Olhar quem se deixa transformar pelo banho de realidade

Será possível uma mudança nas nossas consciências na sequência da pandemia? Ou será apenas a continuação da normalidade por outros meios - Uma reflexão sobre "O despertar do humano" de Julián Carrón, por Hugo Dantas
Hugo Dantas

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No seu texto, o Pe. Carrón nota que «neste isolamento surge diante dos nossos olhos (…) a nossa condição existencial» (pág. 10).
Não há dúvida que este golpe vindo de um ângulo inesperado é apto a recordar-nos de que a humanidade não é senhora da Natureza. Os cientistas dos quais, com uma confiança na ciência muito característica do Ocidente, esperávamos uma solução para o problema, um fundamento sólido para o optimismo, declaram ante o mundo a sua impotência. As sociedades tecnologicamente mais avançadas no mundo encontraram-se indefesas ante um novo e mortal perigo, muitas adoptando a decisão extrema de suspender em grande parte a sua vida social e económica.

Na minha vida adulta, atravessei já uma pandemia: a pandemia de H1N1, em 2009. Porém, nem esta experiência, nem outra alguma que recorde, se comparam à que todos vivemos. A bizarria da situação, o seu carácter quase fantástico, já é, de si, capaz de infundir temor.
Assim, os primeiros dias do meu confinamento, habitados por essa estranheza, conduziram-me precisamente aos sentimentos de pequenez antes forças inexoráveis, da contingência, da dependência. Certamente, não foi a primeira ocasião na vida em que me confrontei com essa experiência; no entanto, esta experiência foi única no sentido em que o fenómeno que a despoletou se abateu em comum sobre tantos.

Sendo a experiência tão recente, estando ainda em curso, terei de adiar um juízo definitivo sobre a minha vivência desta situação social.

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Porém, confesso-me céptico a respeito das mudanças na consciência comum da humanidade que esta crise possa comportar.

Os benefícios espirituais dos choques colectivos são sempre distribuídos de forma desigual. Em alguns, certamente, a crise que atravessamos despertou a consciência da intrínseca fragilidade do Homem ante a Natureza, invocou as questões existenciais mais profundas – sobre o sofrimento, a morte e, enfim, a sua condição enquanto humano neste universo. Para outros, a irrupção da crise não significou senão – para parodiar uma célebre frase de Clausewitz – a continuação da normalidade por outros meios.

Esta última maneira de fazer face à circunstância ficou demonstrada, por exemplo, pela romantização do isolamento social, tão amplamente popularizada no nosso país – e não só – nos primeiros dias da crise. Segundo esta concepção, todos teríamos mais disponibilidade para gastar tempo connosco mesmos e assistir-se-ia a um florescimento da criatividade, a um renovado sentimento de amor à cultura, etc. Parecia que a tragédia subjacente – com que confrontaram de forma tão vívida os médicos e os enfermeiros nos hospitais – acabava por facultar uma oportunidade ímpar para a recreação, para redobrar a dose de entretenimento usualmente ingerida. Estas considerações, apesar da extensa adesão que obtiveram, estão eivadas de privilégio. Ainda estou para conhecer, entre os meus círculos de amigos, quem houvesse disposto de mais tempo no seu isolamento social. Para uma relevante porção dos que se viram isolados, à parte o tempo que pouparam na deslocação entre a casa e o local de trabalho (certamente, um factor que não pode ser desvalorizado), os dias continuaram a ser consumidos na jornada laboral – e, em alguns casos de que tive conhecimento, o isolamento teve o efeito perverso de tornar mais instantes e exigentes as solicitações aos que trabalhavam à distância, como se qualquer tempo adicional conquistado no recolhimento a casa devesse ser sacrificado ao trabalho. Para outra parte da população, o isolamento significou o decréscimo do salário, o despedimento, o encerramento do pequeno negócio e a consequente incerteza a respeito do futuro, a crescente angústia, até mesmo a necessidade de pedir ajuda para prover às necessidades alimentares da sua família.

Este exemplo revela, fundamentalmente, que muitos entraram no isolamento no mesmo ânimo dos dias de sempre: sufocar, sob a multiplicação de estímulos tão típica da nossa era, a angústia, as perguntas que a tragédia imporia a uma atenção despojada, persistindo em cegar para a devastação que ia sendo criada ao redor de um exílio que, por comparação, se apresenta como dourado. Por outras palavras: muitos transportaram ainda a sua «bolha» para o isolamento e esta resistiu aos «golpes da vida». Assim, sob a aparência de um choque comum, oculta-se uma tamanha diversidade de condições, que me é difícil esperar uma convulsão comum na consciência da humanidade, especialmente na consciência do Ocidente.

Creio que o terreno mais fértil para o surgimento das reflexões existenciais seria o daqueles que confrontaram o horror da pandemia olhos nos olhos, isto é, nos hospitais, ou o daqueles que não puderam amparar os «golpes da vida», ou seja, aqueles para as quais a pandemia anda intrinsecamente ligada a ameaça da miséria ou da marginalização social e que experimentam, por isso mesmo, de forma mais contundente a impotência e, se se quiser, a necessidade de abandono à Providência. Mas, mesmo nestes casos, as perguntas que vão à raiz das coisas não serão consumidas por preocupações mais concretas e imediatas? Conseguirei manter o meu emprego?, conseguirei encontrar um emprego?, conseguirei reabrir o meu café ou o meu restaurante?, conseguirei continuar a pagar a minha casa?

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Por estas razões é que é uma experiência tão impressiva encontrar aqueles poucos que, perante estas grandes crises, se deixam transformar pelo banho de realidade e a quem, depois delas, o business as usual já não basta. É em relação a estas pessoas, como consciência viva da contingência, da dependência, enquanto verdades existenciais, apreendidas não no campo estrito da reflexão filosófica, mas como intuição, como experiência, que se pode falar do «despertar da razão». Creio que a importância deste testemunho, desta presença, está devidamente sublinhada no texto do Pe. Carrón.

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Em suma, à parte estes testemunhos de esperança, sou céptico quanto à possibilidade de que a consciência da sociedade como um todo venha a mudar significativamente na sequência da tragédia. O nosso tempo dispõe de meios muito insidiosos para distrair a atenção da nossa condição de humanos – não só através de uma espiral infinita de futilidades, mas mesmo, por vezes, sufocando as últimas perguntas em outras preocupações legítimas ou causas justas.