Papa Francisco com o Grande Imã de Al-Azhar, Ahmad Al-Tayyeb após a assinatura do documento (04-02-2019)

Irmãos porque filhos

Qual é a fonte da Fraternidade? O que pede e vê o Papa neste tempo de medos e divisões? Um percurso pela nova encíclica, nascida do encontro com o Grande Imã de Al-Azhar e do Documento de Abu Dhabi
Stefano Maria Paci

Vaticanista do canal italiano Sky Tg24, desde 2003 tem acompanhado as viagens dos últimos três Pontífices. Iniciou a profissão na revista 30 Dias, depois trabalhou em jornais diários, semanários, na rádio e na TV, na informação diária e em programas de grande audiência.


Quatro de fevereiro de 2019. Estou prestes a fazer um direto com o meu telejornal quando, de repente, começa a chover. Há imenso tempo que não chovia, e para a cidade é uma festa. Estou em Abu Dhabi, Emirados Árabes Unidos. A chuva aqui é um acontecimento raro, este será o único dia do mês em que a água cai do céu. Mas ainda mais raro me parece aquilo que, ao mesmo tempo, acontece diante dos meus olhos: o Papa da Igreja Católica assina um documento compartilhado com a mais alta autoridade do Islão sunita, Ahmad Al-Tayyeb, Grande Imã de Al-Azhar, a universidade teológica do Cairo. Um denso Documento sobre a fraternidade comum. Ronald Lauder, Presidente do Congresso Judaico Mundial, dir-me-á um ano mais tarde que aquele texto se tornou uma peça absolutamente fundamental para a construção de um mundo diferente, um compromisso a partilhar. É raro ver cristãos, muçulmanos e judeus unidos não por palavras vagas, mas por um documento de leitura da realidade, de intenções e perspectivas. É raro que se chamem irmãos.

E assim, na manhã do dia 4 de outubro de 2020, desta vez não fico surpreso quando, na nova Sala do Sínodo no Vaticano, vejo que, juntamente com o Secretário de Estado da Santa Sé e outros cardeais católicos, para apresentar aos jornalistas a nova encíclica, que em poucas horas será publicada, está uma autoridade muçulmana, o juiz Mohamed Mahmoud Abdel Salam. É o Secretário Geral do Alto Comissariado para a Fraternidade Humana nascido daquele documento comum. A terceira encíclica do Papa Francisco é dedicada exatamente à “fraternidade” (o título, Fratelli tutti, é extraído de São Francisco) e o documento assinado em Abu Dhabi e o nome do Grande Imã de Al-Azhar aparecem várias vezes no texto. Um encontro que o Papa lembra “com alegria e gratidão”. Um abraço entre religiões e culturas diferentes que não é alheio ao desenvolvimento desta encíclica. “Aquele encontro estimulou-me a escrevê-la”, revela o Papa Bergoglio. Que não por acaso cita, já nas primeiras linhas, o encontro de oitocentos anos atrás entre São Francisco e o Sultão, que aconteceu “com grande esforço, sem ignorar as dificuldades e os perigos” e, principalmente, “sem negar a própria identidade”. Um abraço, pensando bem, humanamente incrível naquele difícil momento histórico marcado pelas cruzadas, e que se torna quase o símbolo do encontro de Abu Dhabi, ousado em muitos aspectos. É verdade que uma encíclica pode intimidar, pode não suscitar a vontade de ler, dela se espera uma reflexão complicada e intelectualmente refinada sobre o mundo e os sistemas que o regem, é sabido que será citada durante décadas, mas só em congressos, reuniões académicas, discursos empoeirados. Os meios de comunicação falam dela com ênfase, mas apenas por um dia, até a porem de lado, procurando as três ou quatro frases que mais se ajustam aos fatos políticos e sociais do momento; e há quem faça justaposições ousadas com a Irmandade de origem maçónica, quem fale de sujeição ao Islão, quem denuncie escandalizado a estrutura semelhante aos panfletos dos Centros Sociais e se indigna com a condenação dos populismos. Há até um filósofo insigne que diz que a única novidade é ter encontrado nela o trinómio Fraternidade-Liberdade-Igualdade, que deu origem ao Iluminismo combatido pela Igreja, esquecendo que esses conceitos se afirmaram apenas porque a cultura ao longo dos séculos se tinha impregnado de catolicismo, que desde sempre se apropriara daquelas palavras.

