Calcutá, 1979. Madre Teresa com um dos seus pobres

Caridade. O início de um mundo novo

Na crise de hoje, os gestos de caridade constituem um juízo cultural e político. E colocam-nos diante de uma questão decisiva: propor um ideal concreto, que responda às necessidades e agarre o coração.
Davide Prosperi

Há alguns anos que se ouve repetir, cada vez mais, e mais aborrecidamente, o mesmo refrão: existe uma crise política, em Itália e não só. Também as últimas eleições, que deveriam ter punido uma mudança de rota esperada e proclamada (pelo menos tendo em conta o número de votos que a atual maioria obteve), na realidade contribuíram só para reforçar a perceção melancólica de que a política perdeu, de uma vez por todas, o seu papel de representação; se não ainda em termos institucionais, pelo menos como representação das exigências do povo.

Este sentimento é alimentado pelas redes sociais e é apregoado por tantos mass media, que fazem o jogo daqueles sujeitos políticos e culturais que se identificam com a antipolítica e a destruturação da sociedade. Depois, o que é que importa que diante desta situação não exista nenhuma proposta concreta para construir alguma coisa? É uma questão que, para a maioria, parece irrelevante; agora é o momento de demolir, porque tudo está podre e não merece estar de pé…

Ora, que a política esteja em crise está diante dos olhos de todos. Mas, como eu vejo a questão, tal crise ruinosa não resulta da ausência de uma classe dirigente, nem sequer da falta de força de uma rede associativa, dos famosos “corpos intermédios” – associações, sindicatos e etc. – que, no entanto, são fatores cada vez mais evidentes. O caráter profundo desta crise é outro: a renúncia a pensar que a política é, antes de mais, uma tentativa de expressão de um ideal.

O aspeto mais dramático da época que estamos a viver é precisamente a ausência da proposta de ideais. Ainda que se tratassem de ideais parcelares ou limitados, como aconteceu em tantas épocas da nossa história (como é, por exemplo, o caso do 68’), em que, em todo o caso, certos ímpetos eram expressão de uma tentativa de dar resposta às perguntas profundas do homem. Depois, muito frequentemente, traíram aquele ímpeto inicial, tornando-se ideologia, na medida em que não se confrontaram com a realidade em todos os seus aspetos. Mas agora constatamos amargamente que não há sequer esta tentativa.

Porque é que hoje, cada vez mais, nos juízos e, consequentemente, nas decisões, prevalece “a barriga”? Porque só a minha necessidade ou interesse imediato têm valor, no sentido em que já não há nenhum ideal que seja afirmado, reconhecido, pelo qual valha a pena lutar e, portanto, pensa-se que, deste modo, nos possamos sentir mais livres. O único resultado, no entanto, é uma escravidão da mentalidade dominante, daquela mentalidade que, sem nos darmos conta, nos plasma na conceção e que, por isso, don Giussani identificava com a palavra “poder”. Porque inevitavelmente existe sempre um poder que avança, que te solicita a fazer aquilo que ele quer; e será sempre cada vez mais assim quanto mais nos encaminharmos para uma conceção da pessoa autónoma e desligada de relações, afeições e realidades educativas autênticas que possam sustentar a construção de um sujeito humano maduro.



Devemos tomar consciência que esta é a estrada em que, voluntariamente ou involuntariamente, embocámos. E é preciso mudar de rota.

É por isso que, nos últimos anos, o CL propôs outra modalidade de viver a relação com a política. Não foi uma renúncia, mas a afirmação da necessidade de tomar consciência deste momento de viragem histórica que não diz respeito apenas aos católicos, mas à raiz do desconforto que ameaça profundamente os fundamentos da nossa sociedade.

Em que consistiu a preocupação educativa desta proposta? Na afirmação decidida que o primeiro travão a este poder é a construção de um sujeito humano sólido. Também a ideia recente de ver o renascimento de um partido católico no nosso País, quando já não há um tecido social que o identifique, arrisca ter um alcance muito curto. Voltamos inevitavelmente ao mesmo ponto: hoje, mais do que nunca, não será possível fazer um partido se falta um sujeito que vive uma certa experiência ideal. Este é o verdadeiro problema. O desafio atual é repropor que o ideal vivido é alguma coisa de muito concreto.

