Falar com a luz

Cinquenta anos após a sua morte, pode ser considerado “o mais influente fotógrafo americano do século XX”. Sem nunca ter tirado uma foto. Qual é o segredo da sua arte?
Luca Fiore

Casa Junto a caminho de ferro (1925) é um dos quadros mais famosos de Edward Hopper. A tela representa uma austera casa vitoriana em parte escondida da visão em atalho de uma linha de binários em primeiro plano. O edifício ergue-se solitário sob um céu sem nuvens. A luz é a da hora anterior à do pôr-do-sol. Após ter visto esta obra, Lloyd Goodrich, o primeiro crítico que acreditou no talento de Hopper, perguntou-lhe onde encontrara aquela casa. “Em parte nenhuma do mundo”, respondeu o artista. E depois, tocando na testa sem ênfase: “Está aqui dentro”. Uma resposta estranha daquele que é considerado por tantos, na América, como o maior pintor realista do século XX.

Cinquenta anos após o seu desaparecimento, no seu estúdio de Nova Iorque, em 15 de Maio de 1967, a obra de Edward Hopper está no centro de um extraordinário interesse popular (é um dos artistas do século XX mais reproduzidos em poster e gadget, e as suas exposições em Itália mesmo as mais modestas esgotam) e, simultaneamente, de uma discussão entre quem procura perceber os motivos da sua poesia.

É interessante voltar a 1946, Hopper é já um pintor muito conhecido e Clement Greenberg, o crítico que inventou o mito do Expressionismo abstracto (Jackson Pollock, Mark Rothko, Willem de Kooning), não evitava manifestar-se sobre uma personalidade tão incómoda mesmo que estivesse nos antípodas da nova arte emergente. Para Greenberg era preciso inventar uma nova categoria artística para descrever os resultados: os seus meios eram pouco originais, tecnicamente pobres e impessoais, no entanto, o seu sentido da composição penetrava a vida americana de um modo desconhecido aos seus antecessores. Hopper, concluía Greenberg, “é simplesmente um mau pintor, mas se fosse melhor não seria o artista superior que é”.

OLHAR MODERNO. Revendo uma das muitas retrospectivas dedicadas a Hopper no Museum of Fine Arts de Boston em 2007, o crítico do New Yorker, Peter Schjeldahl, confirmava o sentido de espaço percebido anos antes por Greenberg. “Porquê tanta gente a ver esta exposição? Não sabemos já o suficiente sobre este pintor?”, perguntava-se: “Quando desejo novamente aproximar-me de “Noctívagos” (1942) posso também fazê-lo indo ao consultório do meu dentista, onde está uma gravura emoldurada com aquela imagem. De facto, Hopper visto ao vivo acrescenta pouquíssimo ao prazer e ao significado que podemos tirar das reproduções. O desenho não tem graça, as cores são ácidas, as pinceladas insensíveis. Creio que Hopper pintava pensando na reprodutibilidade como uma nova possibilidade e um novo destino das imagens do seu tempo. Isto faz parte daquilo que o torna moderno e também incompreendido pelos seus detratores, que o consideram um simples ilustrador. Mas se Noctívagos é só uma ilustração, então um pontapé na cabeça é uma canção de embalar”.

Noctívagos
é um quadro que vive em simbiose com o conto de Ernest Hemingway Killlers de 1927, no qual se inspira, mas que por sua vez inspirou o ambiente da versão cinematográfica filmada em 1946. A cena nocturna representa o interior de um bar visível graças a um imenso vidro, através do qual se vêem, sentados ao balcão, um cliente solitário de costas e um homem e uma mulher de frente. O empregado olha distraidamente o casal. A estrada deserta, em primeiro plano, é iluminada pela luz que se propaga pelo vidro do bar. Aparentemente, nada acontece.

Sol da manhã (1952) mostra uma mulher só num quarto. Vê-se de perfil sentada na cama feita.
Segura os joelhos. Diante dela uma grande janela aberta pela qual se vêem ao longe edifícios industriais castanhos e o céu azul. Também aqui não acontece nada.

Quarto sobre o mar (1951) representa um quarto completamente vazio sobre o qual se abre uma porta que dá para o mar aberto. Na parede principal e no pavimento aparece um duplo paralelepípedo de luz que quebra a sombra do ambiente interno. Está tudo aqui.

Podíamos contentar-nos, como por vezes se faz de modo demasiado apressado, em descrever Hopper como o poeta da vida comum americana, o cantor da solidão, o detective da alienação, o pintor do silêncio. Há quem dê um passo além fazendo notar uma veia filosófica ou mesmo transcendente. São todas leituras válidas e intrigantes. É possível representar num quadro “o silêncio?” De que se distingue a solidão da alienação? Mas o que é que, na tela, isto é, no recreio do pintor, dá origem a uma tal riqueza de leitura? O que o distingue de artistas oriundos do mesmo tronco realista? Onde está a sua arte?

