Para melhor vos amar
Notas da intervenção da Maria Durão no Faith's Night Out 2019No final de 2014, quando comecei a dizer à minha família e amigos que ía trabalhar para o Vale de Acór, reparei numa ou outra reacção de preocupação. Realmente há um risco neste tipo de trabalho, que todos percebemos: trabalhar na recuperação de pessoas, de adultos, na educação e recuperação de adultos com passados tão difíceis, tão dominados pelo consumo de drogas, de álcool… traz os riscos todos que podemos imaginar. É um trabalho onde é preciso ouvir muito, dias inteiros a ouvir, onde é preciso compreender o outro, onde é preciso dar ordens (na maioria das vezes a pessoas com três vezes o meu tamanho e dez vezes mais força), é preciso dar-se. E isso, como é óbvio, traz consigo os riscos que já podemos imaginar. Desde o (mais ao nível psicológico e já muito falado) Burn out, ao talvez menos psicológico risco de apanharmos um murro no nariz...
Mas há um risco maior, parece-me, neste tipo de profissão. Um risco súbtil e terrível que é o de nos tornarmos uma espécie de "profissionais da caridade": aqueles que, como profissão, fazem o bem. E o risco disto não é tanto o de nos acharmos superiores ou moralmente irrepreensíveis porque, felizmente, bastam alguns minutos de trabalho para desabarem todas essas ideias, caso tivessem chegado a formar-se. O risco está nisto: em nos esquecermos de onde vem, de onde brota, de onde continua a brotar constantemente no tempo, o meu fazer bem. O risco está sempre nesta tendência para nos esquecermos do que as coisas são. Voltar sempre ao que as coisas são, compreender o sentido do que fazemos, porque é que nos interessa? Qual a diferença entre fazer mecanicamente ou fazer estando consciente do sentido, sendo que num caso e noutro estou "a fazer" na mesma? Compreender o sentido do que faço permite que, fazendo-o, eu cresça. O contrário é arriscarmos a que a vida se torne um acumular de gestos que não produzem nada de novo em nós. O que é que isto quer dizer? No limite quer dizer que até de fazer o bem me cansarei, se não perceber o sentido e o objectivo.
Acontece que há 2019 anos atrás, um homem, igual a todos os outros e diferente de todos os outros, porque era Deus, aceitou morrer numa cruz. Aceitou sofrer e dar a vida por cada um de nós aqui hoje presente. Nesse momento acontece a maior revelação da história. Não há start up, não nenhuma coisa que apareça de novo, que seja mais novidade do que isto. Naquele momento acontece a maior revelação da história: Deus revela-se como caridade. Por isso, para nós, cristãos, a caridade não é uma técnica, não é uma capacidade e muito menos o agitar-se freneticamente em actividades do terceiro sector. A caridade é esta marca inconfundível de quem vive comovido a sua relação com Jesus. É porque recebemos tudo na relação com Jesus que podemos dar tudo aos outros. Já dizia o Padre Pedro Quintela numa entrevista à Renascenca: "Aqui a grande questão é vir da fé à caridade. Não pretender ter caridade que possa não ter origem na fé."
Mas se é importante pensar na origem da caridade, também proponho olharmos para os frutos.
O Fernando teve uma vida inteira de consumo de álcool, de solidão e de tristeza. Pelos seus 50 anos aceita entrar no Vale de Acór onde faz um caminho muito bonito de reconciliação consigo, com o filho que praticamente não tinha conhecido... Passados 5 anos o Fernando descobre que tem um cancro. Penso que não me esquecerei mais do dia em que o fui visitar ao IPO. Não me vou esquecer mais da cara do Fernando naquele dia em que tinha havido um rodopio de visitas, (de entradas e saídas) a dizer-me: "Nunca pensei que Deus pusesse tanta gente à minha volta." Impressionou-me muito o Fernando que toda a vida tinha fugido ao sofrimento e à dor, toda a vida tinha bebido para fugir a isso, ali, naquele momento, aceitava o sofrimento e a morte com uma paz poderosa que vinha do encontro com o Vale de Acór, que vinha de se saber amado.
Também a Adelina tem uma vida de consumo, de ruptura com tudo e com todos e, tal como o Fernando, entra no Vale de Acór e faz um caminho belíssimo de conversão, de crescimento e mudança. Ao fazer o programa no Vale de Acór encontra o Zé com quem se vem a casar. O Zé também ele a fazer o programa no Vale de Acór. É pedida em casamento no dia em que sabem os dois que a Adelina tem um cancro. Lutou com o cancro e morreu em Dezembro. No dia do seu enterro aparecem os dois filhos com quem ela não tinha conseguido retomar a relação – morreu com esta sensação de “incompleto” -, embora o VdA tenha conseguido estabelecer uma ligação com eles e, por isso, eles apareceram no enterro. Dois filhos muito magoados pela história da mãe, que era a história deles também. Foi absolutamente comovente ver, no fim da Missa, estes dois filhos… foi comovente vê-los na Missa. Mas foi realmente de ir às lágrimas vê-los avançar para carregar o caixão da Mãe. Não me lembro de mais nenhuma imagem que me faça tanto gritar por dentro: vitória! Vitória porque o que aquela imagem a mim me dizia é que a vida da Adelina (e isto é verdade para mim também), para lá do “sabor incompleto” que tinha ficado, para lá do mal que a própria fez aos filhos, aquilo que dominou a sua vida (e naquele gesto isso era claríssimo), através do encontro com o Vale de Acór, foi um perdão. E não há maior vitória do que isso. Só um parêntesis: com estes dois exemplos não quer dizer que toda a gente que entra para o Vale de Acór fica doente e morre com um cancro. Há outros exemplos…
Penso poder falar por todos nós que trabalhamos no Vale de Acór ao dizer que no nosso dia a dia, nos cansaços, nas alegrias, a dimensão da caridade, aquilo que nos permite vivê-la, é a relação com o centro, é esta consciência de que sem aprender a receber de Deus não podemos dar nada a ninguém. Por isso, aquilo que tentamos fazer é trabalhar, caminhar, aprender com os que nos foram dados, levando muito a sério as palavras de Jesus na última ceia em que dizia: "Sem mim, nada podeis fazer”.