Erik Varden

O grito do nosso tempo

Num mundo perturbado e que foge dos dogmas, para ter esperança é preciso «prestar atenção» aos caminhos que Deus escolhe para vir ao nosso encontro. Fala Erik Varden, cisterciense, bispo na supersecularizada Noruega
Alessandra Stoppa

«O nosso tempo desconfia das palavras». Seguindo esta simples e decidida expressão de Erik Varden, citada nO brilho dos olhos de Julián Carrón, penetramos no lamento profundo, talvez não expresso, do nosso mundo perturbado: a necessidade de uma esperança encarnada, de uma «credibilidade». Varden é norueguês, tem 46 anos, é abade cisterciense e, desde outubro, Bispo de Trondheim, onde a sua ordenação episcopal é a quarta em cinco séculos, desde a Reforma protestante até hoje. Aqui, mais que em outros lugares, numa terra supersecularizada, a esperança cristã não tem alternativas: ou é «uma construção erguida à volta da sede existencial do homem», ou «corresponde efetivamente à sua sede».
Na existência de Varden a fé entrou assim, como «resposta às minhas perguntas, não como uma série de perguntas corretas a colocar». Desde o primeiro e imprevisível facto. Tinha dezasseis anos e um amor intenso pela música. Estava interessado em Gustav Mahler e comprou uma gravação de Bernstein: a segunda sinfonia, Ressurreição. O tema cristão deixava-o completamente frio: embora batizado na Igreja luterana, nunca tinha aderido à fé, pelo contrário, «era-lhe até hostil». Mas naquela noite, sozinho em casa, ao ouvir Mahler acontece qualquer coisa. Uma comoção, que «nunca teria esperado», diante das palavras do quinto movimento: Tem fé, meu coração, tu não nasceste em vão. Não viveste nem sofreste em vão. «Aquela insistência – não em vão – foi irresistível», diz: «Soube que era verdade. Naquele momento a minha consciência mudou. Graças a uma certeza, não nascida de uma emoção exagerada nem de uma fria análise, tive a consciência de não estar sozinho. Nunca mais pude duvidar da verdade daquilo que tinha encontrado, não mais do que poderia duvidar da minha existência». Teve também a certeza de que a angústia do mundo era «abraçada por uma infinita benevolência que a investe com um fim»: naquela noite, «tinha encontrado esta benevolência, reconheci-a como uma presença pessoal. Queria procurá-la, aprender o seu nome, discernir o seu aspeto».
Aquela experiência, repentina, foi o início da sua procura, até ao encontro com a Igreja católica.

Vamos partir da citação nO brilho dos olhos, tirada do seu livro A solidão quebrada: «O nosso tempo desconfia das palavras, foge dos dogmas. No entanto, conhece o significado do desejo. Deseja confusamente, sem saber o quê, a não ser a sensação de ter em si um vazio que precisa de ser preenchido». Porque lê o nosso tempo a partir do desejo?
Quando falo do desejo, refiro-me em primeiro lugar a uma sensação muito simples que todos conhecemos, quando nos acontece ao refletirmos sobre a vida ou por uma intuição surpreendente: «Isto não chega! Quero mais!». É uma experiência promissora, é a possibilidade de levantar os olhos para um porvir infinito, a possibilidade de reconhecer neste cri de coeur, neste grito do coração, um chamamento que Outro me dirige. A ponto de perguntar a este Outro: quem és? Mas para muitas pessoas a transcendência parece uma coisa fantasmagórica, um sonho. E descobrirmo-nos assim, seres finitos, constrangidos por tantas circunstâncias limitadas, e habitados por um desejo infinito, pode criar uma frustração imensa, trágica. Por isso creio que o dever imperativo do cristão é simplesmente dar testemunho de que o nosso desejo profundo tem um sentido.

Explique melhor.
O nosso desejo indica uma meta que podemos experimentar, que corresponde à sede mais íntima do coração e é capaz de a satisfazer. São Bento, na sua regra, tem um único critério para quem considera a vocação: «Quem é o homem que deseja a vida e anseia por longos dias, para gozar da felicidade?». Por outras palavras: «És um homem de desejo? Se sim, eu proponho-te um caminho a seguir». Certamente, o desejo não basta, mas é o fundamento imprescindível. É preciso, portanto, escutar o nosso desejo profundo com muita atenção, com respeito.

