Obstinados à porta
277 de 52 países, no sopé das Dolomitas. É a assembleia internacional de responsáveis. Uma ocasião para voltar a contar, com grande liberdade, o ponto em que estamos do caminho. E voltar àquilo que o gerou. Pedindo, como o Inominado, que reaconteça.«Se hei-de voltar? Se não me receberdes, deixo-me ficar à vossa porta, obstinado como um pobre. Tenho necessidade de vos falar! Tenho necessidade de vos ouvir, de vos ver! Tenho necessidade de vós!». São tantos os pontos de exclamação que Manzoni tem de usar para descrever o estado de espírito do Inominado no momento da despedida do cardeal Frederico. Um espírito trespassado por um olhar de misericórdia, que sabe que já não pode passar sem a fonte da sua libertação.
É com esta imagem que o padre Julián Carrón abre a Assembleia Internacional dos Responsáveis de CL (AIR). São 277 pessoas de 52 países. Passados tantos anos volta-se a Corvara, ao mesmo hotel onde nasceram as férias internacionais em 1982 («nessa altura eram só os alemães, os suíços, os espanhóis e alguns da Irlanda», recorda Michele Faldi). As Dolomitas estão ali, silenciosas e belíssimas.
O tema deste ano, “A salvação continua a ter interesse para ti?”, vasculha nos recantos mais íntimos dos espíritos de todos, não só de quem está há muitos anos na história do movimento. Obriga-nos a olhar de novo para nós mesmos a sério para ver em que ponto estamos, se ao longo dos anos venceu o formalismo ou a chama do «primeiro amor» continua a vibrar na nossa vida. E exige a coragem de admitir a si mesmo: «Está a vencer o formalismo».
Jona e o toque. Beppe trabalha em Edimburgo, Escócia. O movimento, diz na primeira assembleia, fê-lo crescer ao longo dos anos, «mas quanto mais avanço mais aguçada é a percepção do meu pecado, reparo que repito sempre os mesmo erros. Mudança não há. Assim, nestes últimos meses, fui tomado de uma grande tristeza. Estava desmoralizado». Acontece chegar à cidade uma nova família do CL. «Tipos rijos, muito radicais. Ele apercebe-se logo da minha tristeza e diz: “Julguei que ia encontrar um responsável do CL e vejo um homem em cacos…”. Disse para mim: “Eu não sou só isto”. Portanto, comecei a procurá-los, mendiguei a amizade deles. E vi que as coisas recomeçaram a acontecer. Vi que Deus não me abandona ainda que eu seja assim».
«Que tem isso a ver com a salvação?» pergunta Carrón. «Percebi que a esperança…», tenta responder o Beppe. «Não digas coisas ao calhas, olha a tua experiência!». Beppe tenta de novo: «Decidi ir procurá-los, sem esperar que viessem eles ter comigo…». «Estavas a mendigar a chegada deles!», retoma Carrón: «Julgamos que a nossa tristeza é uma desgraça, mas é o início de tudo: é uma consciência mais clara da nossa necessidade. Nós pensamos que a mudança é uma “performance”, mas não. A mudança dá-se quando em nós se torna mais aguda a exigência de que Cristo nos salve: “Quando sou fraco, então é que sou forte”».
Gianni, um dos responsáveis de Bari, conta que durante uma assembleia do movimento uma decisão dele foi contestada por alguém que disse: «Se fizerem isso erram tudo». Ele responde explicando as suas razões. E o outro: «Se é assim, devolvo o cartão da Fraternidade…». No fim do encontro Gianni dirige-se ao carro para voltar para casa. Pensa: «Respondi-lhe, disse o que devia dizer…». Mas há qualquer coisa que o impede de entrar no carro. «Não conseguia esquecer o olhar daquele amigo. Então voltei atrás e fui-lhe perguntar se podia ir jantar a casa dele uma noite. Conheci assim a sua família. Foi um encontro inesperado, excepcional. No fim do serão pediu-me para ir à Escola de Comunidade comigo. Ali compreendi que a realidade é boa, que a salvação se comunica a mim não sem ter em conta, mas dentro da carne. E vejo que reconhecer isto é um trabalho de todos os dias». Comenta Carrón: «Não somos nós a decidir como actua o Mistério na nossa vida». Mas a salvação, quando acontece «tem traços inconfundíveis».
