Irredutível

Uma viagem entre quem não fugiu, não obstante a crise humanitária. No País onde um salário vale uma caixa de ovos, há gente que trabalha (também gratuitamente). Para o bem de todos, Francisco, Bernardo, Argenis, Andrea… A grandeza de um povo.
Monica Poletto (Presidente da CDO Obras Sociais)

Nos últimos anos consolidaram-se tantas relações de amizade entre obras italianas e latino-americanas. A Mónica e os seus amigos encontraram-se frequentemente a dar com obras sociais em tantos Países da América Latina, no âmbito de programas que chamaram de “obras gémeas”.

A dona Ana parte de casa às quatro e meia da madrugada para estar, às oito, no pequeno laboratório artesanal onde faz um estágio não remunerado. Desta maneira aprende a fazer chocolate. É uma bela oportunidade, pela qual está grata, e não se vive propriamente um momento em que se possa permitir não agarrar as oportunidades. Na Venezuela o salário-base é de 18.000 bolívares por mês (5 euros). Uma caixa de ovos custa 12.000. Um saco de pão fatiado, 3.000.

No País a mãos com dois Presidentes – o “oficial”, Nicolás Maduro, e o “autoproclamado interinamente”, Juan Guaidó –, diante do qual a Europa está dividida e Donald Trump não exclui a ação militar, uma crise humanitária sem precedentes está a levar milhões de pessoas a fugir. E, quem fica, a viver em condições dificílimas. Sobrevive-se com as agora raras ajudas alimentares do Estado ou das poucas estruturas caritativas que conseguem fazer entrar alimentos; e mais frequentemente com o dinheiro que chega de familiares que saíram do país para trabalhar no estrangeiro. Ou trabalhando nas poucas empresas que conseguem ainda operar a nível internacional, tendo por conseguinte acesso aos dólares.

Na maioria dos casos não há relação entre o salário ganho com o próprio trabalho e a possibilidade de viver. Não estamos a falar de viver com dignidade. Estamos a falar de viver, ponto.

E no entanto há gente que trabalha. Ou que quer trabalhar.

O hospital público de Caracas é uma torre de nove andares. O elevador está avariado há muito tempo e a Pediatria é no nono andar. Pelas escadas mães cansadas carregam os seus filhos doentes.
No hospital não há luz, porque muitas lâmpadas foram roubadas. Ou fundiram-se e não há dinheiro para substituí-las. Por conseguinte, ao anoitecer não se vê quase nada, até de manhã. Em todo o caso curar os doentes é uma tarefa árdua também durante o dia: não há medicamentos, os equipamentos não funcionam. Mas os médicos e os enfermeiros estão lá. São poucos, mas estão lá. Teriam oportunidades de trabalho mais bem remuneradas em clínicas privadas, onde a classe abastada do País se vai tratar e onde eles são muito requisitados. Muitos porém decidem aceitar um salário de fome e a convivência quotidiana com a impossibilidade de curar as pessoas. E isto tem já algo de incrível.

Alejandro, Mariloly, Diana, Henry e outros amigos trabalham na associação Trabalho e Pessoa, que organiza em todo o País cursos de formação laboral. Formam mais de 1.000 pessoas por ano, ensinando a fazer o chocolate, a cuidar de pessoas idosas, a tornar-se “empresários da beleza” com cursos de cabeleireiro. Os relatos de quem os frequenta têm um traço em comum: «Deram-nos uma oportunidade e com isto restituíram-nos uma dignidade. Com o nosso trabalho conseguiremos dar um pequeno contributo para o sustento da nossa família. E juntos faremos algo de útil para o nosso povo, para o bem das pessoas». Utilidade, dignidade, bem de todos.

Andrea e os seus amigos gerem uma rede de ajuda para tratamentos médicos. Com o apoio da Fundação Banco Farmacêutico, Horizontes e outras associações, conseguem distribuir cerca de 1.200 tratamentos por mês a pessoas que não teriam de outra forma qualquer possibilidade de tratar-se. Andrea deu início a esta obra porque ela própria esteve doente, experimentou o que significa não poder tratar-se e conhece a gratidão para com quem lhe permitiu fazê-lo. A gratidão está na origem deste pequeno milagre.

Cada medicamento que chega vem já destinado a uma pessoa, com a qual há um contacto constante para verificar se há uma necessidade efetiva. Os fármacos são poucos, e dá-los a um significa não dá-los a outro. Andrea é posta à prova por esta necessidade contínua de fazer escolhas tão extremas, diante das quais todos os critérios que em conjunto procuram dar-se são insuficientes. Há uma pessoa que pede e há os medicamentos que não chegam. E há um mistério amigo que se faz companheiro quotidiano. Que não resolve, mas que alimenta o coração.

