Um olhar segundo o destino
Um "chamamento" que te traz de novo à tua origem. E uma relação que pede sempre para ser alimentada por um presente, para "continuar a gerar" ...Por muito que as prateleiras da nossa mente possam ser preenchidas com conselhos, livros e cursos sobre a paternidade, segundo diferentes orientações, ideais e escolas de pensamento, ninguém consegue reproduzir em laboratório a irrupção daquele arrepio que é como um chamamento. Falo do arrepio que sentes quando, com os olhos, com a palavra ou simplesmente com o primeiro choro, um outro ser humano se volta para ti, pedindo que sejas o seu pai. Pode ser um miúdo que toma a iniciativa de te pedir ajuda sobre uma dificuldade que nunca contou a ninguém, ou um amigo que te procura para tornar as coisas claras na relação, esta pessoa dirige-se a ti! É uma experiência vocacional inesquecível, gratuita e, ainda que muito esperada, nunca pode ser antecipada.
É a este primeiro chamamento, que mais cedo ou mais tarde irrompe na vida de todo o homem amadurecido, que é preciso voltar quando se trata da paternidade, antes ainda de procurar conforto no saber próprio dos cursos e manuais, que insistem na representação de um papel diante do qual (não temos vergonha de o admitir) seremos sempre inadequados. Ao invés, aquela experiência de total gratuidade que é o apelo de um filho é-te dirigida, a ti, enche de promessa a tua vida e a daqueles que, pondo os olhos em ti, reconheceram e procuram em ti uma promessa de vida para si mesmos.
Uma ocasião de memória.
Observando a experiência deste apelo à paternidade, descobrimo-nos cheios de um desejo de bondade, cheios de temor para não espezinhar aquele frágil pedido de vida que se abre diante de nós, ainda incerto e claudicante. Qual é o homem que não deseja de algum modo querer o bem de quem, indefeso, o chama “pai” e se entrega à sua guarda? “Qual pai, entre vós, se o filho lhe pede um pão, lhe dará uma pedra?”, pergunta Jesus no Evangelho de Lucas. Este ímpeto de bondade revela-se ocasião de uma memória renovada e grata da paternidade recebida. Continua a passagem evangélica: “Se até vós, que sois duros de coração, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o vosso Pai que está nos céus…”. Diante desta bondade que se acende em nós, toda a nossa mesquinhez passa para segundo plano e somos levados a regressar com a memória à figura daquele que foi pai para nós.
Muitas vezes, na vida, encontrar em nós este ímpeto de atenção aos nossos filhos foi necessário para finalmente reconhecer e apreciar toda a paternidade gratuita e silenciosa de quem nos gerou e que não tivemos tempo de agradecer, porque nem sequer tínhamos os instrumentos para o perceber.
A paternidade, vista assim no seu momento de apelo, de vocação, não é tanto uma chamada de atenção à interpretação de um papel, como sobretudo ocasião de grata memória de quem nos gerou, de quem nos olhou com aquele mesmo ímpeto de ternura com que agora, inesperadamente, damos por nós a olhar para quem é mais pequeno que nós.
A exigência de uma regeneração.
A vocação à paternidade neste seu momento gratuito, emocionante e cheio de memória, é sempre, portanto, fruto de qualquer coisa que vem antes, de uma experiência que de algum modo transformou afetivamente a nossa personalidade. Isto não é apenas válido a nível biológico, mas torna-se ainda mais evidente em quem vive qualquer outro chamamento à paternidade (por trabalho ou pelas situações da vida). Por exemplo, um professor não se encontra diante de um estudante por acaso, sem que uma qualquer paixão o tenha conduzido àquele encontro.
Para ser pais, é necessário continuar a voltar à nascente deste “antes”. É aí que é preciso voltar, não só com a memória, mas também para voltar a buscar a força para continuar a gerar.
Permanece para mim como episódio paradigmático deste gerar no presente, a primeira vez que me foi pedido que pregasse o Tríduo Pascal dos Liceus (GS), diante de cinco mil miúdos. Só tinha trinta e dois anos e era Padre há menos de dois. Não podia começar aquele dia sem pedir ao Julián Carrón, que conduz o Movimento, para se lembrar de nós. Ele respondeu-me de uma maneira que recordarei toda a vida: “Basta que te deixes abraçar por Cristo para os levares, contigo, para Ele.” Depois daquela mensagem, desvaneceram-se todas as preocupações de ser “alguém” diante deles, mas impôs-se, sim, o desejo de responder àquela Presença diante da qual o Carrón me tinha colocado. Deste modo, as palavras ditas aos miúdos faziam parte de um diálogo maior, onde quem estava a ser gerado, quem estava a ser colocado diante de um Pai, era, em primeiro lugar, eu próprio.
Quanto mais queremos responder às perguntas dos filhos, tanto mais a memória grata é impelida a identificar no presente o pai do qual queremos ser filhos, aquele olhar a qual recorrer sem medo de recomeçar sempre. Ao mesmo tempo, cada um verifica como a paternidade a que se refere no presente o gera na medida em que dá por si mais livre. Quanto mais nos descobrimos filhos de um pai no presente, tanto mais se abre de par em par a possibilidade de não ter medo de arriscar um gesto de paternidade, sem clericalismos autoritários ou libertinismos descomprometidos.
A abertura da liberdade.