São os traços inconfundíveis nas histórias de Misha (bielorusso), Sumito (venezuelano) e Jona (chinês). Três “histórias particulares”, inseridas em contextos culturais completamente diversos. Basta o abraço dum professor (Misha), o convite para apresentar a biografia de D. Giussani (Sumito) ou um encontro no aeroporto (Jona). Facetas da vida quotidiana, dentro das quais se insinua a mão do Mistério para nos tocar. Somos tomados pelo «Deus da história».
Pobres. É esse toque que está na origem de tudo, que acelera os nossos desejos, esclarece a nossa maneira de ver as coisas, transforma o preconceito em abertura. Não é qualquer coisa que se fica pela esfera das relações pessoais, mas extravasa e apresenta-se ao mundo. «Se as dimensões da fé (caridade, missão e cultura) não nascem daí, ou seja, da experiência do acontecimento de Cristo na vida, os nossos gestos perdem o seu fascínio e a sua atractividade», explica Carrón. Alejandro, de Caracas, demonstra isto bem falando de um país onde no último ano os venezuelanos perderam em média oito quilos. As pessoas têm fome. Mas dentro duma situação que pareceria não ter saída, ele e os amigos organizam-se como podem para responder não só às exigências materiais, mas também para interceptar a necessidade dos que não querem ser deixados sozinhos na dificuldade.
São os pobres de que fala o Papa Francisco na Evangelii Gaudium, o manifesto deste Pontificado (o Padre Stefano Alberto retomou os seus conteúdos principais), que não são uma categoria sociológica mas sim teológica, ou seja, «permitem que nos conheçamos melhor a nós mesmos na relação com o Mistério». São os esfomeados de Caracas, são os pobres de espírito, os que estão à porta do Cardeal Frederico mendigando de novo o olhar de Cristo.
São também os doentes que encontra todos os dias o Alexandre, oncologista no Rio de Janeiro. Homens e mulheres que não pedem apenas para serem curados, mas para serem olhados como pessoas com as suas exigências e fraquezas. Pobres como os jovens filhos de imigrantes a quem Wael Farouq, em Milão, pediu par fazerem aos pais uma pergunta que nunca tinham feito: «Por que é que vieram para Itália?». Uma experiência que tornou a pôr em andamento a vida de alguns, encurtando aquela distância geracional que tantas vezes (como diz Olivier Roy) está na origem da islamização do radicalismo, alma do terrorismo na Europa.
A camisa e o Pata Negra. Chega-se também a Corvara de Barcelona, com as mil perguntas de quem foi tolhido pelo medo nas horas do atentado nas Ramblas. Chega-se de Houston, e entre uma assembleia e outra vêem-se no telefone as imagens das cheias produzidas pelo furacão Harvey. Há a Cinzia, professora em Palermo, regressada duma experiência com os giessini sicilianos. As férias de Verão foram organizadas entre o Parque Nacional de Pollino (Basilicata) e os pavilhões da Feira de Rimini. Fala do seu próprio espanto face ao espanto dos miúdos dela, cheios de perguntas sobre os encontros e as exposições. No Meeting esteve também o Padre Aleksandr, ucraniano de Cherson. Um sacerdote ortodoxo de 29 anos, que foi como voluntário, tendo ficado encarregado da água mineral. Está na AIR pela primeira vez. Escuta com curiosidade as intervenções: Sinto-me muito à vontade entre vocês, sinto-me livre para ser um sacerdote ortodoxo».
Em Corvara dá-se uma volta ao mundo em poucas horas. Nos encontros, o Padre Ignacio Carbajosa fala das reacções de alguns intelectuais espanhóis, entre os quais o físico Juan José Cadenas, o antropologo Mikel Azurmendi e a jornalista Pilar Rahola, à publicação de A Beleza Desarmada. O Padre José Medina, dos Estados Unidos, por sua vez, mostra como o conteúdo do livro de Carrón se insere na discussão americana sobre a presença pública dos cristãos na sociedade contemporânea. Canta-se em chinês, árabe, português, francês e inglês. Vitaly, nascido em a Nova Iorque, enquanto fuma um cigarro vai desenferrujando o russo que aprendeu dos pais. Barbara exibe com orgulho uma colorida camisa nigeriana. Jesús Carrascosa, o Carras, fez chegar como todos os anos um pata negra que corta com religiosa solicitude.
