Carlo Wolfsgruber. Marcha contínua
Qual foi a semente plantada por Giussani em 1968? Carlo Wolfsgruber, um de seus primeiros alunos, narra seu percurso no CL, entre vida burguesa, Poder Operário, enganos políticos. Até aos universitários de hoje «que queimaram meio século de história»«Em 1968 tinha vinte e sete anos. Era investigador no CNR, o Conselho Nacional de Investigação. Tinha entrado para os Memores no ano anterior». Começa assim a história de Carlo Wolfsgruber, 77 anos, um dos primeiros alunos de don Giussani no Berchet e um dos primeiros Memores Domini, a experiência dos leigos dedicados a Cristo, que nasceu do carisma do CL, de que foi um dos responsáveis até há poucas semanas. Assistiu como protagonista a todo o desenvolver-se da vida do movimento. E, especialmente, o desarticular-se decisivo de 1968: que viu a hemorragia da maior parte dos membros da então Gioventù Studentesca [Juventude Estudantil].
Foram os anos em que don Giussani recomeçou a partir de alguns que, como ele próprio disse, «permaneceram fiéis à sua própria história». Foi a crise mais profunda da história de Comunhão e Libertação. Perguntámos a Wolfsgruber como é que a semente plantada por Giussani germinou durante aqueles anos. Porque é então, que o sacerdote da Brianza foca o núcleo da proposta, em torno da qual, depois, se desenvolveu a vida do seu movimento: «Tradição e discurso deixaram de ter a capacidade de mover o homem de hoje. A forma como o cristianismo começou foi um acontecimento por uma presença, por um encontro». Aquelas palavras vibram hoje com a mesma força provocativa. Para o CL, num certo sentido, o sessenta e oito ainda não acabou.
«Sim, já estava nos Memores, ainda que não estivesse na primeira casa, a de Gudo, onde entrei em finais de 1969. Mas frequentava ao mesmo tempo, um grupo maoísta de extraparlamentares». Uma vez, conta ele, tinha ido a Turim para começar um grupinho do Potere operaio [Poder Operário], no ambiente dos investigadores científicos, e ali conhece, entre outros, Marco Donat-Cattin, que mais tarde acaba entre os terroristas de Prima Linea [1976, grupo de terroristas oriundos de Potere operaio] (ndt).
A trajectória de Wolfsgruber é ao contrário da de muitos dos seus companheiros que encontraram don Giussani nos anos Cinquenta. Ele, acabado o Berchet [liceu em que Giussani ensinou] (ndt), inscreve-se em Química, em Pavia, onde não há GS [Juventude Estudantil, o primeiro rosto do CL] (ndt). Quase sem dar por isso, afasta-se dos amigos e aproxima-se dos grupos marxistas.
É a meio da década de Sessenta que torna a entrar em contacto com os companheiros do liceu. Confidencia também um episódio que aconteceu num dos encontros do Poder Operário. «Um dia, quase sem pensar nisso, disse que eu “tinha encontrado Cristo”. Eles reagiram, dizendo que eu estava maluco. E eu respondi que não, não estava maluco». Daquela forma reemergiu nele a consciência do que lhe tinha acontecido.
Entre as pessoas do movimento de que Carlo se reaproxima estão os amigos que começam a verificar a possibilidade de entregar a vida a Cristo. Os Memores Domini ainda não existem, ou melhor, são uma realidade em fase embrional a que chamam apenas Grupo Adulto. Mas entretanto, apesar das discussões com os amigos extraparlamentares, a paixão política, alimentada pelo clima de contestação, ainda continua muito viva nele. Mais, radical. «Houve uma altura em que me convidaram para entrar na clandestinidade, que era o passo antes da luta armada». Vai ter com don Giussani e expõe-lhe o teorema: é justo alvejar os ricos para ajudar os pobres. «Ele disse-me duas coisas. A primeira, que matar está sempre errado. Mas foi a segunda que mais me tocou: “Nunca mais poderias ir à caritativa à Bassa [periferia pobre em Milão] (ndt). Não podes deixar aquilo… Não é justo. Continua a dedicar-te àquilo que já começaste”». Carlo, com efeito, acompanhava no estudo depois das aulas um grupo de miúdos do segundo ciclo de quem gostava muito: «Desde sempre tive a ideia de que uma maneira de se ser solidário era pela educação, pela escola».
Hoje, parece impossível que se possam coadunar na mesma pessoa dois impulsos tão opostos, a dedicação total a Deus na virgindade e o pensamento na luta armada. No entanto, nas recordações de Wolfsgruber, é confirmado por um outro episódio, que também na dezena (ou pouco mais) de membros do Grupo Adulto, o horizonte, no fundo, era ainda o esforço político e social: «Nos nossos Exercícios Espirituais, de um daqueles anos, Giussani a um certo ponto, disse: “Se um de vocês agora se levantasse e dissesse “eu amo Jesus”, todos vocês o calariam de uma forma violenta”. E era verdade, pelo menos para mim, uma frase semelhante era inaceitável, e talvez quase todos a ouvíssemos como uma forma de pietismo. E ele acrescentou: “Temos de fazer um caminho que nos leve ao ponto em que, se uma pessoa o dissesse, nos edificaria a todos”». Para Wolfsgruber, o fundador do CL já tinha imediatamente claro o equívoco, «mas nós estávamos muito longe de perceber».