Pode-se pôr uma objeção a esta proposta, formulando-a aproximadamente com estas palavras: “Mas há um momento na vida em que deixamos de ser filhos de alguém e somos apenas pais?” É o outro lado da pergunta feita a Jesus por um dos líderes de Israel, Nicodemos: "Como pode um homem nascer quando é velho?"
É sempre possível renascer de um pai no presente. Depende tudo da grande alternativa com que se concebe a nossa vida: uma conceção autenticamente religiosa ou uma conceção redutora de vários tipos (sociológico, psicológico, intelectual, materialista). Qualquer homem, mesmo o mais velho desta terra, se acredita que se faz a si mesmo – concebendo-se, no máximo, como um produto de uma ou mais das componentes acima expostas – tem de resignar-se à ideia de que está a chegar ao final dos seus dias, como um ramo que deu muito fruto, mas agora está seco e serve apenas para a fogueira. Se, ao invés, reconhece que cada instante da sua vida lhe é dado, pode-se descobrir até ao último instante gerado, não por si, mas por um outro, por um “Tu” que é paternidade misteriosa e inexaurível, advertida tantas e tantas vezes por detrás dos rostos dos muitos pais que o geraram em vida: “Tam pater nemo”, ninguém é pai assim, escrevia Tertuliano.
Quem vive nesta posição religiosa nunca deixa de ser filho, até ao fim dos seus dias. E irá introduzir os seus filhos a uma paternidade que é maior do que a sua: uma paternidade que dá liberdade, expressa concretamente naquele dirigir-se ao Pai que “sabe melhor do que nós aquilo de que precisamos”, que é oração.
A liberdade é o sinal distintivo de quem se descobre perenemente gerado e que tem a sua última raiz numa conceção religiosa da vida. Uma liberdade que pode ser reconhecida por dois sinais muito tangíveis. Em primeiro lugar, não se terá medo de lançar os miúdos na relação com este grande e último Pai, deixando-os livres porque confiados ao cuidado de alguém maior do que nós que nos gera também a nós (cuidado que muitas vezes pode ser identificado concretamente em figuras mais cheias de autoridade do que nós, para quem não somos impedidos ciosamente de reenviar quem nos foi confiado). Para além disso, a um nível ainda mais pessoal, mesmo quando o avançar dos anos nos privasse de figuras mais velhas a seguir, poder-se-á viver aquela experiência – que é milagrosa – de deixar-se gerar por quem é mais novo do que tu, se calhar por quem foi teu filho, porque se deixa gerar por aquilo que o Pai eterno continua a operar nele.
Impressionou-me ler que don Giussani, no final dos seus últimos Exercícios da Fraternidade de CL (em 2004, um ano antes de morrer), disse diante de todo o “seu” povo: “Esta lição do Carrón é a melhor coisa que o Senhor me deu a perceber em todas as reuniões dos nossos Exercícios espirituais (…). É a coisa mais bela que eu ouvi na minha vida”.
Uma experiência de virgindade.
Voltamos, então, à experiência de que partimos, ao momento gratuito e insubstituível do chamamento à paternidade. Um pai que tenha a possibilidade de seguir o percurso que descrevemos – que na ternura pelo seu filho recorda que é gerado, sente a exigência de voltar a tirar a água da fonte da sua geração e quanto mais o faz, mais descobre no fundo de si mesmo o Mistério eterno que é Pai como nenhum outro –, como responderá ao apelo do filho? O seu olhar trespassará os olhos do filho, sabendo reconhecer naquele pequeno mendicante o fruto de uma história de que ele ainda não tem consciência. O pai alargar-lhe-á o horizonte, relembrando continuamente o pano de fundo do destino bom que tem nas mãos o seu efémero instante.
Um exemplo pode fazer compreender esta experiência. Só um verdadeiro pai, diante de uma etapa fundamental da vida do filho (a licenciatura, o casamento, o nascimento de um filho), vendo aquele homem que está a crescer, tem na cabeça também o pequenino de há 20-30 anos, como nem mesmo o próprio filho pode ter presente. E comove-se. E, no entanto, um pai que, com as suas poucas energias humanas consegue ter um olhar sobre o que era aquela criança que agora cresceu, nunca poderá saber o que será feito daquele homem, quando ele já não existir.
Esta experiência limite aumenta a comoção, que se transforma em entrega confiante daquele filho, dado, ao Pai, que de instante em instante nos olha como Jesus olhou Pedro, André, João, a Samaritana e tantos outros: reconhecendo naquele efémero presente de homem a criança que era – ainda mais do que o pai que o viu nascer – e o homem que será. Tornamo-nos participantes do olhar de Deus; isto é, ama-se o outro segundo o seu destino – como dizia tantas vezes don Giussani.
O olhar de um pai para o seu filho será por isso cheio de virgindade, na descoberta de ter que ver com alguém que não é sua propriedade, mas a quem só ele é chamado a responder. Quanto mais nos deixamos gerar, tanto mais poderemos experimentar na nossa carne a virgindade com que o Ser gera todas as coisas.
Pigi Banna (Catania, 1984) é sacerdote ambrosiano desde 2014. Licenciado em Letras Clássicas na Universidade Estatal de Milão, está a concluir um doutoramento em Teologia sistemática e História do Cristianismo antigo, para ensinar Patrologia no Seminário de Venegono. Nestes últimos anos, foi-lhe pedido que acompanhasse professores e alunos dos Liceus (GS).