A verdadeira liberdade está em conhecer o caminho, fincar os pés e avançar

Publicamos o discurso de aceitação do prémio «Fé e Liberdade» do P. João Seabra em Junho deste ano. Este prémio foi atribuído pelo Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica.

Saúdo o Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa e a organização do Estoril Political Forum, que celebra este ano um quarto de século. Nos últimos anos, tenho tido gosto em estar convosco, pelo desejo que reconheço nestes nossos encontros de olhar a política como serviço do bem comum.
Quero saudar especialmente o júri do Prémio Fé e Liberdade, a quem manifesto a minha gratidão pela honorificência que me atribuiu.
Cumprimento também o Professor Guilherme de Almeida e Brito, meu amigo de tantos anos, cujas generosas palavras agradeço comovido.
Uma palavra ainda para o Professor Robert Royal, que preside a esta sessão: o seu livro Mártires do século XX foi para mim, e julgo que para toda a igreja, um instrumento decisivo para a preparação do Grande Jubileu. As suas intervenções e publicações, e o trabalho do seu think tank Fides et Ratio, têm mantido alta a ligação essencial entre a doutrina católica e a tradição da liberdade.

Recebi a notícia deste prémio com irónica surpresa. Ao longo dos anos, esta cerimónia permitiu distinguir vultos incontornáveis da presença católica. Há quatro anos, presidi à sessão em que foi galardoado o Professor Mário Pinto, que então descrevi como “o herói nacional da liberdade de educação”. A ele se juntam, na galeria dos premiados, o Senhor Dom Jaime Pedro Gonçalves, artífice da paz em Moçambique; Monsenhor João Evangelista, cujo elogio tive a honra de proferir, e o Senhor Alexandre Soares dos Santos, que de formas diferentes na actuação mas consones no intento ideal, tão bem souberam articular a liberdade económica e a fé; o Padre Lino Maia, cujo trabalho social é unanimemente reconhecido; o Padre Roque Cabral, filósofo e mestre de doutrina social e política; e a Dra. Maria de Jesus Barroso, cujo caminho de conversão nos comoveu a todos e cuja memória evoco.
Presto a minha homenagem a todos os premiados que me precederam: e é desconcertante, para mim, ver acrescentar o meu nome a este ilustre friso de galardoados. Mas já que o júri do prémio entendeu fazer-me essa gentileza, que agradeço com comoção, aproveito esta ocasião pata umas palavras sobre Fé e Liberdade, o imprevisível binómio que dá nome a este prémio.



A liberdade, para os nossos contemporâneos, identifica-se com o quebrar laços, ligações, dependências. É frequentemente confundida com o colapso de todos os critérios, com a relativização dos pontos de referência, com a transmutação de princípios sólidos em valores volúveis e arbitrários. Difunde-se – ouso mesmo dizer: generaliza-se – a convicção que homem livre é o que navega à deriva. Acredita-se que ter um caminho, ter uma orientação, é uma prisão e um sufoco insuportável. Nesta maneira de ver as coisas, o homem que não tem fé é o paradigma do homem livre. Esta mentalidade pervade a nossa cultura política.

O engenhoso fidalgo recorda a Sancho Pança que “a liberdade é o dom maior que os céus fizeram aos homens” – mas, como ensina o Apóstolo das Gentes, “foi para a liberdade que fomos libertados.” Por isso, diante desta opção da modernidade que para afirmar a liberdade julga ter de negar a verdade e a realidade, S. João Paulo II interrogava-se: “como poderia ser considerado um uso autêntico da liberdade, a recusa de se abrir àquilo que permite a realização de si mesmo?” E concluía com a dramática profecia que vemos cumprir-se diante dos nossos olhos: “Verdade e liberdade, com efeito, ou caminham juntas, ou juntas miseravelmente perecem.” (1)

A liberdade exprime-se na inquieta e multiforme procura de sentido que perpassa toda a humana aventura: aquela “febre em mim de navegar” do poeta, que ecoa o inefável gemido de Agostinho, “inquietum est cor nostrum”. A fé é resposta do Mistério que faz todas as coisas a essa busca incessante. Dizemos e experimentamos, com toda a Tradição católica e com a doutrina definida, que a fé é racional, porque não deixa de fora nenhuma pergunta que a razão seja capaz de pôr diante da realidade, e a abre para sempre mais além, como uma janela escancarada sobre a linha do horizonte. O homem que é leal com a realidade e com a razão encontra a fé, no extremo limite da dinâmica racional, como uma flor de graça, à qual adere com a sua liberdade.

A fé assim encontrada e reconhecida, como resposta amiga do rosto bom do Mistério à expectativa do coração, não nos fecha ao mundo, nem cerceia a nossa liberdade. Sem a fé, o homem só se tem a si próprio como medida; e facilmente o conhecimento decai em gestão de interesses, e o amor em busca de prazeres, e a vontade em violência. Com toda a simplicidade no-lo recorda o Papa Francisco: “Quando falta a luz [da Fé], tudo se torna confuso: é impossível distinguir o bem do mal, diferenciar a estrada que conduz à meta daquela que nos faz girar repetidamente em círculo, sem direcção.” (2) Potenciando o humano, a fé torna o conhecimento maior do que o raciocínio e a vaidade da demonstração, torna o amor maior do que o instinto e a paixão, torna a vontade maior que o egoísmo e o desejo de poder, e abre assim o homem à sabedoria, e à caridade, e ao dom de si.

