Simplesmente o próximo
Estivemos com o sociólogo, teólogo e político basco Joséba Arregi, que ficou fascinado com o livro de Mikel Azurmendi sobre o CL, do qual ressai um modo de ver a realidade que «implica uma mudança total da cultura moderna»«O significado provém sempre de ver o outro e as suas necessidades. Sair de nós próprios para nos vermos de fora: pelos olhos concretos das pessoas que encontramos». Joséba Arregi foi Conselheiro do Governo Basco, com a sua política cultural transformou Bilbao e, mais tarde, quando se começou a sentir pouco à-vontade com o nacionalismo, abandonou a política. É sociólogo e teólogo, frequentemente interpelado pela imprensa espanhola, e é amigo de Mikel Azurmendi, com quem compartilhou a mágoa por um País Basco martirizado pelo terrorismo.
Neste diálogo com a Passos, Arregi conta-nos por que ficou fascinado pela leitura de El Abrazo, o último livro de Azurmendi que apresentaram juntos em Madrid, em Novembro, num diálogo com Julián Carrón (veja o vídeo aqui). O livro, como dissemos no número anterior da revista, é uma viagem de dois anos mergulhado naquilo a que Azurmendi chama a «tribo» de Comunhão e Libertação. E uma das maiores provocações contidas no livro nasce justamente da experiência da caridade, que segundo o sociólogo consegue, «ao contrário das ideologias», desenvolver de forma pacífica uma «identidade pessoal e colectiva» que torna melhor «qualquer sociedade avançada, mesmo a mais democrática e liberal».
Porque lhe causou tanto impacto este livro?
Porque me provocou, no melhor sentido do termo. Obrigou-me a pensar se o que eu aceitava como sendo a verdade da minha vida – uma posição que se foi formando após muitas crises, muitas histórias e muitos anos – pode continuar a ser defendido tranquilamente. Sucedeu assim porque o livro de Azurmendi não foi escrito a partir de hipóteses teóricas, nem dum intelectualismo analítico, mas transmite simplesmente a experiência de vida das pessoas que tentaram verificar aquilo que descobriram num encontro, que é para eles o encontro com Jesus, com Deus. São pessoas que procuram viver uma verdade que fascina quantos entram em contacto com ela. Fascina porque te põe diante dum espelho e és obrigado a perguntar-te: como poderei mudar para estar à altura da verdade que me transmitem?
Sublinhou que isto «é um modo diferente de ver a realidade»...
Hoje em dia não existe uma linguagem com lógica própria para ver as coisas. A linguagem mais importante, que compreende em si todas as outras, é a linguagem técnico-científica. Sem darmos por isso, esta linguagem caracteriza o nosso modo de ver a realidade, a sociedade e a vida. Somos continuamente submetidos ao parecer dos especialistas, àquilo que a ciência diz e promete. São estes os auscultadores e os óculos com os quais olhamos para tudo... Mas, como diz Azurmendi, esta visão é muito redutora, muito “quantificadora”, muito materialista no pior sentido do termo. Ele defende que o sentido da realidade se descobre justamente a partir duma posição de aceitação do outro. Este caminho obriga-me a ver as coisas dum outro ponto de vista, com os olhos do outro. A grande pergunta a que as doutrinas humanistas não sabem responder é a pergunta sobre o que é o homem. O homem é sempre o outro. Isso muda a visão da realidade.
Um dos pontos que mais interpelam Azurmendi é a caridade que presenciou naquela “tribo”: ele diz que se o cristianismo é considerado irrelevante por grande parte da cultura contemporânea é porque «não se olha para a caridade». O que é que isto lhe diz a si? Faz sentido falar de caridade neste mundo?
Penso que sim, se bem que muitas vezes a própria palavra parece que tem um significado negativo. Os termos caridade e caridoso foram substituídos, mesmo numa parte da Igreja, pela palavra solidariedade, que parece um termo mais forte. Mas penso que se pode e deve tornar a chamá-la assim, “caridade”. Num estado de direito desenvolvido, como as democracias actuais, “solidários” todos somos de certa maneira. Quando pagamos impostos estamos a fazer um exercício de solidariedade, ainda que não voluntário – não por acaso se chamam impostos –, de cifras que permitem uma redistribuição de quem tem mais para quem tem menos. É uma forma de solidariedade em que nós cidadãos, quer queiramos ou não, estamos integrados. Mas que, no fundo, não estabelece nenhuma relação pessoal. A caridade é outra coisa, vai além da solidariedade; não a nega, mas vais além.
Porquê?
Porque é feita por pessoas concretas para pessoas concretas. É o núcleo da mensagem do Evangelho, a parábola do Bom Samaritano. E é isso que Jesus pede a cada momento, amor ao próximo. O próximo é aquele que está ao nosso lado, que a vida põe ao nosso lado; por opção ou porque pertencemos à mesma família, porque trabalhamos juntos ou é um vizinho de casa, ou então a pessoa vemos todos os dias e paramos para dois dedos de conversa… É uma relação humana entre duas ou mais pessoas, sem a qual a solidariedade acabaria por perder todo e qualquer aspecto de relação e de humanidade. A solidariedade é abstracta. Eu não sei a quem estou a ajudar ao pagar os meus impostos. A caridade é que estabelece esta relação humana com as pessoas, que vai além da solidariedade. Mas o ponto de partida é a confiança em Jesus, acreditar quando diz que, se se tem fé n’Ele, o resto conta pouco. Neste sentido, a caridade é este “mais”, é este comprometer-se mais com o outro, que tem olhos, uma cara, nos olha. Qualquer coisa que estabelece um fundo de relação humana que nos exige o facto de sermos cristãos e o Evangelho.
