O Papa na Irlanda «para nos ensinar a viver»
O Encontro Mundial das Famílias em Dublin, a conferência de preparação e a exposição “The love of my heart” da comunidade de CL. No meio, a grande ferida das vítimas de abuso e pedofilia. Leia o relato do que aconteceuO ato penitencial, no começo da missa. Foi aí que Mauro Biondi, responsável de CL na Irlanda, entendeu que algo de novo estava a acontecer. «O Papa pediu perdão em sete pontos. Em espanhol, ainda por cima, enquanto todo o resto era em italiano: sinal de que aquelas linhas vieram do seu íntimo. Mas não pediu só aos abusados: pediu perdão a Deus, de forma sincera e em nome da Igreja. Aí eu disse: ele está a anunciar. De dentro do drama, dos destroços, do ponto mais baixo, ele indicou o caminho para recomeçar, para todos. Enquanto pedia perdão, anunciava Cristo».
O drama é aquele que esperava o Papa Francisco em Dublin, aonde o Pontífice chegou no sábado para encerrar o Encontro Mundial das Famílias (que foi de 22 a 26 de agosto), mas ficou, inevitavelmente, diante de um dos momentos mais tensos dos últimos anos, com os dossiês americanos que trouxeram novas acusações à Igreja de abusos e pedofilia. Ar pesado, de tempestade, por uma chaga que da qual se fala, por estas bandas, há mais de dez anos e que aguça ainda mais com outras tragédias ocorridas no passado, em lugares como o orfanato ou as casas de acolhimento em que as mães solteiras eram obrigadas a abandonar os filhos. Feridas abertas, enfim. Muito abertas.
«Entre os momentos da conferência de preparação à visita, houve um encontro com as vítimas dessa situação», conta Max Camusso, outro responsável da comunidade de Dublin. «Ali se entendeu que o conteúdo da visita seria diferente. Achávamos que o tempo passado tinha traçado ao menos um caminho para chegar ao perdão. Porém, pelo tom das discussões, percebemos que nestes dez anos as coisas ficaram ainda mais dramáticas. Havia pouca disponibilidade para escutar. Até que dissemos: a única opção que é Francisco venha para nos ajudar».
E Francisco veio, quase quarenta anos depois da visita histórica de João Paulo II, que deixou como lembrança a grande cruz do Phoenix Park, o mesmo lugar da missa final «cheia de gente apesar do terrorismo mediático das semanas anteriores que nos desencorajava a ir, por causa dos estacionamentos, os trajetos, o trânsito...», diz Mauro. «Fiquei muito impressionado ao ver famílias, idosos, pessoas vindas do país todo. Gente da Irlanda, não só de Dublin. Um povo».
Antes, outros momentos fortes. Começando pelo encontro com as autoridades civis, tudo menos óbvio, dado o clima que havia. «É um diálogo que deve ser retomado», observa Mauro. «Claro, o primeiro-ministro Leo Varadkar pediu iniciativas mais fortes contra a pedofilia. Mas pela primeira vez nestes anos, onde foi feito um processo de revisão histórica assustador, ele também reconheceu que “não é possível pensar na Irlanda sem o cristianismo”. Falou de um sofrimento pelos abusos “como Estado, como sociedade e como Igreja”, ampliando a questão e as responsabilidades... Enfim, uma ocasião para a Igreja para dizer: entendemos a diferença entre cristianismo e cristandade».
Depois, junto com a visita ao Centro de Acolhimento para Famílias Sem-Casa dos capuchinhos, o encontro com as vítimas de abusos. O Papa, deu para ver, escutou, fez perguntas, quis entender. Ficou marcado e ferido, e até «recolheu o que me disseram» para «colocar diante da misericórdia do Senhor esses crimes e pedir perdão por eles» durante a missa, justamente. Max conta: «Uma das vítimas disse, logo depois: “Vimos um Papa muito empenhado em nos entender, em nos escutar. Não era algo circunstancial, algo que tinha de fazer”. Para eles foi um encontro».
No sábado à noite, o festival das famílias no Croke Park, um dos maiores estádios da Europa (84 mil pessoas). «Um momento de festa, cantos e danças intercalados por testemunhos. Mas ali também veio à tona a novidade humana que o cristianismo permite», conta Mauro.
Novidade essa que também foi vista nos pavilhões do Hall de Exposições, o centro de congressos que hospedou o Encontro em si, antes da visita do Papa. Uma série de encontros, testemunhos, palestras (o centro ela a Amoris laetitia), que para Mauro «lembrava muito o Meeting de Rímini». E que continha também The Love of My Heart, a exposição idealizada pela comunidade de CL e Dublin.
Um trabalho de longa data, desde quando alguém da comunidade lançou a ideia de aprofundar as páginas da Beleza desarmada que falam da família (mas não só). Encontros, ideias. Cerca de trinta pessoas envolvidas. Até chegarem aos painéis pendurados na Feira, entre fotos de vida quotidiana e reproduções de Van Gogh, testemunhos e trechos de destaque do livro de Julián Carrón: sobre a mudança de época, a redescoberta do eu, a dinâmica do sinal... «Só prepará-la já foi um presente, pela consciência que despertou entre nós», disse Mauro. «Mas o que aconteceu ali, nesses dias, foi ainda maior». No hall passava gente já habituada a este tipo de temas: membros de associações, grupos paroquiais. «E mesmo assim muitos ficaram comovidos». Um grupo de padres parou para tirar fotos do painel da Madalena. «Sou casada há um tempo, eu já sei algumas coisas sobre o casamento...», disse uma mulher antes de começar o tour: poucos painéis e começou a chorar. «Estou a respirar», suspirou um outro depois da visita.
«Houve um que não parava de entrar e sair», conta Max, «começou a tirar fotos. Assim, eu aproximei-me: “Se quiser, eu posso explicar o percurso...”. “Não, não, já percebi”. “Ótimo, mas olhe que começa pelo outro lado...”. E assim visitámos juntos». Uma colega sua, que tinha que tinha manifestado a “objeção” de que na exposição deveriam ter falado também de outras formas de família, no fim não aguentou a gratidão: «Ela percebeu que o tema era o que sustenta a família, não a forma». Uma novidade para muitos, tanto a exposição em si, incluindo uma noite de cantos no meio dos painéis com dezenas de pessoas “arrastadas” pela música e pela beleza, como também as provocações dos conteúdos: desde quando é possível pôr lado a lado a questão da virgindade e o matrimónio? Ou como é que a experiência da clausura pode ser uma ajuda para o matrimónio? «Até o último painel, o da Madalena, figura em que se expressa toda a força afetiva do cristianismo», explica Biondi.
Pois bem, no fim foi com esse povo que o Papa «entrou em diálogo», diz Max. «Ele viu e escutou, questionou-se. Entendeu que estávamos como que paralisados. E levou a sua contribuição, colocando um ponto diferente». «Podemos parar no limite, no erro. Mas isso são desculpas». E Mauro acrescenta: «Ele não veio propor um mundo ideal sem o mal, mas mostrar o que permite viver».