O início como origem permanente. um testemunho
Notas da intervenção de Pier Alberto Bertazzi nos Exercícios de verão dos Memores Domini. La Thuile, 27 de julho de 2014Há algum tempo, alguns amigos de comunidades da região de Milão convidaram-me para as suas férias e pediram-me para apresentar um dos livros que nos foram recomendados para o verão, ou seja, as entrevistas que don Giussani deu a Robi Ronza, primeiro em 1976 e depois em 1986, e que foram republicados nos últimos meses pela Bur (Il movimento di Comunione e Liberazione 1954-1986. Conversazioni con Robi Ronza, Bur, Milão 2014). Parece que isto lhes foi útil e alguém - infelizmente! – contou ao Carrón, que me pediu que vos propusesse o que aprendi, como ensinamento para a minha vida, a partir desses episódios que, em boa parte, vivi diretamente. Tentarei fazê-lo tendo presente também aquilo que Aldo Baldini, o nosso grande amigo Memor Domini recentemente desaparecido, disse sobre a nossa história e sobre as palavras que a exprimem: dizia que são "sagradas".
A história
A primeira palavra é "história". A nossa história, a história que vivi. Pensemos na carta da abadessa, que o Carrón nos leu ontem à noite: ela não teria sabido viver o seu presente se não estivesse constantemente a imergir, como se fosse uma espécie de húmus, nas raízes e na história que a levou até onde está agora. Ao ler Luigi Giussani: a sua vida, todos esbarrámos naquela afirmação da sua autoria, que Carrón retomou na introdução ao livro de Ronza: «Para mim - dizia don Giussani - a história é tudo; aprendi com a história» (Il movimento di Comunione e Liberazione 1954-1986, op. cit., p. II). Isto seria suficiente para compreender como regressar ao já que se viveu. Não é como folhear um diário, mas é realmente uma oportunidade de recuperar quem se é, a identidade.
Gostaria de o explicitar com uma citação do Papa Francisco, que numa recente entrevista ao jornal La Vanguardia, de Barcelona, falou precisamente sobre o passado e o hoje: «Para mim, a grande revolução [e revolução significa a mudança cuja necessidade o homem sente, a mudança que a sociedade e eu precisamos] é ir às raízes, reconhecê-las e ver o que essas raízes têm a dizer ao dia de hoje. Não há contradição entre ser revolucionário e ir às raízes». O ponto de partida do "revolucionário" autêntico não é uma imagem que tem previamente, mas sim as suas raízes. «Mais ainda - continua o Papa Francisco -, creio que a maneira de fazer verdadeiras mudanças é a identidade. Nunca se pode dar um passo na vida se não começar por trás, se não sei de onde venho, que nome tenho, qual é o meu nome cultural ou religioso" («A grande revolução é ir às raízes», entrevista de H. Cymerman, republicada no L'Osservatore Romano, 13 de junho de 2014). É a identidade que tenho que me torna capaz de viver e construir o novo na minha vida e na sociedade a que pertenço. É a identidade que vivo que me torna verdadeiramente capaz de contribuir para responder ao desejo que marca a vida de todos.
Apercebi-me que para mim, especificamente, a questão significava apropriar-me - e acrescentaria, finalmente - da vida que vivi. Já pensava nisso quando lia Luigi Giussani: a sua vida, e quando prestava atenção a quantas vezes o Carrón recupera passagens da nossa história passada e os juízos com que Giussani nos ajudou a olhá-las e a compreendê-las. O que significa ter vivido uma vida? Guardar um diário com memórias do que se fez? Qual é o sentido de ter vivido uma vida? Que sentido tem, se não representa algo para mim agora? A alternativa seria fazer turismo como as pessoas que andam por aí a passear para depois ter fotografias para mostrar aos amigos. Meu Deus! Não posso reduzir a minha vida às lembranças do que vivi, com ou sem fotografias. Tem de ser alguma coisa que responda agora à pergunta que tenho, como homem, como alguém que está a viver este tempo, esta história; e então, ao pensar também neste meu testemunho de hoje, disse para comigo: «No fim de contas, estou feliz por ter de falar sobre estas coisas, porque esta é provavelmente a ocasião para me apropriar do que já vivi». Esta história é minha, mas só porque é a origem da minha identidade agora. Lembrei-me da imagem que todos conhecemos do Educar é um risco, da mochila, da tradição que um jovem recebeu e que coloca diante dos olhos para verificar se e como o ajuda a enfrentar a sua vida; aos 70 anos, ainda é como se tivéssemos que pegar no que nos aconteceu, no que nos foi dado e colocá-lo finalmente diante dos nossos olhos, abrir a nossa mochila e dizer: «É isto que hoje me faz ser eu próprio?». É bom ter esta pergunta diante dos olhos.
