Um contínuo «eis-me aqui»
O valor do instante e a colaboração para o bem do mundo. O Padre Sergio Massalongo, prior do mosteiro da Cascinazza, confronta-se com as palavras de Carrón ao movimento: «O nosso Sim a Cristo é já o contributo para a salvação de todos os homens hoje»«Prodesse omnibus cupientes», desejosos de beneficiar todos.
Assim escrevia há 900 anos Santo Estevão Harding aos monges na Carta Charitatis (texto legislativo da ordem cisterciense) para indicar aquela necessidade tão humana de contribuir para o bem de todos que hoje o Coronavírus – com todo o drama que tem trazido – trouxe à tona de forma tão poderosa.
Mas “contribuir” ainda não é suficiente: na verdade, aquelas três palavras latinas vão muito mais longe. Como se pode beneficiar os homens, estando fechados entre quatro paredes, como é o caso de quase todos nós? Como podem a convivência diária, as tarefas dos filhos, teletrabalho ou não ver nem tocar as pessoas queridas numa cama de hospital colaborar para o bem de todos?
Na sua carta de 12 de março ao movimento de CL, o padre Julián Carrón indicou uma via: «O nosso sim a Cristo, mesmo no isolamento em que cada um de nós pode ser obrigado a estar, é já o contributo para a salvação de todos os homens hoje».
Fomos bater (telefonicamente) à porta da Cascinazza, um mosteiro beneditino às portas de Milão, para ouvir quem vive sempre dentro de quatro paredes e que, neste aparente escondimento, «com a sua mera existência dá testemunho de que o Senhor é vitorioso», como escreveu monsenhor Giussani a esta comunidade. «Para mim, estar no mosteiro não é por uma mania de perfeição minha, mas resposta à Sua chamada, é um contínuo “eis-me” aqui», diz o padre Sergio Massalongo, prior da comunidade.
Padre Sergio, como se pode contribuir para o bem do mundo numa situação como esta, estando em casa, na banalidade das coisas de todos os dias ou estando sozinhos?
Em primeiro lugar, a natureza da vocação não é ser monge, ser empregado, dona-de-casa, etc., mas sim seguir Cristo na forma que Ele escolhe para mim: «Faz de mim o que Tu queres». Esta resposta já é a utilidade da vida, o contributo pessoal para que cada homem se reencontre na verdade. Se isto é verdade para mim, é verdade para todos. Há um Dito dos Padres do deserto (século IV) em que um jovem monge, depois de algum tempo de prova, vai ter com o ancião e diz-lhe que não pretende continuar e quer voltar para casa. O ancião responde-lhe «Recorda-te que vieste até aqui porque o Senhor te trouxe, se fores embora agora, vais sozinho». Quero com isto dizer que o Senhor nos pode conduzir ao deserto ou pregar-nos entre quatro paredes, e fazer-nos passar através das provações mais duras, mas está sempre connosco e nunca nos deixa sozinhos, a Sua Presença é a nossa força. E vice-versa: fazer a minha vida, estou à mercê de mim próprio e já não sei onde vou parar; sinto-me aprisionado, acabado e insatisfeito dentro do que quero. No fundo, o facto de que Jesus me escolheu, me amou e me possui é mais forte como definição do meu rosto do que todas as escolhas que eu faço. É mais forte porque para Ele nem sequer o meu mal e o meu pecado são objeção. Eu posso negar isto, posso recusá-lo, mas não posso evitar que Ele me tenha escolhido e amado. Esta é a minha certeza e a possibilidade de uma indomável esperança de retomar.
O que quer dizer, para vocês, dizer sim à vossa circunstância, ao instante que têm para viver
agora?
É uma disponibilidade para o Mistério segundo a modalidade e as condições com que Ele bate à minha porta neste instante. Dizer-lhe “sim” quer dizer deixá-lo entrar nesta situação presente através da pobreza da minha carne, para que Ele transforme a realidade na sua verdade. Fomos chamados a ser instrumentos da Sua glória no mundo. Jesus disse à samaritana que «os verdadeiros adoradores hão-de adorar o Pai em espírito e verdade, pois são assim os adoradores que o Pai pretende» (Jo 4, 23). Tal como o “sim” de Nossa Senhora gerou Cristo no mundo, também o nosso quotidiano e pobre “sim” àquilo que nos é pedido contribui para a salvação do mundo.
O que vos ajuda nisto?
Três coisas.
Seguir a palavra objetiva da Igreja e aqueles que a tomam como referência.
Aceitar a condição do sacrifício através da qual o Senhor nos faz passar: estar pregados às quatro paredes da casa como aos quatro braços da Cruz.
Terceiro, o exemplo dos irmãos que vivem comigo no mosteiro.
Silencio e oração. A Igreja indica estas dimensões a todos. Mas por que razão um homem deveria desejar o silêncio? Aparentemente parece ser só ausência de barulho...
Não é o silêncio que eu desejo, mas eu desejo Cristo, e Cristo é um facto que acontece e se impõe, e isto gera espanto e silêncio, é uma Presença a olhar e a seguir. Cristo pode acontecer no barulho caótico de uma grande cidade, nos hospitais cheios de doentes como neste tempo, tal como pode acontecer a limpar um estábulo. O ponto é que quando O surpreendemos em ação, sentimos que o nosso gesto é amado, é libertado, é construtivo porque é admitido a colaborar no Seu desígnio. No silêncio é mais fácil reconhecer a Sua voz, está cheio da memória de Cristo. Mas não da memória de Cristo que eu penso, fruto dos meus bons propósitos. O silêncio é verdadeiro na medida em que o seu conteúdo é a palavra que Cristo me disse a mim para a minha mudança, por isso é uma obediência viva, uma escuta contínua de adequação da minha vontade à Sua. É uma identificação. A Sua palavra tem uma pretensão totalizante sobre a minha vida, e o trabalho verdadeiro consiste em levar à letra o que me foi dito.
