Saraiva Martins: Porque é que Fátima nos fala ainda hoje

Cem anos depois das aparições, o Papa canoniza Francisco e Jacinta. O cardeal português, ex-prefeito da Congregação para a Causa dos Santos explica a «extraordinária heroicidade» dos pastorinhos.
Stefano Maria Paci*

«Ouvi falar de Fátima e dos três pastorinhos que viram Nossa Senhora desde pequenino, faz parte do nosso DNA de portugueses, lembro-me ainda da emoção da primeira vez que me levaram lá. Nunca teria imaginado que um dia me tornaria, de alguma maneira, um dos protagonista destes acontecimentos, que contribuiria a elevar aos altares Francisco e Jacinta, que teria conhecido e encontrado regularmente a irmã Lúcia, e que depois haveria de pedir ao Papa que abrisse antecipadamente o processo de beatificação da última vidente de Fátima». Di-lo com um sorriso, quase a resguardar-se, o cardeal José Saraiva Martins, 85 anos bem levados, que se encontrou comigo no apartamento propriedade do Vaticano, mesmo pegado à Praça São Pedro. Conheço há anos sua Eminência, ao longo do tempo já me fez muitas confidências, até me fez entrar, pela primeira vez com câmaras de filmar, no Arquivo da Congregação para a Causa dos Santos de que foi Perfeito durante dez anos, permitindo filmar os sinais tangíveis que ficaram na terra dos milagres que acontecem em todo o planeta, como os grãos de arroz que, em 1949, em Espanha, se multiplicaram nas panelas da cantina para os pobres, debaixo dos olhos de centenas de testemunhas, como se fosse um renovar-se do milagre dos pães e dos peixes; as radiografias da mulher de religião hindu que de repente se curou por intercessão da Madre Teresa; os grossos volumes em que estão compiladas os surpreendentes testemunhos sobre o Padre Pio.

E hoje, com o Cardeal português, falamos dos cem anos das Aparições de Nossa Senhora em Fátima, data que leva pela primeira vez o Papa Francisco ao Santuário, meta de peregrinação de milhões de pessoas em cada ano. E se em 13 de maio de 2000 foi João Paulo II que beatificou dois dos três pastorinhos, Jacinta e Francisco, e fez revelar a terceira parte do segredo de Fátima, neste 13 de maio é Bergoglio que os proclama santos. Mortos novíssimos, os corpos de Jacinta e Francisco estão sepultados na Basílica. Ao seu lado, agora repousa também Lúcia.

Eminência, uma vez um seu colega Cardeal disse-me: «Na minha opinião, crianças tão pequenas não deveriam ser levadas às honras dos altares. Em crianças somos todos santos». O que pensa disso?
Numa certa altura, era proibido beatificar, e por isso canonizar, crianças, porque não eram considerados capazes de «praticar as virtudes cristãs num grau heróico», primeiro requisito para depois ser elevado à glória dos altares. Mas para mim isto não era um principio aceitável, e Jacinta e Francisco foram as primeiras crianças na história da Igreja a ser beatificados. Eles foram de uma «heroicidade cristã» extraordinária, que gostaria de encontrar em muitos adultos.
Tentaram aterrorizá-los, para os obrigar a dizer que o que tinham visto era uma imaginação de crianças. Nunca cederam, nem sequer diante de ameaças de morte, feitas pelas autoridades que os tinham presos. Até lhes disseram que a Lúcia tinha sido morta no óleo a ferver, e que lhes aconteceria a mesma coisa. Mas não cederam.

Passou um século desde aquelas aparições. Como é que pode ser útil, para o homem de hoje, proclamar como santos crianças nascidas naquela altura?
Podem ser modelos modernos no modo de viver a fé – não só de a perceber, mas de a viver. Puseram em prática, concretamente na sua vida, aquilo que Nossa Senhora lhes disse. Aderiram com alegria ao que encontraram. Foram capazes de se espantar.

Fátima é um “lugar” cheio de mistérios. O sol que gira diante de centenas de pessoas, uma fonte milagrosa, uma mensagem que ainda hoje gera discussão. Falou-se muito do terceiro segredo de Fátima (na realidade, a terceira parte de um único segredo). João Paulo II deu-o a conhecer precisamente no adro do Santuário, mas há quem defenda que não tenha sido integralmente revelado, e que uma parte ainda continue escondida. O que pensa disso?
Penso que é uma tolice. E que foi revelado tudo aquilo que havia para revelar. Não há mais nenhum mistério, e não se pode pensar que os Papas que disseram que tudo foi revelado tenham decidido mentir sobre isto.

