Chile. A realidade grita-te. A espera e os ciganos
O encontro com uma mãe cigana, a desconfiança, os problemas. E aquela «flor imprevisível». Cristina Galeano é uma médica de família numa zona rural, entre campesinos e nómadasE a Mania, nunca mais falaste com ela? «Não, mudaram-se para o norte, a 900 quilómetros daqui. As mulheres ciganas não têm telefone. Mas a prima dela conta-me tudo. Sei que está bem. A miúda está bem. E eu faço-as saber que estou à espera delas, sempre». Afinal de contas, a diferença está toda aí, nessa espera que lembra uma amizade à primeira vista impossível. Mas que acontece, está ali, como algumas flores capazes de furar até a terra seca deste extremo do Chile.
De vez em quando veem-se dessas flores lindas, entre os campos áridos do parque nacional Pan de Azucar. É uma aldeia de camponeses a quinze minutos de La Serena, cidade costeira. Cristina Galeano, 29 anos, casada com o Gabriel e mãe de um filho pequeno, trabalha aqui: médica de família, num programa estatal de auxílio às zonas rurais. Os seus pacientes? Campesinos e gitanos: os ciganos, aqui, vão e vêm. E a Mania era uma deles: 19 anos, uma filha de 15 meses com uma úlcera na boca. Apresentou-se no ambulatório como costumam fazer os ciganos, sempre de passagem num ambiente que consideram hostil: desconfiada, desafiadora.
«A criança estava mal alimentada, não tinha boletim de vacinas, nunca tinha ido a uma consulta», conta a Cristina. «E a mãe só queria resolver o problema da boca, porque lhe doía. Iam-se embora dois dias depois». O protocolo impunha que avisassem a assistente social, e a Cristina assim o fez. E depois abriram um procedimento jurídico, como mandam as regras. «Mas a mim, porém, isso não bastava. Não podíamos tratar essa mulher só pelos seus erros».
Foi assim que a história tomou um rumo inesperado. A Cristina falou de novo com ela: disse-lhe que tinha certeza de que ela queria ser uma boa mãe, e só perguntou se podia ajudá-la. «Ela olhou-me, surpreendida. Deixou de se defender. Aos poucos, foi-se abrindo. Eu liguei para uma colega minha da cidade para onde elas iam, para que a esperasse. A Mania prometeu que levaria a filha às consultas de controlo. Percebeu que podia confiar». Dias depois, a Cristina vê chegar ao ambulatório uma rapariga com um recém-nascido: «Era parente da Mania, queria que o víssemos. Depois outra jovem, grávida… No fim, acabaram por nos convidar para ir visitar os seus idosos. E alguns começaram a fazer tratamentos».
Ali está a flor! Inesperada. A Cristina ficou tão tocada que a ofereceu a todos, algum tempo depois, durante uma assembleia por videoconferência com Julián Carrón. Falou sobre a Mania, sobre o seu trabalho. Das dificuldades «diante da dor que vejo: inunda-me um sentimento de insuficiência». E de perguntas que ardem, porque «a fé faz-me sentir mais esta dor, não posso ficar indiferente. Às vezes parece-me que para meus colegas, não católicos, tudo é mais fácil».
Dali nasceu um diálogo maravilhoso, sobre envolver-se («mas será uma desgraça não ficar indiferente, Cristina? Porque eu, se estivesse doente, queria ser tratado por alguém para quem eu conto…») e sobre a fé: «É o que não te deixa ficar indiferente. Mas é preciso fazer um caminho, porque com o teu limite não consegues resolver tudo. Nem mesmo Jesus curou todos os doentes. Porque veio para outra coisa: para nos mostrar que não estamos sozinhos com o nosso nada e a nossa impotência».
E esse diálogo serviu para alguma coisa? «Sim, tornou tudo mais meu», responde hoje a Cristina. «Fez com que eu me desse conta da verdadeira dimensão das exigências, as minhas e as dos meus pacientes. O Senhor sabe por que põe na minha frente uma pessoa e não outra. Sabe do que precisa a minha vida e a do outro. Só temos de Lhe responder».
A Cristina é médica há três anos e meio. Diz que foi parar ali quase por acaso, aliás, «por uma intuição. Quando comecei os estudos, não sabia o que me esperava. Gostava das matérias científicas, de tudo aquilo. Apercebi-me aos poucos de que a medicina tem em si muita ciência, mas também muita humanidade. Aí comecei a gostar de verdade. E isso aconteceu na mesma época em que conheci o Movimento».