No dia da sua entrada em Trondheim, falou muitas vezes de atenção e escuta. Disse que «a revelação de Deus é em grande parte silenciosa». O que queria dizer com isso?
A revelação de Deus é um sopro, uma brisa ligeira. E o importante para nós agora, o desafio cristão – o perpétuo desafio cristão – é levar a sério esse sopro. É necessário prestar atenção, porque a verdade é sempre maior do que os nossos conceitos. No Evangelho as pessoas recusam Cristo precisamente porque não aceitam o método que Deus tem de revelar-se. É esta a nossa tentação: ter ideias tão claras daquilo que Deus “deveria” fazer, segundo o meu pensamento, que fico fechado à Sua presença portadora de vida. Hoje tornou-se difícil escutar o sopro, porque há tantas impressões, que se impõem quase com violência. Por isso é preciso ter sentidos bastante finos... É preciso abertura: um espaço de escuta profundo, de espera.



Hoje, também por causa do medo e da raiva, pelo desânimo da situação em que nos encontramos, há muito fechamento.
O tempo nunca é desesperado. Esta é a óptica com que devemos aprender a entrar, a óptica de Deus, que «amou de tal modo o mundo, que lhe deu o seu Filho Unigénito». Recentemente impressionou-me uma pequena coincidência: na mesma manhã li, em jornais diferentes, as entrevistas a dois médicos, um em França, o outro nos EUA, que diziam a mesma coisa: «Estamos a viver uma situação apocalíptica». Naturalmente referiam-se à emergência de saúde pública, de proporções inconcebíveis. Mas eu pensei naquele adjetivo: apocalíptico, que quer dizer “revelador”. Quando a realidade excede as nossas categorias, o horizonte tem de alargar-se porque já não cabe dentro dos limites habituais. Os momentos “excessivos” são potencialmente momentos que fazem despertar, porque a novidade traz a pergunta: que sentido tem? E esta pergunta fala do sentido último de tudo. Fala do Logos, que na história se fez carne e que, na Igreja, prossegue o seu mistério de encarnação.

O que vê na situação de hoje?

É um momento de grande sofrimento. E é impressionante a ausência de segurança para o amanhã. Impressiona-me, particularmente, o que vivem os jovens, miúdos de dezasseis, dezoito anos, que estão bloqueados: desejosos de construir, encontram-se frustrados. Mas o que estamos a viver traz também uma semente nova: o reconhecimento – num mundo hiperindividualista – de que somos dependentes uns dos outros. Há uma sede de relações, de encontro, que, espero, marcará a construção do mundo. Penso que este despertar é muito significativo e necessário. E tem dentro uma vocação eclesial forte: enquanto os elementos da sociedade secular e laicista tendem para a explosão, a Igreja – pelo seu chamamento sobrenatural e pela sua energia de comunhão – tende ao encontro. Há uma tarefa grande e solene confiada aos cristãos neste momento, a de viver a comunhão. Como diz a Gaudium et spes: «A Igreja é chamada a tornar presente e concreta a semente de uma humanidade nova». E este desafio é enorme, exigente. E alegre.

Porquê alegre?
O verdadeiro encontro traz alegria. Não falo da alegria em sentido sentimental, mas de alegria ontológica: sentir-se compreendido, amado, querido. Creio que a sede que está a explodir, a sede de encontro, de amizade, embora continuando implícita, é uma sede espiritual. E se através da nossa vida levarmos o Espírito ao encontro com o mundo que o espera, a alegria será inevitável. Mesmo no sofrimento. Diante do sofrimento é preciso um grande respeito, uma reverência. Facilmente nós cristãos somos levados a apresentar uma espécie de retórica de consolação. Ao invés, é necessário um coração vulnerável, aberto, para acolher o sofrimento do outro. Se esta partilha é verdadeira, se é admitida por quem sofre e este encontro acontece, também o sofrimento se torna um lugar luminoso. A alegria não é só uma prova muito convincente da eficácia da graça, é também uma verificação da experiência cristã. Porque não podemos iludir-nos que somos alegres se não o somos, não podemos enganar-nos que estamos em paz se assim não for. Não são sentimentos. É um ânimo do ser profundo.

Tal como ouvir Mahler foi um «encontro» para si?
Aquele meu despertar interior permanece um mistério. Mas verifico, com o passar do tempo – passaram trinta anos –que uma experiência que podia parecer fugaz foi, pelo contrário, uma coisa substancial. E isto é interessante: não só para perceber a minha história, mas também para comunicar o mistério de Deus aos outros.

