O paradoxo do junco pensante

Um paradoxo como o do junco tem de ser resolvido a partir das vísceras do junco... uma leitura sobre o livro "O despertar do humano", por João César das Neves
João César das Neves

O livro «O Despertar do Humano» de Julián Carrón está dominado por duas palavras: realidade e presença. A entrevista parte do terrível tumulto que este vírus microscópico criou na nossa vida. De repente, muito do que tínhamos como seguro desfez-se diante dos nossos olhos. Esta experiência, que parece surpreendente, é afinal banal. A cada momento vemos pessoas a quem o mundo desabou; o cancro e os desastres rodoviários, por exemplo, geram casos destes todos os meses. O que há de inesperado neste, embora longe de inédito, é ter acontecido de súbito e a todos ao mesmo tempo. «Esperávamos a paz e nada vemos de bom, uma era de restauração e surgiu a angústia» (Jer 14 19).

A primeira parte do livro constitui uma exortação a usarmos esta surpresa para «que os nossos olhos se abram» (p. 13), fazendo das «entranhas da realidade o coração da inteligência» (p. 12). Nós que «acreditámos tê-la domesticado» (p. 14), temos de admitir que a realidade nos ultrapassa incompreensivelmente.

Somos muito incapazes e achamo-nos poderosos; ambas as dimensões fazem parte da mesma realidade. A nossa fragilidade e a nossa ambição integram, paradoxalmente, a nossa humanidade. O «junco pensante» de que falava Pascal(1) tem simultaneamente a limitação da sua estatura e a abrangência do cosmos. Vamos sempre tentar controlar o mundo que nos rodeia e constatar que falhamos. Assim, a negação da realidade, que o autor deplora, faz parte da mesma realidade. É por isso que «errar é humano».

Carrón condena, a este propósito, a cegueira das ideologias contemporâneas que, de facto, exageram a arrogância dita «humanista», julgando-se na cabine de controle da realidade. Mas o pecado de Nietzsche, que afirma que «não existem factos, apenas interpretações»(2) (p. 26) é afinal o pecado de Adão, de Aquiles, de Lancelot, de Fausto, o meu pecado. O pecado resultante do enviesamento de ter uma alma imortal num corpo frágil; de ser um junco pensante. Este é o primeiro elemento do «despertar do humano», de que fala o título.

A segunda parte centra-se num facto, num acontecimento, que é, pode dizer-se, o único evento que este enredo de juncos pensantes nunca podia produzir. Se compreendermos o humano nas suas duas dimensões paradoxais e contraditórias de erva e pensamento, contemplamos uma infinidade de histórias, dramas, percalços, e equívocos, que temos testemunhado em milhares de anos de História e descrito em milhões de obras literárias, incluindo os episódios pungentes desta pandemia. Esse é o desenrolar do humano, fraco como a palha mas sonhando o universo.

Há só uma coisa que os dados do problema nunca poderiam gerar: que a razão do universo se tornasse junco para salvar os juncos do seu paradoxo. Que o Verbo se faça carne e habite entre nós (cf. Jo 1, 14) é um facto que não cabe nos termos da questão. Mas este acontecimento incompreensível é, afinal, a única resposta razoável ao mesmo paradoxo. Porque um problema nunca se resolve a si mesmo, como uma fechadura não se consegue abrir sozinha. A solução do mistério da realidade tem de vir do exterior da mesma realidade.

Por outro lado, porém, essa solução precisa de estar dentro realidade para a resolver. Um paradoxo como o do junco tem de ser resolvido a partir das vísceras do junco. Por isso tal acontecimento nunca seria possível. No entanto, de alguma forma, a ânsia que isso acontecesse sempre esteve subentendida no pensamento do junco. Ao abarcar o cosmos, ao sonhar com o universo, o junco aspirava a algo que ultrapassava o cosmos e o universo. A criação clama em cada instante pelo Verbo.

Só que, depois desta ocorrência impossível, que resolve o paradoxo, o paradoxo manteve-se em nova forma: «A Luz brilhou nas trevas, mas as trevas não a receberam» (Jo 1, 5). Esta é a nova configuração do paradoxo do junco pensante: «a Luz veio ao mundo, e os homens preferiram as trevas à Luz, porque as suas obras eram más» (Jo 3, 19). Podemos ficar espantados, horrorizados, com este inesperado percalço, com esta incompreensível recusa da solução, que chega até à crucificação da salvação. Mas aquilo que realmente interessa é que, independentemente da sua receção, após este acontecimento, os termos do problema mudaram. Mudaram porque o facto se tornou presença.

«O que é que vence o medo numa criança? A presença da mãe. Este “método” vale para todos. É uma presença, não as nossas estratégias, não a nossa inteligência ou a nossa coragem, o que mobiliza e sustenta a vida de cada um de nós. Uma presença, a memória operante desta.» (p. 34). «Deus não respondeu ao problema da vida, da solidão, do sofrimento, com uma explicação, mas com a Sua presença» (p. 37).

Deste modo, aquilo que realmente interessa neste livro é a concretização desta presença divina no meio da nossa miséria, que resolve o terrível paradoxo do sofrimento daqueles que se sentem eternos, do fogo que consome o junco pensante. As pequenas e grandes histórias que mostram que «o acontecimento de Cristo permanece na história através da companhia dos crentes»(3). Da médica na trincheira (p. 41-43) a Santa Teresinha do Menino Jesus (p. 59), da filha solitária após a morte da mãe (p. 54-55) ao Cardeal Van Thuan (p. 60-61), sente-se o vibrar da presença daquela Presença que mudou para sempre o pensamento do junco. Pois «a quantos o receberam, aos que nele creem, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus» (Jo 1, 12).


(1) - «O homem não passa de um junco, o mais fraco da natureza, mas é um junco pensante» Pascal, Blaise (1669) Pensées, edição Lafuma nº 200, edição Brunschvicg nº 347.
(2) - Cf. F. Nietzsche, Fragmentos Póstumos 1885-1887. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013, v. 6.
(3) - L. Giussani, S. Alberto, J. Prades, Gerar rasto na história do mundo, op. cit., p. 51.