Aquela amizade intuída aos 13 anos, quando frequentava uma paróquia de Santiago dirigida pelos padres da Fraternidade São Carlos, e aprofundada depois – quando nos anos de faculdade uma amiga a convidou para os encontros de CL – mudou-lhe a vida e o olhar. «Tirou-me o medo», diz. «Naquela época, o meu avô estava muito doente. A minha mãe tomava conta dele e eu substituía-a: à noite revezávamos turnos, de dia eu ia para a faculdade. Mas estava assustada, tinha medo da dor. Quando descobri que Cristo me amava também nisto, começou a revolução. Sentir-me abraçada numa coisa minha, que me parecia insuperável, fez com que eu dissesse: ok, daqui não me vou embora».
Deu-lhe também uma maneira diferente de encarar o trabalho. «Entra-se com outro olhar: esperando. E há sempre coisas que te despertam. Nós, médicos, temos uma graça: a realidade grita-nos».
Exemplos? A amizade com o «Sr.Luís», um velhinho abandonado no hospital. «Estava sozinho: não tinha filhos, a mulher tinha morrido. Não conseguia andar. Zangava-se com toda a gente, e toda a gente o tratava mal. Mas tinha uma doença interessante, do ponto de vista clínico. O meu orientador disse-me: “Vai vê-lo, mas não te envolvas demais”. Para mim, isso era impossível». Aos poucos, fomos ficando amigos. «Quando começou a reabilitação, pediu que fosse eu a segui-lo. Recomeçou a andar. E passou a rezar».
Mas foi a mesma coisa que aconteceu recentemente, com outra mulher cigana. «Tomava ansiolíticos: doses pesadas. Vinha ao ambulatório para levar o comprimido e pronto». Também com ela, aos poucos, começa um diálogo. «Apresentou-me a mãe. Contou-e o que a preocupava: tinha medo do Covid, do rumo que a vida estava a tomar… Parecem coisas pequenas. Mas da última vez que veio com a receita, pediu metade da dose. Uma pessoa dependente de remédios, percebe? Tive vontade de a abraçar. No fim de contas, esperamos todos a mesma coisa: sermos amados. Por isso precisamos de Cristo. Encontros assim ajudam-me a lutar contra o nada, a olhar com ternura para mim mesma».
E o que acontece aos pacientes, quando são olhados assim? «Acontece que voltam», diz a Cristina a sorrir: «Alguns dizem-te “obrigado”, outros não. Mas vêm procurar-te, e não é só para se tratarem. Eu sou jovem, tenho 29 anos: muitos dos pacientes têm 70-80, viveram uma vida. Mas, quando têm problemas, vêm ter comigo. Para falar».
É isso o que muda até o mundo que à volta. Naquele diálogo com Carrón, houve outro ponto que marcou a Cristina e os amigos presentes. «A assistente social também se envolveu com a Mania, como tu: queria denunciá-la. Qual é a diferença? O método. Graças ao teu olhar, nasceu uma relação com a tribo de ciganos que não podias sequer imaginar. Isso foi o que Jesus fez. O método é a atração». Não as regras.
Foi o que a Cristina viu recentemente, diante de outro facto, outro grito. «Chegou um paciente em estado grave. Enfarte. Demos-lhe oxigénio, medicação. Ele ficou consciente, mas tinha cada vez mais dificuldade em respirar. Tivemos de intubá-lo». Operação difícil, num ambulatório de campanha. «Não lhe podia prometer nada. Se corresse bem, íamos levá-lo para o hospital. Se não, morreria». As coisas ficaram feias. «Antes de o sedar, peguei-lhe na mão. Perguntei-lhe se tinha filhos ou netos. Disse-me que sim. Pedi-lhe para pensar neles, na sua casa, nalgum lugar bonito onde se sentisse bem: nós íamos ficar ao pé dele». Silêncio. A Cristina comove-se ao relembrar. «Nunca o tinha visto, não sei se era católico ou não… Mas pensei: eu, antes de morrer, queria viver a mesma certeza que conheci quando encontrei Cristo». Silêncio, mais uma vez. «Não conseguimos salvá-lo. Mas a sua última lembrança foi esta: és amado».