidade da pessoa humana, qual é a minha dignidade, porque percebi que era uma coisa que Ele me tinha dado e que dependia apenas da minha pertença a Cristo. Mesmo estando completamente paralisada, tinha uma força que me permitia dizer: «Estou assim, mas tenho uma dignidade porque Lhe pertenço». As razões vieram depois, mas aquela força, encontrei-a desde o primeiro momento. O serviço de terapia intensiva é um lugar desagradável, e recordou-me muito todo o sofrimento que vi don Giussani suportar durante a sua doença. Com o seu grande realismo, quando tinha passado um dia difícil, dizia as coisas como elas eram, e ao mesmo tempo ia sempre mais além. Pensando nele, perguntava-me: «Qual é o meu lugar agora?». Seguindo o seu realismo, rapidamente fui capaz de dizer: «A isto chama-se cruz». E lembrei-me de quando ele dizia que as circunstâncias através das quais o Senhor nos faz passar são um fator essencial da nossa vocação. A fidelidade à cruz conduzia a um conhecimento de Cristo, mas um conhecimento de Cristo que me levava a compreender e a viver muito mais a Ressurreição. Percebi-o porque comecei a experimentar a paz. Mas o que é a paz? A paz é uma satisfação afetiva que se experimenta quando se sabe que a nossa vida é sustentada com força por Outro maior do que nós. E isso estou a aprendê-lo melhor precisamente agora. Comecei também a experimentar uma letícia. Em espanhol não se usa habitualmente nesta aceção, mas é como que uma letícia duradoura, uma letícia contínua que durou os nove meses em que estive no hospital. Às vezes, até alegria. Quando a experimentei, lembrei-me do Papa Bento, que disse que a alegria, quando vem de Deus, é uma «alegria redimida», ou seja, não é apenas um sentimento, mas Alguém que te transmite aquela alegria para te indicar que Ele está presente.
Como podiam estar presentes paz, alegria e felicidade numa fraqueza extrema? Sentia-me como uma cabeça sem corpo, como era possível uma coisa destas? «Irão reconhecer-me pela alegria nos vossos rostos». Foi exatamente o que me aconteceu. Aquele período foi uma missão em silêncio, porque não podia falar, mas é impressionante como alguém em terapia intensiva pode fazer amizade apenas com os olhos. Dou apenas um exemplo. Um dia chegou um dos médicos e disse-me: «Ouve, Jone, vou contar-te o que me aconteceu. Ontem o meu professor tratou-me mal, foi horrível. Humilhou-me em público e vim para aqui cheio de ódio, mas pensei em ti e disse: a Jone tem um problema mil vezes maior do que o meu. E fiquei grato pela tua presença entre nós, porque naquele dia me fizeste viver dum modo mais humano». Mas aquele homem não se dava conta de que tinha sido Cristo a mudar-me, e, portanto, também ele tinha mudado graças à ajuda poderosa que Cristo me tinha dado: por outras palavras, tinha-nos mudado aos dois. Foi Ele que venceu em mim e venceu também nele, porque se não tivesse vencido em mim, não teria podido vencer no outro.
Durante os três meses que ali estive, todos os dias disse “sim”, e nem um único dia me passou pela cabeça: «Quero ir-me embora daqui». Não me fui embora, porque aquele era o lugar que Cristo tinha escolhido para mim e era ali que queria responder-lhe. Queria responder-lhe e então aquele lugar, que ainda assim continuava a ser desagradável, passou a ser querido para mim. Como é que isso aconteceu? Não mo perguntem, não sei como é que aconteceu, mas sei Quem foi.
O valor do instante. Quando o meu marido, Carras, se tornou responsável do movimento em Espanha, começou a estar ocupado com encontros e viagens, e eu estava de acordo: ali, imobilizada, dei-me conta de que aquilo que ele fazia e aquilo que eu não fazia tinham o mesmo valor, porque as duas coisas respondiam ao misterioso plano que o Pai tinha decidido para cada um de nós. Isso fez-me perceber que uma coisa aparentemente banal para o mundo tem um valor imenso quando é oferecida; com aquele instante oferecido, o Senhor pode fazer muitas coisas, porque no Seu desígnio usa aquilo que faz para o objetivo que quer, e tudo aquilo que Ele quer é bom.
Claro, às vezes também lutei com Deus, precisamente por causa da familiaridade que tenho com Ele, porque lhe oferecia aquilo que estava a acontecer e me parecia que Ele tomava mais do que aquilo que lhe oferecia. E durante algum tempo, deixei de lhe oferecer. Mas não estava tranquila. Até que cedi e confiei de novo. Disse: tenho de confiar, porque se não o faço, fecho as portas a um novo conhecimento, fecho as portas! E Ele quer continuar a manifestar-se!
Assim, decidi abandonar-me. Então comecei a perceber, o meu horizonte alargou-se, como se estivesse em plena atividade no mundo. Aquilo que estava a viver era para o mundo! Eu estava ali… imobilizada, mas estava em plena atividade, era útil! Tinha um horizonte grande como o mundo. Cada percurso, cada mudança, cada coisa que queremos fazer, começa num momento chave, que é aquele em que nos levantamos de manhã, com tudo aquilo que temos de fazer! Naquele momento podemos ter a cabeça cheia de coisas, e podem ser boas, mas geralmente são coisas sobre as quais tenho o controlo, das quais penso ser responsável, e não é verdade. É uma ilusão de autonomia. Pensamos que podemos fazê-lo, mas não é possível. Eu e o meu marido éramos anárquicos e quando conhecemos a fé, ao princípio, havia uma frase no Evangelho que me fazia sentir mal, quando Cristo diz: «Sem mim, não podeis fazer nada». «E eu?», perguntava-me. «Sem mim não podeis fazer nada». Como o percebo agora!
O silêncio é uma posição do coração, por isso uma pessoa levanta-se de manhã, olha para o céu e diz: ofereço-te todo o meu dia porque Tu me fizeste, e quero que todas as coisas que farei hoje sejam por Ti. Depois podemo-nos esquecer, podemo-nos distrair, podemos fazer mil coisas. Mas o silêncio é uma posição do coração que diz: «Tu és o meu Hóspede».
Um dia perguntei a Giussani: «Tens sempre presente a presença de Cristo a cada momento?». E ele respondeu-me: «Não. Muitas vezes saio de casa, ofereço-lhe tudo, e depois passo doze horas a fazer até coisas boas, volto para casa, entro no meu quarto, e dou-me conta da espiral em que entrei, de todo o tempo que passei fora de mim. Porque estar sem Ele significa estar fora de mim». E acrescentou: «Mas quando volto para casa, tomo consciência d’Ele e digo: agora, Senhor, recupero aquilo que esqueci por tantas horas, agora posso ficar em paz porque vi a Tua salvação que preparaste diante de todos os povos».