Neste sentido, eu acredito que certos gestos de caridade que o CL tem vindo a fazer desde há anos tenham um significado que vai bem mais além do que a mera recolha de bens ou fundos para os mais necessitados. A verdade é que colocam publicamente um juízo cultural, mas também político, na medida em que representam uma forma concreta de repropor um ideal, que se torna sempre uma hipótese de resposta a certas necessidades.

Nas semanas passadas muitos de nós participaram em diversos gestos de caridade, que continuarão de várias formas nos próximos meses, como as Tendas de Natal para sustentar os projetos de cooperação da AVSI ou o grande gesto nacional do Banco Alimentar, sobre o qual leram nas páginas anteriores.

Tomemos, por exemplo, exatamente este último, um gesto de dimensões colossais, que recolheu o correspondente a 17 milhões de refeições a dar a quem tem mais necessidade, graças sobretudo ao testemunho dos 150 mil voluntários – muitos dos quais jovens – que animaram o dia mostrando a todos que pode ainda haver um ganho para a própria humanidade num gesto gratuito. É interessante tentar fixar a atenção nas razões que estão na origem de um tal transporte para este género de gestos: de onde nasce e onde nos pode levar? Certamente tantos que participaram neles fizeram-no por diferentes motivos, pessoais e não só. Mas há sempre uma fonte de onde parte o contágio.

A coleta do banco alimentar

Nós estamos a viver, hoje, uma condição na qual se abrem muitíssimos desafios para a sociedade e para a humanidade, a todos os níveis. Mas em tudo isto é como se faltasse um juízo sintético.
Por exemplo, contaram-me que, durante um encontro público em Milão em que foi proposto um testemunho das Irmãs da Caridade da Assunção sobre como elas oferecem uma disponibilidade real a ajudar os imigrantes – das questões mínimas até à educação – gratuitamente e muitas vezes sem ser reconhecidas, alguns dos presentes – em grande parte cristãos empenhados – advertiram uma espécie de distância, expressa a meia voz com palavras do tipo «sim, está bem, mas estes aqui estão a invadir-nos, são precisas barreiras, travar as chegadas…». De onde nasce uma reação destas? Porque é que podem perceber o escândalo de uma distância até diante de gestos assim profundamente humanos? Causa escândalo também a nós porque esta gratuidade, este modo de fazer e de acolher, é um juízo que põe em causa uma mentalidade em que estamos, infelizmente, mergulhados e faz com que um hábito relacionado com uma certa forma de sentir as coisas perca força: a caridade é um juízo histórico, e não apenas alguma coisa que tem que ver com um espaço de generosidade que uma pessoa pode ter na vida.

Porquê, então, repartir exatamente da própria caridade para repropor o ideal? Porque a única coisa que pode ter a força de agarrar o coração do homem, seja qual for a condição em que se encontre, é aperceber-se de um olhar diferente sobre si, aperceber-se que a sua vida tem valor para alguém. Aperceber-se que tem um destino e que este destino é Bem.

Em Reconhecer Cristo, don Giussani parte exatamente dali: qual é o fator de diversidade onde tu te embates, no presente, com o facto de Cristo contemporâneo? Vês pessoas que vivem com esta diversidade boa, profundamente humana. Este é o início de um mundo novo, porque é o princípio de um sujeito novo na história, que é gerado pelo encontro com Cristo presente.

«O trabalho que se torna obediência chama-se caridade», observa don Giussani: «O amor da mulher que se torna sinal da perfeição final, da beleza final, chama-se caridade. E o povo que, em vez de ser sujeito de uma história humana cheia de litígios e de lutas, se torna história de Cristo, reino de Cristo, glória de Cristo, é caridade. Porque a caridade é olhar a presença, cada presença, cheios do ânimo da paixão por Cristo, pela ternura de Cristo». Letícia e alegria, ou seja, aquilo que desejamos também na vida comum, são possíveis só nestas condições. Caso contrário «são duas palavras que é necessário arrancar do vocabulário humano», já não existem: «Existe o contentamento, a satisfação, tudo aquilo que quiserem, mas a letícia não existe; porque a letícia exige a gratuidade absoluta, que só é possível com a presença do divino, com a antecipação da felicidade, e a alegria é a sua explosão momentânea, acontece quando Deus quer, para sustentar o coração de uma pessoa ou de um povo em momentos educativamente significativos».

É isto, «sustentar o coração de um povo», para que «não seja um conjunto de caras, mas o reino de Cristo que avança». É por isto que a caridade é aquilo de que temos necessidade: porque, como conclui Giussani, «é a lei de todos».