Sobre a experiência cristã de CL diz que o surpreendeu o facto de não procurar defender a verdade com palavras, mas através dos testemunhos: pessoas e gestos que tornam presente o olhar de Cristo.
É a verdade da vida e não a verdade do livro. É isso que eu acho que chamou a atenção de Azurmendi e, através dele, também a minha. É a apologia da verdade que aqueles cristãos testemunham. Não dizem: «temos de fazer aquilo, temos de entender as coisas desta maneira…», mas «eu vivo assim»; «eu dou testemunho acolhendo crianças na minha família»; «eu vivo e dou testemunho da verdade indo à caritativa a Cañada Real (um bairro de Madrid onde há elevado consumo de droga, ndr), estando lá, vendo a estatura humana das pessoas que vivem como marginais»; «eu dou testemunho da verdade vivendo como educador, acompanhando as novas gerações no seu crescimento, olhando para o outro e vivendo a partir do olhar dele, da verdade do outro». Não é uma demonstração lógica nem retórica, nem uma verdade política, mas uma verdade viva. E isso confere-lhe uma força tremenda.
Porque é que a leitura deste livro lhe levanta também o problema da liberdade?
Porque evidencia um modo de entender a liberdade que implica uma transformação de toda a cultura moderna. A cultura moderna entende a liberdade como autonomia, como a quebra de relações. Aqui, porém, vê-se uma liberdade que nasce precisamente duma dependência. Qual é a dependência? Aceitar o testemunho de Jesus que se consome pelos homens. Semelhante liberdade só se pode alcançar nesta dependência, que é a fé n’Aquele que chama algumas pessoas concretas ao encontro, a quem estas pessoas se devem abrir. A fé assenta na dependência, na força que vem deste encontro para ser livres, para abrir-se e aceitar os outros.
A liberdade leva-nos à racionalidade da fé. Azurmendi parte dos factos, dá crédito a alguns testemunhos que dizem que a origem do que acontece é divina. Parece-lhe um caminho adequado para chegar à fé?
Pode ser. Os caminhos que conduzem à fé podem ser muitos. Podem fazer-se experiências de vários tipos. Mas aquilo que considero muito importante é que todos só caminhos são bons, se são acompanhados ou se baseiam em testemunhos de vida.
Parece-me que não se trata apenas de um testemunho de tipo ético...
Não é etico, mas contém dois elementos: ou seja, a liberdade como dependência. Contém o elemento do “eu vivo assim” – primeiro elemento –; mas a força para poder viver assim não vem de mim mesmo – segundo elemento –, vem de Alguém que me sustenta, Alguém que me encontrou, que me chamou, me dá e possibilita a liberdade pela qual eu vivo. É um raciocínio que não deriva duma racionalidade técnico-científica ou analítica: nasce duma verdade de vida, duma racionalidade aberta. Coisa que para a racionalidade técnico-científica, lógica, do Iluminismo, é inalcançável. Quando Stephen Hawking morreu ouvi dizer algumas coisas que atraíram a minha atenção. A certo ponto os jornalistas citavam a frase de Hawking: «Para fazer ciência não preciso de Deus». Ora bem, a mim parece-me uma frase profundamente científica. Mas citavam também outra: «Para a razão humana Deus não existe». Esta frase vai totalmente contra a ciência, porque a ciência não se pode pronunciar sobre a totalidade da realidade; ultrapassa os limites dentro dos quais a razão pode ser ela própria. Nega que possa existir outro tipo de racionalidade vital, não sentimental mas vital, de testemunho de vida, que abre para novas dimensões da realidade. Estas dimensões só se podem ver – saber olhar para poder ver – através daquilo que vem do encontro com Jesus e do encontro com Deus.
Mas afinal, em que medida é que a experiência de que estamos a falar traz esperança para este mundo de homens tão desorientados?
É o único caminho para sair da confusão, da desorientação, da falta de acolhimento que os homens sentem, e daquela contínua fuga em que vivemos. Fugimos da realidade, fugimos do presente, procurando a novidade numa espécie de autoestrada para ver se com a novidade acontece alguma coisa, algo que no dê uma certa estabilidade. E isto leva-nos outra forma de ver as coisas, de viver o tempo e a realidade. O significado, ao invés, vem sempre de ver o outro e as suas necessidades. Sair de nós mesmos para nos vermos de fora: não “a partir de fora”, com a consciência reflexa que o idealismo transcendental nos ensina, mas sim com os olhos concretos das pessoas que encontramos. Aquilo a que se chama, simplesmente, o próximo.
Fernando de Haro - Nascido em Madrid em 1965, é director da revista online Pagina Digital e do programa A Mañana fin de semana da RáDeus Cope. Trabalhou para a CNN Plus, Canal Plus, Nueva Empresa, Alfa Y Omega. É CEO da produção televisiva N MeDeus, autor de reportagens televisivas e livros.