Aqueles rostos à minha porta

A semana social dos católicos dedicada ao trabalho e a tentativa da Igreja. À conversa com monsenhor Filippo Santoro
Paolo Perego

“O trabalho que queremos: livre, criativo, participativo e unido”. Não no condicional, mas com um tom cortante, o título da Semana Social dos Católicos Italianos que se realizou no fim de Outubro em Cagliari. São as palavras da Evangelii Gaudium, retomadas pelo Papa Francisco durante o encontro com os operários da Ilva (Complexo Industrial para processamento do aço) de Génova, no passado mês de maio. Uma realidade que monsenhor Filippo Santoro, arcebispo de Taranto e presidente do comité científico e organizador da Semana Social, aprendeu a conhecer bem nestes anos, com todos os acontecimentos ocorridos na fábrica da sua cidade. Com outros membros do comité, Mauro Magatti, sociólogo da Católica, e o padre Francesco Occhetta, da Civiltá Cattolica, interveio também no Meeting de Rimini para apresentar o evento que iria ocorrer na Sardenha e para dar o seu contributo sobre um tema chave: “O trabalho é um núcleo fundamental para o homem”, diz Santoro. É-o por natureza, desde sempre: trabalha-se para viver, para a família, para os filhos, para a comunidade. “Mas nesta situação histórica, uma “mudança de época” como a chama o Papa Francisco, é-o de maneira decisiva. E o ponto de partida para uma atenção ao tema do trabalho é uma atenção à necessidade do homem”.

O que quer dizer?
Vejamos os problemas e as grandes diferenças que há no mundo. Mas basta olhar para Itália, com os últimos dados do Istat: desemprego 11,2%, um dado que sobe para 35,1% entre os jovens, com picos de mais de 55% na Puglia ou 60% na Sicília. Falamos de mais de três milhões de jovens entre os 15 e os 30 anos, com mais de 2 milhões de neet, jovens que nem estudam nem trabalham. Como Bispo encontro-os todos os dias.

Exemplos?
O mais recente, um jovem já casado e com filhos que como única ocupação leva a passear o cão, à espera do dia em que substituirá o pai, porteiro num estabelecimento…é preciso ir ao encontro de alguém assim e despertar a sua sede de protagonismo. Partindo precisamente da sua necessidade.

O que significa “partir da necessidade”?
don Giussani dizia, em O eu, o poder e as obras, que a necessidade é um elemento constitutivo da pessoa, da nossa humanidade. Olhar a necessidade ouvindo-a, levando-a a sério, não a censurando, torna possível a realização da pessoa. Existem muitas atitudes humanas que determinam um modo diferente e melhor de trabalhar. As soft skills de que ouvimos falar também no Meeting, por exemplo, como a capacidade de se relacionar, a abertura…Mas há uma coisa que vem antes: a necessidade que uma pessoa tem de se realizar e de fazê-lo plenamente na relação com a realidade. É uma questão tão radical que quando uma pessoa não tem trabalho é como se lhe faltasse a possibilidade de ser ela mesma. Um homem no trabalho “torna-se mais homem”, escrevia João Paulo II na Laborem exercens. Nesta ótica, o trabalho pode identificar a perspetiva da realização total da pessoa. Não limitada à satisfação das necessidades individuais, mas na relação com tudo: os outros, o ambiente, a realidade. Com o infinito.

O primeiro passo, então, qual é?
Entretanto, é preciso olhar as pessoas na cara. O ponto de partida são os rostos. Aqueles de que nos cansamos. Mas põe-te também a ver onde é que as coisas funcionam. Ao Comite de Cagliari levei a experiência de pastor que vivo cada dia, com as duas procissões de pessoas que todas as manhãs encontro à porta. Aqueles que chorando me pedem para defender o ambiente, que não hajam mais mortos na família ou crianças doentes de cancro por causa da poluição. E depois a fila dos jovens, até graduados, que têm o trabalho em risco ou não têm trabalho. Tenho duzentos currículos na gaveta. A ferida não é “do mundo do trabalho”, em geral, mas vê-se nos rostos. E a Semana Social trata disto. Com uma atenção: não basta denunciar, é preciso indicar um caminho.

De que modo?
Por exemplo mostrando as “boas práticas”, identificando onde está a excelência. Há muitos casos em Itália. Na preparação para Cagliari, contámos quatrocentos, muitos construidos por jovens. Gente que ouve o entusiasmo, o ardor de pôr as mãos na realidade e de construir, sob o impulso vital de encontrar trabalho, de não emigrar, de ser protagonista da vida. Não sem estímulos: a maior parte provém de ambientes ligados à Igreja. Mas porque não utilizamos e pomos todos a usufruir destas respostas? Não será a Igreja a resolver o problema. Mas, como diz o Papa, podemos indicar caminhos.

Por exemplo?
Tenho em mente algumas empresas de jovens no sector da moda, nascidas em Locride em plena batalha com a ‘Ndrangheta’. Ou outras na Campania que apostaram em valorizar a produção de massas. Isto quer dizer que não é preciso inventar nada mas identificar pontos de riqueza que a realidade oferece e pô-los ao serviço da pessoa e do contexto social em que se vive.

