Curar as feridas

Para o Presidente eleito dos EUA, Joe Biden, chegou o momento de curar as feridas no País, mas é uma tarefa muito difícil.
di Fernando De Haro, ilsussidiario.net

Um artigo do Ilsussidiario.net

“É o momento de curar as feridas”, uma boa frase, uma frase estupenda do Presidente eleito dos Estados Unidos. Biden, depois de uma contagem de votos imprópria para cardíacos, fez um bom discurso para celebrar uma vitória que Trump se recusa a reconhecer. Será um programa difícil de realizar, porque as feridas no seu país, como em boa parte do Ocidente, vão até à mais pequena célula do tecido social.

Biden venceu com uma margem ampla, mas não esmagadora. Apesar dos esforços de alguns colunistas da Costa Leste, a mensagem dos eleitores não foi a de um Trump inaceitável e o candidato democrata impôs-se por três pontos no voto popular. Os títulos que atribuem a derrota do Republicano ao abandono por parte dos eleitores brancos críticos da globalização na cintura industrial do Midwest, podem fazer sensação, mas a realidade é sempre mais complexa.
No Wisconsin, no Michigan, na Pensilvânia, Biden ultrapassou Trump só por um ponto. Não houve um abandono maciço e drástico do homem que fez do protecionismo uma das suas bandeiras. As categorias usadas nas sondagens revelaram-se demasiado esquemáticas. Houve mais evangélicos brancos a votar em Biden do que em Trump, Biden cresceu entre os brancos e Trump entre os negros, hispânicos e asiáticos. Contudo, tentar explicar o voto só com modelos identitários é a melhor maneira de cair, à partida, na armadilha em que está bloqueada a política dos Estados Unidos, tal como toda a política ocidental, há décadas.

Se Biden quer verdadeiramente curar as feridas terá que ultrapassar aquilo que, David Brooks definiu, corretamente, como “guerra religiosa”, uma polarização que se transferiu para a política e a usa para enfrentar modos diferentes de entender a vida. Para cada uma das partes em conflito o exercício do poder é a modalidade melhor para fazer triunfar um determinado sistema de ideias. A direita americana, há mais de dez anos, entendeu que tinha chegado o momento de se libertar do complexo tecnocrático: era necessário travar uma guerra cultural contra o mundo liberal (progressista). Na primeira fase das guerras culturais, muitos na esquerda rejeitavam os ideais do Iluminismo, considerados imperialistas. Há uma década que a direita ataca o progresso porque o considera parte de um plano das elites intelectuais para minar os valores tradicionais. O trumpismo, não Trump, foi apoiado por alguns grupos, convictos da urgência de combater contra uma ideia que utilizava a alavanca do poder para impor a sua sensibilidade. O termo guerra cultural teve sucesso na nova direita de alguns países europeus.

Nesta dialética, grande parte do mundo liberal reagiu nos últimos quatro anos com um anti-trumpismo exacerbado. O progressismo travou uma guerra cultural que, como justamente sublinham muitos analistas, teve muito de obsessão coletiva. As malvadezas de Trump ocupavam tudo: os enredos dos romances, dos filmes, das séries de televisão. Houve poucos esforços sinceros para compreender porque é que Trump tinha ganho, o que é que sentiam e queriam aqueles que tinham votado naquele que foi, sem dúvida, um dos piores Presidentes dos Estados Unidos. As caricaturas esquemáticas do agricultor armado no seu trator, do branco inadaptado por causa da globalização, do cristão integrista, simplificaram o que é complexo.

Os media progressistas, cada vez mais condicionados por um certo target e pela necessidade de sobreviver numa sociedade cada vez mais segmentada, exacerbaram um confronto nacional que deixou de ser debate. O narcisismo das redes sociais muitas vezes agravou o problema. Uma posição defendida em poucos caracteres torna-se um fetiche psicológico (e isto acontece dos dois lados). A guerra cultural progressista subiu de tom a tal ponto que, por exemplo, o feminismo se tornou uma guerra civil. Uma parte das feministas desqualifica as outras porque não o são da maneira correta: as feministas da igualdade entram em rota de colisão com as da diferença e estas pensam que as outras são antiquadas.
Os Democratas cresceram nos voto dos brancos, mas curar as feridas não significa só reaproximar-se da classe média e da classe operária. É acabar com a teologização da política do trumpismo e do anti-trumpismo. A questão decisiva, como sublinha Mark Lilla, é mudar esta pseudo-política do olhar sobre si próprio que leva a uma auto-definição cada vez mais exclusiva e restrita. O problema é que os jovens e os menos jovens, em grande parte do Ocidente, não são educados a pensar no bem comum, para o garantir concretamente e para convencer pessoas muito diferentes entre si da necessidade de um esforço partilhado. É o oposto de uma guerra religiosa. É uma tarefa demasiado complicada para um Presidente, mesmo sendo o Presidente dos Estados Unidos da América. A mudança só pode vir de baixo.