Na realidade, Fratelli tutti é uma summa simples, escrita de um modo extremamente legível, do pensamento que Francisco tem expresso nestes anos de pontificado. Um pensamento que agora podemos reler como que ligado por um fio de ouro, se descobrirmos a intuição subjacente à encíclica: tudo nasce do olhar.

Tudo nasce, sempre, do olhar, porque é do olhar que a pessoa tem sobre si, sobre os outros e sobre o mundo que deriva toda a ação. Se muda o olhar, muda o homem e muda a realidade ao seu redor. Atualmente , assinala Francisco, o olhar dominante é solipsista, olha para si mesmo e para a própria satisfação, e os outros ou são obstáculos ou devem tornar-se nossos cúmplices: de um lado estou eu, nós, o grupo, do outro lado os outros, que se tornam o inimigo, o obstáculo. Deste modo, o mundo transforma-se em terra de conflitos, confrontos, egoísmos. E Bergoglio denuncia as muitas sombras que envolvem o planeta: o desvanecer do sonho de uma Europa unida, os nacionalismos fechados e agressivos, colonização cultural que retira a alma aos povos, a cultura do descarte, a exaltação dos muros, fome, violência, tráfico de pessoas e escravidão, marginalização dos pobres, egoísmo dos ricos, a depredação da natureza, casa de todos. “Empanturramo-nos de conexões, e perdemos o gosto da fraternidade”, diz. E aos migrantes não é reconhecida a dignidade devida a todo o homem. Mas o sonho de um mundo novo, incita Francisco, pode recomeçar, e é possível recomeçar a construir concretamente este sonho.

Certamente, é preciso mudar o olhar, olhar para os homens e o mundo reconhecendo-nos, como de facto somos, irmãos. O outro torna-se “próximo” e já não “sócio”. E acontecem coisas que atualmente parecem quase impossíveis: a política torna-se verdadeira caridade e não autoritarismo, porque procura o bem de todos e não o enriquecimento ou a prevalência do próprio grupo. Mas, diz o Papa, a fraternidade não deve ser proclamada apenas em palavras, “é necessário educar para a fraternidade”. E há que “cuidar da fragilidade”, porque se reconhece a dignidade inalienável do outro. Trata-se de outra lógica, explica ele, uma lógica que comporta “o desafio de sonhar e pensar uma humanidade diferente”, tendo o coração aberto ao mundo inteiro.

E a fraternidade faz nascer inevitavelmente uma “amizade social”, expressão hoje quase esquecida, que configura tenazmente “o diálogo como método dos relacionamentos”, a qualquer nível. Mais uma vez é um problema de olhar: um olhar diametralmente oposto ao de quem acha que “o mercado, por si só, resolve tudo”: basta pensar na “especulação financeira, que, tendo a ganância de lucro fácil como objetivo fundamental, continua a fazer estragos”.
“A caridade pode mudar as coisas”, e “também na política há espaço para amar com ternura”. A palavra a ser redescoberta é “solidariedade”, que, entendida no seu sentido mais profundo, é um modo de fazer a história. E o Papa que, quando era cardeal em Buenos Aires, mandava os seus melhores padres e mais queridos padres para viverem nas villas miserias, as favelas da capital, diz que os movimentos populares têm um papel determinante. Porque cada um deve fazer a sua parte, “sem esperar que o governo faça tudo”: “Deve-se lutar contra as causas estruturais da pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho, a terra e a casa, a negação dos direitos sociais e trabalhistas”. Uma solidariedade que a pandemia do covid evidenciou: ninguém se salva sozinho.