O início como origem
O segundo ponto que gostaria de abordar é a questão do início, porque nestas entrevistas, bem como no livro sobre a sua vida, refiro-me ao livro de Savorana, don Giussani fala precisamente sobre o início da vida do movimento; e é muito bonito porque, pela forma como fala, compreende-se, pelo menos pareceu-me compreender, que ele entende o início como uma origem; não como "pontapé de saída", mas como origem, como fonte viva e permanente, «fonte viva»: lembram-se de São Bernardo, de Dante? E isto é muito importante, para mim foi: compreender como o início em que participamos é para nós a origem de algo que ou é verdadeiro hoje ou então nunca terá começado. O facto de esse início ser meu não se produz por uma longa carreira que se tenha feito, até com algum cargo e responsabilidade; eu participo nesse início, não porque estive lá - apesar de eu lá ter estado, amigos; eu estava lá! Não é por isso que este início é interessante para mim; só é interessante se estiver vivo agora, aliás, de algum modo, se nascer para mim hoje.
Vocês sabem bem como aconteceu este início ou podem ler sobre isso. Gostaria apenas de recordar uma expressão que don Giussani usou para o descrever numa entrevista em 1979 – está no suplemento da Tracce n. 2/2010 (De que vida nasce Comunhão e Libertação, entrevista a Luigi Giussani, organizado por Giorgio Sarco, maio de 1979) -, quando ele diz que o início que define o que é o CL é a intuição do cristianismo como um acontecimento de vida, "vírgula", como história. E também descreve como lhe aconteceu esse início; é daqui que surge a imagem do início como origem: «Recordar esta intuição a nascer em mim é despertar uma das mais belas memórias da minha vida». E aqui volta a dizer em poucas linhas o que vocês já sabem, já leram no livro de Savorana e noutros textos, mas permitam-me retomá-la: «Uma das mais belas memórias da minha vida», porque esta intuição «rigorosamente [...] floresceu e tornou-se consciente quando li e compreendi pela primeira vez com verdadeira inteligência o início do Evangelho de São João: "O Verbo fez-Se carne”. Ainda me lembro de como o meu professor no seminário, o padre Gaetano Corti nos explicava essa passagem, dizendo que a pedra angular da realidade e o centro da vida das pessoas e do mundo se tinha tornado, em Cristo, uma presença encontrável para cada um de nós. Nessa altura eu lia Leopardi com muito gosto» (De que vida nasce Comunhão e Libertação, op. cit., p. 3), e isto, entre outras coisas, é algo que deixa um certo mundo laico um pouco zangado quando descobre que amamos Leopardi e que até foi um elemento essencial da experiência de don Giussani, porque não compreendem que estamos a falar da resposta ao meu problema humano; não é uma das religiões, não é uma das culturas, não é uma associação, provavelmente a melhor. Mas a única coisa que nos interessa é que Cristo seja a resposta à verdade da minha exigência como homem. E então percebe-se porque é que Leopardi foi tão importante na vida de don Giussani e que se refira a si mesmo assim: vejam bem, eu que estava ali apaixonado por Leopardi, dominado por esta grandeza, a verdade da pergunta humana que parecia infinita, que parecia não ter resposta e dou por mim diante da resposta! Começou a partir daí. A grandeza da pergunta sobre a minha humanidade que se torna encontrável, que encontra satisfação em Alguém que está vivo. «A Beleza que se fez carne, a Verdade que se fez carne, a Justiça que se fez carne estão entre nós, são o Verbo de Deus, são Jesus Cristo». (ibid., p. 4). O grito supremo do homem como Leopardi o expressou, e como don Giussani entendeu essa expressão, encontra aqui plena correspondência.