São meses de grandes discussões. A atracção pela política, tal como era concebida pelo mundo da contestação, continuava forte. «Tive de chegar a 1970 para me libertar definitivamente daquela tentação. Foi quando Giussani introduziu a expressão “memória de Cristo”».
Mas antes? O que tinha acontecido para chegar àquela incompreensão? «O encontro com Cristo, através do movimento, tinha-me mostrado uma alternativa real ao burguesismo de toda a gente. Era o fascínio por um ideal». O ideal de mudar o mundo. Até don Giussani falava de mudança do mundo, explica Carlo: mas não em termos revolucionários. «Na GS, pela primeira vez, tinha ouvido dizer, que o cristão levava a peito o destino de toda a gente, Escancararam-se-me todas as categorias cristãs, perante as quais percebia que havia alguma coisa nova face ao tipo de cultura burguesa da minha família».
Hoje a expressão “cultura burguesa” está coberta por uma camada de pó que a torna, agora, incompreensível a quem tem menos de trinta anos. «É a ideia de que cada um é que trata da sua vida. O problema da vida é a fachada, a respeitabilidade em sociedade. É o ter dinheiro, o carro. O burguesismo é procurar o próprio comodismo». Mas os líderes da contestação eram os jovens filhos daquele mundo, cuja forma mentis, no fundo, não tinha mudado, explica Wolfsgruber: «Tínhamos tido uma educação a esta espécie de decoro social que tocava as raias da hipocrisia, coisa que os jovens de hoje não têm. Nós fingíamos que não éramos hipócritas, quando o éramos».
No entanto, ao mesmo tempo, os jovens que seguiam don Giussani sentiam que tinham encontrado alguma coisa de excepcional: «Aos 17 anos trazia a vibração e a alegria no coração, porque sabia que levava o segredo do mundo. Era a razão pela qual considerávamos a geração precedente desajustada. Mas o segredo do mundo, para mim, tinha-se tornado quase imediatamente um valor a atirar à cara a quem não o seguia e não o aceitava». É este o humus a que a ideologia se iria agarrar. E que, primeiro, lançaria muitos giessini para os braços do Movimento Studentesco [Movimento Estudantil], e depois, a perder a fé.
Impressiona a lucidez dos juízos de Giussani enquanto se desenvolvem os factos. Como quando, em novembro de 1967, diz, num encontro do Grupo Adulto: «Se tivéssemos esperado Cristo dia e noite, até o comportamento dos nossos, na sua convivência na Universidade Católica, teria sido diferente. Foi generoso, mas quão verdadeiro?». Wolfsgruber lembra-se de que, um ano depois, precisamente em 68, o sacerdote afirma pela primeira vez que «já não é o tempo da tradição». «Para ele era muito claro que o ponto em que apoiar toda a vida era Cristo, mas não se tratava do Cristo reduzido a conteúdo de uma tradição de valores, mas de uma Presença», explica Carlo. Aquele Verão marca uma viragem.
Fala daquela intuição, expressa pela primeira vez aos giessini de Rimini em Torello, nas semanas seguintes ao Grupo Adulto, a um pequeno grupo de padres e depois nos Exercícios do Centro Péguy. Trata-se de um ponto de viragem e, ao mesmo tempo, de uma preocupação que será sempre recorrente. «Nos anos Oitenta, ele fala explicitamente de dois tipos de fé. Aquela em que Cristo é um conteúdo doutrinal e aquela em que é uma pessoa presente, aqui e agora. Nessa altura todos assentíamos. Mas eu percebia e não percebia. Pressentia-lhe a verdade, mas não percebia. O que Giussani nos queria dizer está, agora, o padre Julián Carrón a desafiar-nos a verificá-lo. Disto tenho a absoluta certeza».
Conta que no verão passado ouviu um testemunho de alguns universitários do CL. Neles viu a realização do que Giussani, nos primeiros anos, dizia que o movimento deveria ser. Refere-se, particularmente, a uma história que lhe lembrou as palavras que Giussani dirigiu a um director de um liceu de Milão, quando disse que não era da opinião de que católicos tomassem o controlo das únicas associações de estudantes. Afirmava o princípio do pluralismo na escola. «Um destes miúdos, terá 23 anos, ao director de um colégio, que lhe pedia a lista dos celinos a introduzir no estabelecimento a fim de que a nossa presença conseguisse mudar o ambiente, respondeu da mesma maneira: “A nós não nos interessa a hegemonia”». Mas o que impressionou Wolfsgruber não foi tanto o mérito do juízo, que, apesar de tudo, diz ele, é surpreendentemente semelhante ao de Giussani, quase sessenta anos antes, ou a espontaneidade com que aquela posição emergiu, «mas que a preocupação ao ajuizar aquela história era sobretudo a verificação da fé. Isto é: Cristo basta ou não para sustentar a vida? Ouvi e senti aquelas palavras como uma ferida no coração. É como se tivessem queimado sessenta anos de história. Vi naquele rapaz uma liberdade, uma humildade, uma firmeza… Hoje sou eu quem tem vontade de aprender com estes jovens».