Sabemos nós qual é o ponto, o único ponto decisivo sobre o qual empenhar a vida toda? Que palavra te foi dita com autoridade, que tem valor supremo de direção? Se não o sabemos, ou se essa palavra é confusa, o nosso silêncio é um vazio ensurdecedor e precisamos de nos distrair em aparências inúteis. Por isso, a verdade do conteúdo do silêncio envolve a pergunta: quem é a tua autoridade? És tu ou é Outro? Quem estás a seguir? A que estás a responder?
Numa carta de 15 de março, o abade geral cisterciense, padre Mauro-Giuseppe Lepori cita o salmo 46 (45): «Detei-vos e reconhecei que Eu sou Deus». Estas palavras ressoam com um tom particular, nestes dias em que o mundo inteiro parou de correr. Mas o que quer dizer “deter-se” diante da Sua presença? E o que nos pode ajudar a aprendê-lo?
Onde é que eu reconheço a Sua presença para mim? No lugar onde o Senhor me pôs, que é o mosteiro, que é o Movimento. Aí dentro, é preciso “deter-se” e olhar para como Ele acontece, porque dali vem a única verdadeira direção, dentro da rede de uma infinidade de vozes e de opiniões.
Neste tempo de epidemia, o encerramento dos nossos portões faz-nos orientar o olhar para dentro de casa e redescobrir o seu valor, que já nos é dado tudo. Num encontro da comunidade, um irmão disse: «Esta circunstância é um desafio para verificar qual a companhia de que necessitamos.
Não há sequer o rosto do carteiro, como pretexto de dirigir o olhar para fora destas paredes. Ou intercepto Cristo aqui, nos vinte e um rostos que me são dados, ou o meu ser funda-se numa mentira última... Cristo basta-nos ou não? Porque se não nos basta, mesmo que não tenhas apanhado o vírus, podes estar morto na mesma». Assim, esta condição de prova pode ser aproveitada, não como objeção, mas como ocasião favorável, como recurso para nos deixarmos “contagiar pela comunhão” de Cristo entre nós, que transforma a proximidade em casa de Deus, como o modo com o qual Ele pretende edificar o nosso mosteiro agora. E paradoxalmente este exílio que vivemos é a maneira em que todas as coisas, recuperadas da distração, voltam ao seu verdadeiro significado, voltam à origem, e onde o outro adquire o seu verdadeiro rosto.
Muita gente está a ser atingida pela dificuldade e pela dor: como se pode «abraçar as contrariedades, para abraçar
a cruz de Cristo», como disse o Papa na praça de São Pedro no dia 27 de março?
Na sua regra, a propósito do quarto grau da humildade, quando São Bento fala do monge que passa por um qualquer tipo de prova e de sofrimento, aconselha-lhe em primeiro lugar: «Tacite conscientia patientiam amplectatur», ou seja, abraçar em silêncio a paciência no coração, como se a paciência fosse uma pessoa para abraçar. Em última análise, nas provações, é Cristo quem se abraça, para n’Ele encontrar sustento. Só alguém que experimentou o sofrimento é capaz de se compadecer do sofrimento dos irmãos, como forma maior do amor. Ainda nos Ditos dos Padres do deserto, lê-se: «Os anciãos diziam: “Cada um deve fazer seu tudo quanto acontece ao próximo, sofrer com ele a todo o momento, chorar com ele, sentir-se como se tivesse o seu próprio corpo e como se ele próprio estivesse atribulado, quando o irmão é atingido por uma tribulação, tal como está escrito: formamos um só corpo em Cristo (Rm 12, 5) e “A multidão dos que haviam abraçado a fé tinha um só coração e uma só alma (Act 4, 32)”».
Só é convertido ao amor o que é acolhido e se converte em dor. Só é possível abraçar as contrariedades e toda a dor humana olhando para os sofrimentos de Cristo, é nesse ponto que os nossos também ganham sentido.
Neste momento, não podemos ficar indiferentes ao grito de dor dos nossos irmãos; Deus está a chamar muitos ao sacrifício para que nos tornemos mais verdadeiros. Se não respondemos a esta chamada, participando cada um da forma que lhe é concedida, tudo isto sucede inutilmente, quase por acaso, e isto seria desumano. O sofrimento do outro chama-nos a sermos nós próprios.
Pelo que percebemos, a vossa vida não sofreu particulares alterações. Como têm vivido estes dias?
De facto, com exceção da clausura total, a nossa vida comum dentro do mosteiro decorre com a regularidade de antes. Estamos a preparar os campos para semear e dedicamo-nos aos outros trabalhos como habitualmente. A celebração da liturgia também não sofreu variações. No entanto, tudo se tornou mais dramático, a vida está menos distraída, ajudamo-nos a escutar o que o Senhor nos quer dizer nesta circunstância e a implorar-Lhe por todas as intenções que nos chegam sob várias formas através dos irmãos próximos e distantes, para que o Senhor tenha piedade de nós e pare este flagelo.