Uma pessoa dá-se conta no presente que isto é verdade, que este início corresponde à origem de alguma coisa e não apenas ao “pontapé de saída”; todos nós vimos alguns vídeos em que don Giussani fala sobre Leopardi e sobre este episódio: pensem nisso por um momento e digam-me se o que ele conta não é a mesma coisa que está a acontecer naquele preciso momento. O início que aconteceu torna-se a origem de algo que acontece. Tendo em conta este início como origem, compreende-se a grandeza da forma muito simples como don Giussani relata o nascimento da Gioventù Studentesca (GS) [nt: o grupo de jovens liceais que veio a dar origem a Comunhão e Libertação]: fazer surgir e propor o cristianismo nos seus elementos essenciais. E qual é a essência do cristianismo? «É o anúncio de Cristo: este é o centro de toda a vida do homem e da história [eis o início no seminário de Venegono]. E isto vive-se estando juntos, uns com os outros, vivendo uma vida de comunidade porque Cristo continua na história dentro do sinal da grande comunidade que é a Igreja, e em relação à qual comunidades particulares são uma espécie de mão que acaricia, que não é a pessoa, mas ao mesmo tempo é a pessoa na concretização do seu gesto. [...] Começámos assim: a falar de Cristo" (Il movimento di Comunione e Liberazione 1954-1986, op. cit., p.24)
Mas quem era Cristo? Quem é Cristo de quem se começou a falar e que quem encontrava don Giussani e aqueles jovens na época, e ao longo da história do movimento, descobriram como a possibilidade de resposta à grandeza, talvez desconhecida, do seu desejo? Por isso, «começámos assim: a falar de Cristo; tentando enfrentar todos os problemas a partir de um ponto de vista cristão, do que nos parecia ser o ponto de vista da palavra de Cristo autenticada pela tradição e pelo magistério eclesiástico" (ibid.). Foi um início muito simples, mas com uma potência assustadora, percebem? Porque Cristo era reconhecido como a resposta à grandeza do desejo que nos constitui e que, de outra forma, seria intratável.
O início tem um significado na minha vida se é uma origem para mim hoje. Giussani recordou-o também em 2002, com uma frase de São Gregório de Nissa: «Nunca faltará espaço para aqueles que correm em direção ao Senhor. [...] Aquele que ascende nunca pára, vai de início em início, segundo inícios que nunca acabam» (cfr. Gregorio di Nissa, Omelie sul Cantico dei Cantici, V e VIII, Città Nuova, Roma 1988, pp. 142,201); e comentou-o assim: «O caminho em que cada um está é um início que nunca termina. Para viver esse caminho, então, a genialidade que domina o espaço é o pedido, que domina os espaços do nosso tempo e os espaços do nosso coração. Esperemos que estes inícios, estas recuperações contínuas nunca cessem» ("Da inizio in inizio", Tracce, n. 10/2002, p. 11).
O caminho
O terceiro ponto é o caminho, sobre o qual gostaria de sublinhar a grande e permanente preocupação - digo isto num sentido positivo, como quem cuida atenciosamente de um aspeto – que don Giussani sempre nos mostrou e que ressurgiu ao percorrer novamente esta história: o livro das entrevistas é inteiramente atravessado pelo apelo contínuo que don Giussani faz falando precisamente nos momentos em que o movimento nasce, colapsa, recupera, comete erros, se espalha por todo o mundo, a chamada de atenção «à lealdade e fidelidade à origem». Mas como?! Poder-se-ia pensar: estamos a espalhar-nos por todo o lado, o movimento cresce, toda a gente está contente! No entanto, existe este fio condutor imprescindível: a sua preocupação contínua, mas em relação a quê? Expressa-o em duas linhas, na página 162 do livro de Ronza: «A coisa que mais temo [di-lo num momento de difusão do movimento] é a adesão à proposta de CL vivida de forma rígida e esquemática, ao ponto de impedir a sua função essencial: que consiste em ser um instrumento para o crescimento da pessoa e para a expressão plena de toda a sua humanidade». É este o apelo! É essa a preocupação! Percebe-se bem que uma preocupação expressa nestes termos não pode ser dirigida a um movimento entendido como organização ou associação: é dirigida a nós, mas no sentido de cada um de nós. Ou o movimento, a minha experiência de movimento é isto ou não tem originalidade - eu ia dizer: não faz sentido. Ou é isto ou é tudo tempo desperdiçado. Para don Giussani, o movimento é o instrumento para o crescimento da pessoa e para a expressão plena de toda a sua humanidade.