Porquê?
Porque o Deus em quem acreditamos é um Deus que se comunica. O Verbo fez-se carne. E fez-se carne para partilhar: encontra sempre caminhos novos e procura os caminhos de cada um, os que em mim não estão fechados. Creio que no esforço de evangelização da Igreja dependemos muito dos caminhos tradicionais, onde agora há simplesmente muito "tráfego". Ao passo que Deus perscruta primeiro quais são as possibilidades de abertura, quais os caminhos que estão livres, e depois faz-se compreensível de modo apropriado, pessoal. Foi o que aconteceu comigo. Por isso tenho um grande respeito pela obra do Espírito na vida dos outros. O Senhor prepara caminhos novos. E a nossa tarefa é colaborar com Ele.

É colaborar com aqueles «sopros»?

Sim. Penso na experiência que tive em França, no verão passado. Durante uma viagem para a Normandia, parei na Abadia de Fontgombault e um dia acompanhei o abade a celebrar um funeral na aldeia de Le Blanc. Era o funeral de uma monja das Irmãzinhas discípulas do Cordeiro: uma comunidade fundada recentemente, em 1985, para possibilitar a vida monástica a mulheres com a síndrome de Down. Tinha morrido uma das primeiras, Marie Ange, que tinha passado quase trinta anos naquela comunidade. Aos olhos do mundo a sua vida escondida não tinha nenhum significado. Nenhuma utilidade. Nenhum valor. Mas eu, naquele dia, naquele funeral, fui testemunha privilegiada de uma biografia essencial.

Essencial?
No sentido de que a sua vida encarnava uma palavra de Deus essencial para o nosso mundo. Uma palavra de ternura, de paciência, mas também de grande autoridade. A história daquela monja corresponde a um sopro, sim, mas quem recebeu a graça de sentir aquele sopro, aquela brisa suave no rosto, sabe que é transformador. Eu não a conheci, mas naquela assembleia cheia de pessoas que a haviam amado profundamente, reconhecia a fecundidade e a nobreza da sua vida. Do dom da sua vida. Um dom feito de um modo muito, muito lúcido. E luminoso.

Que lhe aconteceu após aquele primeiro “encontro” com Mahler?
Quando comecei a estudar a história do cristianismo, marcou-me a continuidade presente no catolicismo. E quando deixei a Noruega, para frequentar um liceu internacional no país de Gales, fiz encontros de amizade. Mas posso dizer que aderi à Igreja no encontro com a vida monástica: para mim estas duas descobertas são inseparáveis. Aos dezassete anos estive uma semana num mosteiro e vi pessoas cuja vida me impressionou, me atraiu: a encarnação de um ideal. Dois anos depois fui admitido à plena comunhão. Não se tratou, no entanto, de mudar de confissão religiosa. Eu não tinha raízes na Igreja luterana, não lhe pertencia.

Foi uma conversão.
Foi um regresso a casa. Onde tantas coisas eram para mim familiares, conhecidas, queridas.

Isso é misterioso.
Sim, mas é também lógico. O facto de sermos criados à imagem de Deus não é uma abstração: é uma realidade muito incarnada, que somos chamados a descobrir cada um para si. Quanto mais descobrimos a realidade pessoal de estarmos radicados na imagem de Deus, tanto mais nos sentimos em casa.

Esta descoberta pessoal é a raiz da credibilidade da fé?
Facilmente corremos o risco de reduzir Deus a um ídolo, de petrificar a fonte de toda a vida em algo sem vida, encolhido. A primeira coisa que consideramos óbvia é que Deus é real. Está presente. E que nos fala. Agora! Esta é a certeza: que, na minha vida concreta, Ele usa aquilo que me sucede como instrumento para a minha conversão. E até para a minha santificação. O importante é abrir os olhos, para ver a enorme dimensão e a beleza desta possibilidade inaudita: de despertarmos, para subir ao nível da ambição que Deus tem para nós, para si, para mim. O discurso cristão deve concretizar-se: o Verbo fez-se carne. Este é o coração do mistério da fé: um mistério que se realiza, se o quisermos, também em nós, hoje. Isto é possível porque a graça de Deus é capaz de me encontrar ali onde eu estou. A salvação dirige-se às minhas contradições, fraquezas e esperanças: o Senhor salva-me, é verdadeiramente Deus connosco, não está escondido num misterioso e vago “além”. O Evangelho não propõe uma existência alternativa. Mas transfigura a existência que é a nossa, agora.