Mas esses são exemplos muito particulares...
Uma boa prática deve ser repetível. Mas a possibilidade de repetir uma boa prática não diz respeito só a circunstâncias semelhantes. Vejamos a experiência escutada no Meeting na exposição dos jovens sobre o trabalho. Pode-se parar e dizer: “Como são bons vocês, que tiveram uma experiência rica que vos permite fazer um percurso positivo”. Mas assim salta-se um passo: o que permitiu aqueles jovens, dentro das circunstancias deles, fazer aquela experiência? A possibilidade de repetir diz respeito ao desejo que se acende nas pessoas e que acontece numa relação. Naquela exposição estava bem contado: estímulos à criatividade, à inteligência, a proximidade de alguém que é entusiasta e nos faz meter a mão na massa, que acende uma luz, uma experiência que faz trabalhar de uma maneira mais interessante. E que contagia os outros.

É suficiente que se desperte o desejo? A realidade, então, não é um muro?
A realidade é difícil, é verdade. E as propostas que fazemos vão todas na direcção de criar as condições para que isto aconteça. Para servir e sustentar essa relação. Rever e melhorar a alternância escola-trabalho, por exemplo; reforçar com financiamento adequado a formação profissional, envolver empresas de maneira sistemática. E simplificar a burocracia, reduzir a carga fiscal…Não bastam os discursos, é preciso entrar também no mérito das regras do jogo. Dom Bosco juntou os seus rapazes que procuravam trabalho e os empresários. Ele mediava. Tinha paixão por aqueles rapazes e ao mesmo tempo, formando-os, oferecia ao mercado respostas de qualidade. Uma mudança do sistema torna possível uma economia diferente, em que o fulcral não é o lucro, mas a experiência de realização da pessoa, da família e da solidariedade. Que são os aspectos que tornam um trabalho “digno”.

O que significa “digno”?
É a outra face do discurso que estamos a fazer, que, como Bispo, tenho sempre presente. Um trabalho é digno porque a pessoa é digna, feita à imagem e semelhança de Deus. E não apenas porque permite satisfazer as necessidades materiais, o sustento da família e a construção da sociedade, mas porque realiza a pessoa acima de tudo, como dizíamos. E isto, vimo-lo também nas entrevistas da exposição do Meeting, vale também para os trabalhos mais humildes.

Para qualquer trabalho?
Não. O trabalho é digno também quando respeita a vida e o ambiente, a legalidade. Conheço uma família de pescadores, em que o pai levou sempre o rapazinho no barco. Vida dura, pescar para a cooperativa. Mas depois o filho foi apanhado pelos traficantes de droga. E agora já não vai com o pai. Veio a mãe falar comigo. O problema é que este rapaz não compreende que o trabalho do pai, cheio de suor e cansaço, é digno. Aquilo que faz agora, não.

É preciso que o descubra ele…
Sim, mas uma pessoa pode descobrir se está acompanhada. É precisa uma companhia. Que talvez não resolva os problemas, mas, entretanto, uma pessoa sente-se acolhida. E depois há a grande questão de um mestre, que é de alguém que vivendo na primeira pessoa esta dimensão, de uma certa maneira, te educa. Uma testemunha, alguém diante de quem o cansaço não é um obstáculo, mas uma circunstancia para crescer. Como para subir a montanha: com alguém à frente que sabe onde por os pés, tens gosto em dar outro passo. Esta é a tarefa educativa: trazer ao de cima o outro, segundo a capacidade e a inclinação. Quando estudava Teologia, fui durante algum tempo trabalhador na Mercedes de Estugarda: fui para a Alemanha no verão para aprender alemão e trabalhava na fábrica para pagar as despesas. Conheci a dureza do trabalho. Mas também na Universidade Gregoriana, com um professor que me fazia aprender a ser rigoroso na pesquisa, a aprofundar todas as coisas. Mais, o encontro com don Giussani, uma graça, com a sua paixão pela realidade, pela experiência, onde as tuas exigências, as tuas necessidades, os teus desejos são postos a descoberto.

É a questão do ser “testemunha com a vida”, como disse o Papa na sua mensagem ao Meeting…
Sim. E é uma grande tarefa. O trabalho é uma das fronteiras da nova evangelização. Qualquer proposta ou projecto que se possa fazer, não pode ser só uma ideia, por mais útil e bela. Nasce da experiência de um determinado tipo de relação com a realidade. Deus é o eterno trabalhador, como disse Jesus. E o trabalho é o que mais dá a ideia de “à Sua imagem e semelhança”, um acto criador. Nós anunciamos isto pela maneira como estamos na realidade, ali, com a nossa vida. “Servo do meu Senhor, não escravo do Imperador”, dizia o escravo frígio no “Barrabás” de Par Lagerkvist. A Igreja tem um grande património. Põe-te em acção, tanto nas circunstancias mais difíceis como nas mais simples.