Depois da queda do Muro de Berlim e dos primeiros sinais de cedências do regime soviético, recebeu uma afirmação de João Paulo II à irmã Lúcia. A última vidente disse-me: «Evitou-se uma terceira guerra mundial». Palavras que me espantaram.
Percebo a sua reação, mas é verdade. É muito verdade. As condições para uma Terceira Guerra mundial estavam lá todas. De certeza. E evitou-se. Se não rezarem, virá uma Terceira Guerra mundial, tinha dito Nossa Senhora. E ela evitou-se. Graças às orações.

No terceiro segredo fala-se também de um Bispo vestido de branco que morre assassinado. João Paulo II identificou-o consigo próprio, ainda que ele não tenha morrido. «Uma mão disparou, outra desviou a bala», disse.
E foi expressamente a Fátima para oferecer a bala que o devia ter morto. Eu estava sentado ao lado dele quando, no Santuário, ofereceu aquela bala à Virgem, para lhe agradecer tê-lo salvo. Estávamos numa sala, a imagem de Nossa Senhora de Fátima estava em cima da mesa, à frente dele, e eu estava ao lado do Papa. Wojtyla colocou a bala em cima da mesa, e com o dedo ia-a aproximando, lentamente, aos bocadinhos, de Nossa Senhora. Estava a viver aquele momento intensamente. Até que a pôs à sua frente.

Como se estivesse em diálogo com Nossa Senhora…
Sim, um diálogo de gratidão. Aquela bala agora está incrustada na coroa da imagem de Nossa Senhora de Fátima.

Os dois pastorinhos vão ser proclamados santos; está a correr o processo de beatificação da irmã Lúcia. Sua Eminência conheceu-a muito bem, era um dos poucos que se podia aproximar dela.
Eu passo as férias, geralmente, em Portugal, e as irmãs do Convento de clausura de Coimbra, onde vivia a irmã Lúcia, convidavam-me todos os 15 de agosto para celebrar a missa com elas, na festa da Assunção. Antes ou depois da celebração, tínhamos um encontro com as irmãs e naturalmente ela também estava. Lúcia era uma pessoa muito simples, mas muito inteligente. Prudente, sábia, com uma memória impressionante, e também muito concreta. Tanto que (isto pode surpreender) quando as irmãs decidiram fundar outro convento, porque já eram muitas, escolheram-na a ela para ir falar e acompanhar os arquitetos na construção do edifício novo. Tarefa nada fácil. Pensa-se que os santos vivem uma vida abstrata, perdidos no espiritual. Pois, nunca é assim. São pessoas concretíssimas. Lúcia não vivia nas nuvens. E era dotada também de um grande sentido de humor.

O processo de beatificação da Lúcia também começou quando Sua Eminência era Perfeito da Congregação da Causa dos Santos.
De acordo com a lei canónica, um processo de beatificação pode começar somente cinco anos depois da morte. Mas quando só se tinham passado dois da morte da irmã Lúcia, pensei que fosse bom abreviar os tempos. Então fui ter com o Papa Bento XVI e disse-lhe: «Santidade, antecipar em alguns anos o processo é a maior graça que pode dar à Igreja portuguesa e à Igreja universal». E Ratzinger respondeu: «Muito bem, então fazemos isso». Esperava que os três pastorinhos pudessem ser canonizados juntos, mas não foi possível.

A cem anos de distância, o que fica do segredo de Fátima?
A sua mensagem ainda é atual, muito atual. Refere-se aos problemas concretos, existenciais, que vivemos em cada dia na Igreja e na sociedade. Antes de mais a fé, que infelizmente está a desaparecer. Há uma crise de fé, hoje, no mundo, que penetra também nos católicos, penetra na Igreja. Viver a mensagem de Fátima significa converter-se e aproximar-se cada vez mais de Deus e dos irmãos. Além disso, é um apelo à paz. Do que é que falam, todos os dias, os jornais? Atentados, massacres, destruições. As religiões tornaram-se motivo de separação e de morte. Pelo contrário, Deus é fonte de paz. Mas, sobretudo, o fundamento da mensagem de Fátima é a esperança. Sem esperança a vida não tem sentido. Tantos jovens, hoje, já não sabem qual é o sentido da vida. Não se fala muito disso, mas muitos suicidam-se. Sem a esperança não se pode viver. Não se pode ser feliz, sem conhecer o sentido, o fim da vida. Pelo contrário, em Fátima, Nossa Senhora disse que a vida com Jesus é uma vida verdadeiramente vivida, livre, que se enfrenta com alegria e com entusiasmo. Que extraordinária beleza, o cristianismo.


*Vaticanista da Sky Tv24