Bernardo e Argenis vivem em Merida. A Argenis trabalhava, mas o ordenado não era suficiente para manter a mulher e os três filhos; o Bernardo era pensionista e também no seu caso a importância recebida não permitia viver. Houve amigos que se dispuseram a ajudá-los economicamente, mas isto não teria bastado. Não teria dado razões para se levantarem de manhã, não teria dado resposta ao desejo de serem úteis, construtivos, protagonistas.

Com Alejandro, Leo e uns poucos amigos italianos começam por procurar perceber o que fazer e surge uma ideia: «Colocamo-nos ao dispor da nossa comunidade fazendo gratuitamente o trabalho que somos capazes de fazer, e vocês ajudam-nos nisto». Argenis começa por propor-se às escolas para ensinar música. Os professores falam da iniciativa aos seus alunos, que aderem com entusiasmo. Nasce o primeiro coro inter-escolas de crianças de Merida, com mais de 100 elementos.

Bernardo, ao invés, apaixonado por arte e história, olha com entusiasmo para a belíssima catedral da sua cidade. Ali estão guardadas a fé, a história, a beleza. É o coração do seu povo, que tem tanta necessidade de voltar a dar-se conta da própria grandeza. Portanto, precisa de redescobri-la e por isso organiza um curso para visitas guiadas. Começa a formar os primeiros vinte e cinco jovens e o sucesso é maior do que qualquer previsão: de acordo com as pessoas e com as autoridades locais trata-se do programa cultural mais importante que surgiu em Merida nestes anos. A universidade local reconhece o curso e dá um certificado aos participantes. O Bernardo, enquanto faz o relato, tem o entusiamo de uma criança. Uma criança, nas suas palavras, «renascida aos 68 anos». Precisa de concentrar-se para recordar que não está a instruir guias para a Catedral de Florença, mas para a Catedral de Merida, Venezuela.

Francisco é um jovem que estudou guitarra jazz e que tem uma grande paixão pela música. A música venezuelana é belíssima e dar-lhe-ia tanto prazer que fosse conhecida. Alejandro junta-se com ele a pensar como concretizar o sonho, e como torná-lo oportunidade de trabalho. No Meeting de Rimini encontra-se com Eugenio, que tem uma editora e que se oferece para editar o disco, antecipando as despesas e depositando o lucro para sustentar o trabalho de Francisco. E com Micael, que é professor de música e pode ajudar o Francisco na seleção das peças musicais. Mas que tema escolher? O trabalho. Porque o povo venezuelano é um povo que trabalha. E que, também enquanto trabalha, canta. Francisco envolve um dos maiores guitarristas venezuelanos, que se põe à disposição do projeto e convida grupos e cantores, também pessoas culturalmente distantes dele, pessoas com uma história próxima do atual partido no Governo. Para que este disco seja para o bem de todos. Escolhe como tema que não pode existir construção de um povo sem trabalho. E sem um abraço.

Carlos é filho de uma das famílias de industriais importantes da Venezuela. Têm plantações de cacau e produzem chocolate. É um jovem, no geral, pouco tocado pela crise económica: as suas empresas vendem muito no estrangeiro, o produto é de ótima qualidade e tem o seu segmento de mercado. Não consegue porém estar tranquilo. Em maio nascerá a sua primeira menina, e que País está a ser preparado para ela? Por isso envolve-se com grupos de empreendedores e intelectuais que se encontram para perceber em conjunto qual a possibilidade de uma saída pacífica da atual situação política e social.

Parece uma tarefa impossível: a Venezuela tem o petróleo, todos têm interesse nele. Como poderá encontrar o seu caminho? O País tem seis milhões de funcionários públicos, que não tem condições – desde há muito tempo – de manter. As infraestruturas estão arruinadas. A população é pobre. A maior parte das empresas industriais estão fechadas. E no entanto o Carlos percebe que o caminho é aquele. Nenhum personalismo messiânico, mas pessoas que começam a ter por mote o bem comum; que em primeiro lugar decidem pôr-se à disposição do País, das pessoas; que sejam favorecidos e procurados ambientes nos quais se educa para a construção daquele bem comum. É necessário dar uma ajuda, sair da zona de conforto, cumprir o êxodo necessário para compreender o outro, «que é irmão», como recordava o papa Francisco à CEI em 2015.

Encontrar este pedaço de povo venezuelano foi uma viagem impagável à descoberta da irredutibilidade. Do coração, que renasce diante de qualquer pessoa que o interpele. E de quem não para de interpelá-lo.