A fé revela toda a sua incidência na vida política. O católico que faz política – ou estuda filosofia política – deve ter sempre presente o ponto em que a política e a fé se cruzam: a política requer-nos tomar decisões, a fé dá-nos critérios para as tomarmos com densidade e verdade. Fazer política só estará à altura da estatura do homem se for uma opção contínua e capilar pelo bem e uma rejeição obstinada do mal. A missão do governante não consiste em conservar o poder, usando para isso toda a ambiguidade e indefinição que lhe permitam colher mais votos nos diferentes sectores do espectro eleitoral: a missão do governante, o uso recto do poder, consiste em escolher o bem para a comunidade que lhe está confiada. Nesta busca humilde e sincera do bem-comum, a fé, consciência plena de termos sido criados para o Bem, não limita a nossa liberdade; pelo contrário, reforça-a. “A fixed heart gives you a free hand”, dizia o imortal Chesterton (3). No título do Meeting de Lisboa 2018, para o qual vos convido desde já, fazemos uma glosa livre dessa frase: “Livre é o homem que tem o coração preso”.

A política sempre me interessou, e ocupou-me activamente na minha juventude. A circunstância providencial de ter entrado para o seminário em 1973 privou-me – ou salvou-me – daquela imersão total no debate partidário que caracterizou a minha geração. Como padre procurei sempre resistir à tentação de querer governar o País a partir da minha sacristia. Em nome da fé fiz alguma política, mas julgo nunca ter confundido os planos. Intervim em muitos momentos da vida do nosso país por iniciativa própria ou quando solicitado pelos políticos, que me procuraram para serem acompanhados na sua vida de fé ou ajudados no discernimento das escolhas que tinham que fazer. Fiz bons amigos e encontrei muita gente boa com desejo de servir o Bem Comum. Também por isso encorajei outros a tomar parte na vida pública e nesta testemunharem o seu encontro com Cristo na vida partidária ou nos movimentos cívicos.

Em 1984, arrastado pela indignação entusiástica de uma jovem estudante, ajudei a coordenar as primeiras manifestações contra a legalização do aborto, e desde então mantive-me sempre ligado às lutas pela dignidade da pessoa humana, que nos levaram aos referendos de 1998 e 2007, e às intervenções cívicas em tantas outras questões políticas e legislativas referentes à vida, à família e à liberdade de educação. Não procurei nenhum destes combates, mas não me arrependo de os ter travado. Com os amigos que fui fazendo pelo caminho ganhei algumas batalhas e perdi outras; mas nunca fomos a nenhum combate por algum cálculo ou qualquer interesse, mas apenas pelo desejo de servir todos os homens nossos irmãos. Estou convencido de que estávamos certos e espero que, um dia, Portugal volte a ter leis justas, respeitadoras da dignidade da vida humana, desde a concepção à morte natural.

O facto de as certezas da nossa fé serem o caminho da nossa liberdade verifico-o também na minha experiência nestes quase 15 anos de Colégio de S. Tomás. Parto da certeza de que sou feito por Aquele que fez cada um dos meus alunos; que fui salvo e sou redimido por Aquele que salvou e redime cada um dos meus alunos. Nenhuma pretensão de os salvar eu! Para serem quem realmente são, precisam de poder “aderir ao Ser”, como diria S. Tomás. A missão do educador – do adulto, do sacerdote – é tentar que o Ser seja reconhecível, e que o jovem não se enrede em dificuldades maiores do que as que têm que ser. O resto é a dinâmica natural da liberdade que realiza, servindo-se da irresistível atracção do Ser para vencer a também inevitável ferida original…


Há tempos, a olhar para o recreio, dei-me conta que, com um aluno que ia a passar a caminho de um pão com chouriço no bar, nunca tinha falado. Chamei-o e sentei-me a conversar com ele no gabinete. Ficámos amigos. Mau aluno do 9º ano, 15 anos problemáticos e rebeldes (passou uns anos na escola pública, fez o que a liberdade dominante o obrigou a fazer, escolhe entre viver em casa da mãe ou do pai, etc.) quer absolutamente ficar no colégio para fazer o Liceu. Com palavras claras e comoventes (tão claras e comoventes que não ouso repeti-las) expressou-me a certeza que o colégio é o lugar onde a sua liberdade é realmente salvaguardada.

Senhor Director do Instituto de Estudos Políticos,
Senhor Presidente desta sessão,
Como falo para decisores políticos, filósofos e estudantes de ciência política, não resisto a terminar citando as palavras que o Papa Bento XVI dirigiu aos deputados do Bundestag em 2011. O que pode um político desejar no século XXI? “Em última análise”, dizia o Papa, “nada mais (…) que um coração dócil, a capacidade de distinguir o bem do mal e, deste modo, estabelecer um direito verdadeiro, servir a justiça e a paz” (4). Num mundo em que tantas forças nos impelem a perder as referências e o sentido, saibamos compreender que a verdadeira liberdade está em conhecer o caminho, fincar os pés e avançar.
Obrigado.

P. João Seabra

(1) S. João Paulo II. 1998. Carta Encíclica Fides et Ratio. Roma: Santa Sé. Acedido em 21 de Junho de 2017. http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_14091998_fides-et-ratio.pdf.

(2) Francisco. 2013. Lumen Fidei. Roma: Santa Sé. Acedido a 22 de Junho de 2017. http://w2.vatican.va/content/dam/francesco/pdf/encyclicals/documents/papa-francesco_20130629_enciclica-lumen-fidei_po.pdf.

(3) Ortodoxia cap. 5

(4) Bento XVI. 2011. “Visita ao Parlamento Federal Alemão.” Santa Sé. 22 de Setembro. Acedido em 21 de Junho de 2017. https://w2.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/speeches/2011/september/documents/hf_ben-xvi_spe_20110922_reichstag-berlin.pdf.