OLHAR O MUNDO
Por vezes, para perceber o segredo de uma personalidade é útil ir ver, no decorrer do tempo, sobre quem teve influência e porquê. Por exemplo, o que diz a força expressiva de Velázquez sobre a obsessão que Francis Bacon tinha pelo retrato do Papa Inocêncio X? Porque a pintura explosiva do pintor inglês tinha necessidade de se apoiar, num olhar distraído, naquilo que parece um simples retrato da corte?

Neste sentido é revelador, de novo, paradoxal a observação do escritor inglês Geoff Dyer: “Hopper poderia comportar-se como o mais influente fotógrafo americano do século XX sem nunca ter tirado uma fotografia.”
Claro que um quadro como Noctívagos inspirou vários poetas, entre os quais Joyce Carol Oates que numa homónima lírica, conta o que para ela acontece na misteriosa pintura.

Além disso, a operação de transformar em palavras as próprias sensações diante de uma imagem, não exige necessariamente ter o mesmo olhar de quem a realizou.

Em 2009 a Fraenkel Gallery de S. Francisco apresentou uma exposição e um livro intitulados “Edward Hopper & Company”, que reunia obras de alguns dos fotógrafos que fizeram a história da fotografia americana: de Robert Adams a Diana Arbus, de Walker Evans a Stephen Shore, passando por Robert Frank.

Nunca nenhum deles pensou “refazer” as imagens do pintor (alguns tentaram, mas nenhum encontrou a verdadeira Casa junto a caminho de ferro …). Aquilo que por vezes conscientemente, outras vezes não, estes fotógrafos partilham com Hopper é a atitude mental que se traduz no modo de olhar o mundo. O mesmo, mas fala-se de um processo idêntico, vale para os realizadores (Alfred Hitchcock, mas também Wim Wenders e Terrence Malick).

Um deles, Robert Adams, grande artista, mas também importante teórico da estética contemporânea, conta que tendo-se em jovem mudado da Costa Este para a Costa Oeste dos Estados Unidos, nos primeiros anos sentia uma saudade dos lugares onde tinha crescido. Por acaso, encontrou numa revista imagens de Hopper: viu-as e reviveu os lugares e circunstâncias familiares. “Aquelas imagens eram um conforto, mas, naturalmente, não podiam levar-me de volta ao passado”, explica Adams: “No entanto, nos meses seguintes estas figuras começaram a dar-me algo de mais duradouro: dei-me conta que tinham uma intensidade de luz particular. Percebi que, com uma luz assim, todos os lugares se podem tornar interessantes”.

Para Stephen Shore, crescido na Factory de Andy Warhol e que depois se tornou um dos pioneiros da fotografia de arte a cores, “Hopper agrada a muita gente pela narrativa que subjaz aos seus quadros, que sugeririam por exemplo a história de uma pessoa sozinha dentro da própria cozinha. Mas para mim, isso não é particularmente interessante. O que acho fascinante é como ele consegue usar a luz para definir os espaços e os edifícios”.

Neste sentido Hopper seria um fotógrafo em sentido etimológico: escreve com a luz. Adams pergunta-se: “Existe outro pintor norte-americano que torne o cair da luz tão importante e central para tornar o sentido do isolamento americano e aquilo que tem sido o peso do silêncio na vida americana?”.

Nesta perspectiva, parece menos sibilina uma das poucas frases de Hopper que se transmite e que frequentemente tem lugar nas paredes das exposições a ele dedicadas: “Talvez não seja muito humano, mas o meu objectivo foi simplesmente o de pintar a luz do sol na parede de uma casa”.

TER UM CORAÇÃO. Discute-se muito o “talvez não seja muito humano”. Certamente, para Robert Adams, ao comportamento de Hopper não faltava sensibilidade: “Na faculdade pediam-me para ter um comportamento de afastamento em relação às coisas. Mas os quadros de Hopper, feitos em Cape Code e algures em New England, demonstram que é possível exprimir afecto por lugares naturalmente belos sem sentimentalismo. Em resumo: não era preciso envergonhar-se de ter um coração”. Talvez seja este o segredo de Hopper.



* QUEM É?
Edward Hopper nasceu em 22 de Julho de 1882 em Nyack, no estado de Nova Iorque.
No início ganha a vida como ilustrador. Desloca-se várias vezes à Europa, em particular a Paris, onde conhece os Mestres da pintura. Em 1924 casa com Josephine Nivison, que irá posar para muitos dos seus quadros. Em 1952, representa os Estados Unidos na Bienal de Veneza. Morreu em Nova Iorque em 1967.