Na assembleia final Betta pede um esclarecimento sobre a relação entre fé e cultura, de que se falara no encontro sobre a Evangelii Gaudium: «Estive em Barcelona oito anos e no encontro com uma nova cultura “readquiri” aquilo que durante a minha vida tinha recebido. Deu-me muito trabalho abrir-me. Agora que voltei, vejo que corro o risco de cristalizar o que aprendi». O tema é diferente, mas torna a nota dominante: «O que é que possibilita reabrir-se de novo?», pergunta Carrón. «Tu não foste para Barcelona por gostares da cultura catalã. Foste porque desejavas partilhar o melhor que te tinha acontecido. A fé. Foi esse ímpeto que te abriu à modalidade própria dos amigos que lá encontraste. Em ti a fé tornou-se cultura. Mas se a fé não continua a ser um acontecimento presente contrai-se, fecha-se, ficando apenas cultura».
Marta conta que distinguiu em si própria uma certa ambiguidade ao responder à pergunta sobre a salvação, tema da AIR: «Tendo de dizer o que é para mim a salvação, vieram-me ao espírito alguns momentos belos e significativos da minha vida. Mas depois interroguei-me: “Será que se trata verdadeiramente de instantes em que percebo o que significa ser salva ou são só momentos de satisfação e de sucesso pessoal?” Penso que nos faz realmente mal contarmos uns aos outros episódios de sucesso pessoal, que nos emocionam, travestindo-os de ‘testemunhos de salvação’. Exprimem um egocentrismo que nos faz oscilar entre presunção e depressão, como dizias nos Exercícios». Carrón sorri: «E então o que é a salvação?». Marta: «Ouvindo os testemunhos que me precederam, dou-me conta que a salvação que espero é a possibilidade de olhar para nós próprios e para a nossa miséria duma forma que, misteriosamente, não nos deprime mas nos permite caminhar sempre, com erros, dando passos à frente e passos atrás, mas nunca parados, desmoralizados ou deprimidos».
Liberdade das lógicas. Marta conta um episódio em que, no emprego, o chefe, por narcisismo, lhe tira uma oportunidade de visibilidade. Ela fica irritada. Mas um colaborador faz-lhe notar: «Com tanto que tens para fazer, estás preocupada com isto?». «A coisa melhor daquela situação foi que a simples pergunta do meu colaborador me permitiu reentrar em mim mesma, rir da minha fraqueza e fazer uma experiência de libertação. E o ter reencontrado uma liberdade em relação às lógicas de poder, típicas dos locais de trabalho, até me libertou do ressentimento contra o outro, com o qual se pode logo recomeçar: ele também tem as mesmas fraquezas». De novo Carrón: «Se o cristianismo não se dá de novo como acontecimento é o ressentimento que vence. Podemos estar perante o real com a nossa posição - correcta até - mas que se torna ideologia, ou somos determinados por um facto que está a acontecer agora. A mesma circunstância poder ser o começo do inferno ou da salvação.
Mas a salvação não é resultado dum esforço nosso, duma coragem nossa, é fruto do cristianismo».
A Assembleia ganha velocidade. Davide Prosperi abre uma nova passagem: «Nós medimos a nossa mudança porque tendemos à autossuficiência. Pensamos que uma vez tendo encontrado Cristo não há mais necessidade d’Ele e que a nossa mudança é obra nossa». Carrón ilumina-se, os termos da questão tornam-se ainda mais nítidos e condensam-se num paralelo fulminante, que se repercutiu na síntese final: «é a diferença entre Kant, o Iluminismo, e o Inominado! Kant contenta-se com as “conquistas” do cristianismo que se podem alcançar com as nossas forças, com a razão. O Inominado, pelo contrário, deseja ficar à porta do Cardeal como um pobre, desejando que o acontecimento se dê outra vez».