Francisco retoma com vigor temas que já eram caros ao pontificado do seu predecessor, o Papa Ratzinger. A condenação do relativismo, os valores não negociáveis, a defesa da identidade. Bergoglio diz não ao relativismo, segundo o qual não existe um bem ou um mal absolutos, nem existe uma verdade a procurar. Desta forma, “os valores morais são interpretados pelos poderosos segundo as conveniências do momento” e até os direitos humanos, hoje considerados invioláveis, poderão amanhã “acabar negados pelos poderosos de turno”. Bergoglio cita explicitamente várias vezes os “valores nunca negociáveis”, aqueles valores que estão para lá de qualquer consenso. “Que todo o ser humano possui uma dignidade inalienável é uma verdade que corresponde à natureza humana, independentemente de qualquer transformação cultural”, diz. E daqui surge um não radical seja à pena de morte, seja à guerra, incluindo as guerras outrora consideradas justas, pois “de facto, nas últimas décadas, todas as guerras pretenderam ter uma justificação”.

Francisco cita João XXIII e a célebre Pacem in terris para lançar o seu grito contra a guerra, neste tempo de “terceira guerra mundial por pedaços”. “Tomemos contato com as feridas, toquemos a carne de quem vive o horror, para entender que há um imperativo moral e humanitário: a eliminação total das armas”. Utopia? Não, defende Bergoglio. Reforme-se a ONU, revejam-se os tratados internacionais, coisas de facto possíveis, “e, com o dinheiro usado em armas e noutras despesas militares, constituamos um Fundo Mundial, para acabar de vez com a fome e para o desenvolvimento dos países mais pobres, a fim de que os seus habitantes não sejam obrigados a deixar os seus países em busca de uma vida mais digna”.

Todos irmãos, diz o título. Nm tempo em que parece já não haver Pais, alguns podem interpretá-lo como a procura do mínimo denominador comum entre os homens. Mas não é assim. Somos irmãos porque é possível reconhecer um Pai comum. O olhar pode mudar porque podemos olhar para um Deus encarnado. E o coração da encíclica, o que ele chama “o fundamento último”, é sublinhado por Francisco – depois de tê-lo declarado no início, nas linhas sobre o Santo de Assis que agiu “por amor de Deus”, e depois de ter estruturado um capítulo inteiro sobre ele, comentando o Bom Samaritano –na parte final. O oitavo e último capítulo é dedicado às “Religiões ao serviço da fraternidade no mundo”. É a orgulhosa chamada de atenção para a identidade. “Como crentes, pensamos que, sem uma abertura ao Pai de todos, não pode haver razões sólidas e estáveis para o apelo à fraternidade”. Se não existe uma realidade transcendente, não existe “nenhum princípio seguro que garanta relações justas entre os homens”: os interesses de classe, de grupo, de nações colocá-los-ão sempre uns contra os outros. Se Deus é excluído da sociedade, acaba-se a adorar ídolos e, entre as causas mais importantes da crise no mundo moderno, Francisco identifica uma consciência anestesiada que se afasta dos valores religiosos. É inaceitável, diz Bergoglio “que no debate público, só tenham voz os poderosos e os cientistas” e não quem provém de um fundo religioso que recolhe séculos de experiência e sabedoria: “A Igreja não pode nem deve ficar à margem.”
“Outros bebem doutras fontes. Para nós, este manancial de dignidade humana e fraternidade está no Evangelho de Jesus Cristo.” E por isso Francisco conclui citando uma luminosa frase de Paulo VI: “Tudo o que é humano nos diz respeito”. Para os cristãos, tudo lhes diz respeito, e sobre tudo têem um olhar diferente, que torna o humano mais humano.