Em 1972 Giussani experimenta fazer um primeiro balanço da grande crise de 68. As suas palavras foram publicadas num texto com o título La lunga marcia della maturità [A Longa Marcha da Maturidade]. E, a ouvir Wolfsgruber, aquele caminho, no limiar dos oitenta anos, para ele ainda não acabou. Porque não há certezas adquiridas uma vez por todas. «Apercebes-te quando descobres que acontece o que pensavas saber. Sabia-lo, mas não pensavas que também deveria acontecer. Há tanto tempo que o sabias», e continua: «É muito diferente acreditar que Cristo está e aperceber-se de que Cristo está. Quando acontece, percebes que até àquele momento tinha permanecido um estranho. Tinha-Lo tornado numa ideia tua. Comecei a aperceber-me disso entre os 60 e os 65 anos. Disse para mim: “Talvez O esteja a confundir com tudo aquilo que fiz por Ele”. Dei tudo ao movimento, mas isto não é Cristo. Cristo é muito mais!».
A outra coisa que, nos últimos anos, o pôs radicalmente em discussão é a chegada, na história do movimento, do Padre Julián Carrón: «Não consigo dar-me razões do facto de que ele, que viveu com Giussani menos de um ano, possa fazer-me compreender Giussani melhor do que eu, que estive a seu lado toda a vida».
Sempre em 1972, Giussani dizia que «a impaciência não é a última armadilha, é a primeira». Referia-se, bem entendido, à pressa de achar a solução para os problemas sociais. Mas, provavelmente, também à de pensar ter percebido o que Deus estava a operar. «Eu concordava entusiasticamente com o que Giussani nos dizia. E também tinha com ele uma relação dialéctica, se tinha objecções, levantava-lhas todas. Uma vez disse-lhe: “Se me apercebo de que o que nos dizes depende do teu carácter, do teu temperamento… já me tramaste”. E ele: “Olha que eu te dou as razões”». E a resposta caiu-me bem. Mas, para mim, quais eram as ditas razões? Eram razões reduzidas a valores. Se não te aperceberes na experiência que Ele está presente, contentas-te com migalhas. Isto é, com valores. Que depois, se pensares nisso, são valores entusiasmantes. Nada responde a todos os factores do humano como o cristianismo. Desafio quem quer que seja a demonstrar o contrário». No entanto, explica ele, os valores não bastam. E percebi-o por uma coisa: «Não ficas satisfeito afectivamente. Só no fim da vida de Giussani é que eu me apercebi de que tinha confundido Cristo com aquilo que fazia por Cristo. Quando me surpreendi a ter medo dele».
Estávamos em 2002, no dia dos seus oitenta anos. Wolfsgruber não teve a coragem de lhe telefonar para lhe dar os parabéns. «Tinha vergonha, medo do seu juízo. Tinha medo de ser medido. Porque, numa companhia guiada, quando uma pessoa apoia tudo no que faz, depois também tem de se sentir confirmado pela aprovação de quem guia. Isto, entre outras coisas, agora está claro para mim. Na altura não percebi. Deveria ter-me alarmado: “Como? Dou comigo a ter medo da pessoa que mais amei e que acima de todos me amou a mim?”. Tem razão Carrón quando diz para tomar a sério os sintomas da nossa humanidade…».
Arrependimentos? «Sinto-me feliz por ter feito todo este percurso. Cada um tem os seus tempos… Houve um momento, em 1971, em que me veio a dúvida de que a experiência do Grupo Adulto fosse uma grande mentira. Aí, um amigo disse-me: “Olha que nós permanecemos porque aqui está Cristo presente”. Portanto, já então se diziam estas coisas. E conseguiam pôr a nossa vida em pé. Mas Cristo é sempre um mais além. Para outros, não tenho dúvidas de que possa ter sido diferente, mas eu, sem querer, sem me aperceber, esquecia-me da origem». E agora? Aos 77 anos e uma vida às costas? «Demiti-me de todos os cargos dos Memores Domini e comecei a estudar inglês. Se Deus quiser, vou em missão. Quanto ao resto, reconheço que Carrón é a invenção que o Espírito Santo e don Giussani pensaram para o meu caminho. A minha certeza hoje é a de João, que na barca grita aos outros: “É o Senhor!”».