Pessoalmente, estou convencido de que este é o trabalho em que o padre Julián nos tem guiado com inteligência, com uma constância e uma paixão que me surpreendem sempre. Aí redescubro precisamente a recuperação dessa preocupação constante de don Giussani, porque a questão não era dar continuidade, de uma forma ou de outra, à coisa que começou; antes era necessário que cada dia iniciasse novamente para cada um, isto é, que fosse a origem da própria vida, e por isso o seu apelo era contínuo. Não somos uma organização, porque aquilo que encontramos é a possibilidade de sermos nós mesmos, a possibilidade do humano para nós e para todos. Eu achava que esta preocupação tinha a ver sobretudo com o desastre de ‘68 (sobre o qual depois direi algumas palavras). Mas ao reler estas entrevistas, fiquei realmente surpreendido ao reparar que a preocupação que don Giussani tinha manifestado imediatamente após esse momento, tinha permanecido constante durante toda a vida do movimento. E não estou a pensar só nestas entrevistas, mas também em todas as Equipes dos universitários; no fundo, esta é a contínua chamada de atenção que don Giussani faz.
E hoje ainda é assim: uma preocupação contínua e premente de que o movimento seja para cada um de nós a própria experiência de viver. O que encontrámos, parece-me que posso dizer isto, é verdade, muda-me e pode mudar o mundo se a experiência que eu faço estiver presente aqui e agora, e não se organizar um determinado projeto que é preciso realizar. Se é um ponto de partida pelo qual posso começar agora, ao qual posso recorrer agora. Foi muito importante para mim reparar que esta preocupação tem sido verdadeiramente contínua na nossa história. Por outro lado, foi importante compreender que até uma realidade religiosa forte e bem fundada pode transformar-se num formalismo. Um exemplo? A vida cristã nos anos 50, quando a experiência de GS começou, e a reação que don Giussani teve ao captar com extrema clareza que, para muitos cristãos, Cristo se tinha tornado algo que não se assemelhava nem de perto nem de longe ao que lhe tinham ensinado no seminário. Nem à experiência que fazia. E o que era o cristianismo, a vida cristã nos anos 50, quando eram todos católicos? Algum dos mais velhos talvez ainda se lembre. Vejam como é que don Giussani descreve a situação: «O que mais me impressionava era que eram quase todos batizados [eram quase todos “celinos”, digo eu], muitos deles iam à igreja todos os domingos [os Memores Domini todas os dias de manhã ou ao fim do dia, digo eu], mas era como se o cristianismo não tivesse espaço ao longo dos seus dias, como se pertencesse a outro nível da existência». Será que este juízo não nos diz respeito? Tentei dar uma vista de olhos ao meu dia, à minha presença em casa. Se mais alguém quiser fazer o mesmo, talvez lhe possa ser útil. «Mas, ao longo do seu dia, era como se o cristianismo não tivesse espaço, como se pertencesse a outro nível da existência. Um nível que não tinha nada a ver com a vida e todas as suas urgências mais significativas; com a conceção e o sentimento da realidade; com a necessidade de ajuizar, de tornar claro o que é que enriquece e faz com que o homem se torne mais humano, e que lhe permite construir a sua personalidade como centro de relações. A fé não tinha nada a ver com todas estas realidades; portanto, na prática, não tinha a ver com nada que fosse efetivamente relevante para a vida da pessoa» (Il movimento di Comunione e Liberazione 1954-1986, op. cit., p. 23).
E nós? Provavelmente o risco que don Giussani vislumbrou antecipadamente na realidade cristã dos anos 50 poderá ser, em algum aspeto, o risco que nós vivemos agora. Disse isto a alguns amigos: «Pensem bem, eu, “celino” histórico (se no CL existissem senadores, ter-me-iam nomeado senador de certeza), sou Memor Domini, rezo as orações quase sempre à hora certa, etc, etc, e ainda assim estas palavras de don Giussani são válidas também para mim». E quando percebi isto, não fiquei de rastos, aliás, senti-me quase renovado, porque trata-se de descobrir que se pode recomeçar, que a origem está presente. Por isso reforço a minha sincera gratidão a Carrón, porque – talvez eu tenha percebido mal, mas acho que não, nunca lhe perguntei - na minha opinião, é neste trabalho que ele nos está a guiar...
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