Antes de qualquer sombra

Capelão da prisão de menores em Beccaria (Milão), empenhado numa obra que acolhe rapazes em dificuldades, o P. Claudio Burgio, falou-nos dele. E daquilo que descobriu nestes anos sobre a misericórdia...
P. Claudio Burgio

Chamam-lhes maus rapazes, agressores, delinquentes, jovens desviados. Outros, por sua vez, chamam-lhes bebés grandes, adormecidos, NEET (“Not currently engaged in Employment, Education or Training” – termo inglês que se refere aos jovens sem participação activa na sociedade). As definições desperdiçam-se, quando se fala de jovens. As definições são sempre hábeis expedientes de adultos para se preocuparem com os jovens sem realmente se ocuparem, para nos distrair, não querendo enfrentar a fundo a sua realidade. Também um paradoxo evangélico – os últimos serão os primeiros – pode ser simplesmente um slogan, uma definição: nós adultos somos hábeis a iludir também a verdade de um paradoxo como o que Jesus exprime.

Há dez, onze anos, encontrei os rapazes da prisão menor “Beccaria” de Milão, e para mim tem sido verdadeiramente uma graça: um despertar da minha consciência de homem, de padre. Imerso como estava na pastoral das paróquias desde há dez anos, não me tinha dado conta de que eu próprio me tinha tornado um pouco preguiçoso, um pouco adormecido na ‘apatia’ do “fazer”, também pastoral, que me acompanhava sem particular rasgo espiritual.

A cela e o primeiro rapaz encontrado em Beccaria foram para mim um despertar potente, uma força avassaladora. Porque eu, novo, ainda bastante jovem, chego ao pé do primeiro adolescente que encontrei e digo: «Olá, eu sou o Padre Claudio, o novo capelão; tu como te chamas?». «Não te metas», foi a resposta. Clara, perentória, sem fraseados. E eu tenho muito a agradecer àquele primeiro rapaz, porque foi como um despertar. Tinha apostado tudo no meu papel de capelão, tinha pensado que as seguranças que te constroem na vida adulta pertencem a um certo modo de estar na Igreja, na sociedade. E aquele rapaz, de maneira tão simples, fez-me cair estas certezas assumidas e transmitiu-me esta beleza: o facto de ser também eu um último, de não poder confiar absolutamente no meu papel, na minha experiência, no meu ser padre, nos meus esquemas pastorais e mentais.

Então descobri que a educação – alguém já o tinha dito antes de mim, mas eu só descobri agora – é um risco: é um risco porque te põe sempre diante do inédito. Cada encontro, antes de mais, é um encontro para sempre. Mas é um encontro que te perturba, se verdadeiramente deixas que entre dentro de ti, se deixas que haja um espaço é um tempo de partilha verdadeira, de escuta autêntica.

Aquele primeiro rapaz transmitiu-me algo de importante, a tal ponto que naquela noite me disse: «Mas eu, quem sou? Quem são os primeiros? Quem são os últimos? Quem sou eu diante deste rapaz?». Na minha presunção, a resposta imediata foi esta: chamar-lhe “não te metas” durante toda a semana. Fui atrás dele, em parte, para ostentar segurança e petulância. Mas também esta era uma modalidade de quem queria viver a relação com o outro marcada por um exercício de poder. Fazer-se último quer dizer redescobrir-se débil, despojado das suas seguranças.

Hoje parece que educar é quase um exercício de autoridade, vertical, de cima para baixo. Em Beccaria aprendi que educar é um exercício circular, entre pessoas com as mesma dignidade. Não importa a proveniência, a idade. Existe uma assimetria que se deve tomar, claro, porque estamos a falar do âmbito pedagógico, mas existe uma simetria porque todos somos pessoas que sentem a falta, que têm medo da perda, medo de enfrentar os próprios sofrimentos. O encontro com estes rapazes retransmitiu-me a beleza de uma vida dinâmica, que nunca se deixa habituar. Viver com eles é sempre viver uma jornada inédita: um dia estás com um rapaz a fazer reflexões de fé, outro dia aquele mesmo rapaz é preso por roubo; um dia outro rapaz fala-te de amor, e depois embebeda-se para não pensar… Mas este contínuo dinamismo dá-te sempre a alegria de dizer: «Está bem, recomeçamos, de onde estamos, o que é que Deus me está a dizer». Assim aprendi a fazer minhas as palavras de Gregório Magno: «Muitas coisas que nas Sagradas Escrituras não consigo perceber sozinho, percebi-as pondo-me diante aos meus irmãos. Dei-me conta que a inteligência me foi concedida por mérito deles». E assim tem sido.

“Tu és um bem para mim” é a possibilidade que o outro não seja simplesmente uma ameaça, um obstáculo, que não seja o inferno, mas seja a tua riqueza, a tua possibilidade, o teu recurso. E, para mim, esta foi – e é ainda – a experiência de viver com estes rapazes, também em comunidade. “Tu és um bem para mim” porque me fazes decifrar quem sou, me fazes perceber quanto valho. Existem rapazes em Beccaria que não gostam deles próprios, que se deixam andar. Recordo sempre um deles que um dia me disse: «Padre, é inútil que lutes por mim. Eu sou um viciado em drogas, eu nunca vou mudar». E eu, simplesmente, replico: «Olha, tu não és um viciado em drogas. No máximo és um rapaz que usou substâncias estupefacientes». E, justamente, ele diz-me: «Está bem, qual é a diferença?». «Existe muita diferença», explico-lhe, «se tu és um viciado em drogas, quer dizer que te identificas-te com o teu mal, com o teu problema, e que não há saída. Mas tu és um bem. Em primeiro lugar o bem é a origem. Depois sim, usaste substâncias, és um rapaz que teve algumas quedas, mas em primeiro lugar és um rapaz». E ele «Está bem, não me convenceste». Passam duas semanas e, um dia, oiço que do fundo de uma cela outro rapaz o chama e lhe diz: «Ó falhado!». Ele volta-se e responde-lhe: «Não, eu sou um rapaz que tem falhas».

Aquele adolescente fez-me perceber que sim, nós somos um bem na origem, por vezes achamos difícil acreditar, por vezes temos dificuldade em reconciliarmo-nos com as nossas sombras, com os nossos pecados, com os nossos limites, mas somos sempre um bem que precede cada falta.

Então, neste caminho que se abriu à minha frente, aprendi assim a reconhecer no outro um recurso e também o que quer dizer para mim educar. Educar, por exemplo, exige a paciência da espera. Aquela que nós adultos tantas vezes não temos, porque realmente temos necessidade de prestações, de resultados. No fundo, muito do sistema educativo é baseado nos resultados, nas notas, nas prestações, como ocorre no âmbito desportivo: existem tantas situações em que estes jovens devem sobressair. Mas talvez nem cheguemos a perceber que colocamos sobre eles o dever de ser sempre bem sucedidos, de cumprir sempre as expectativas. Há rapazes que todos os dias me dizem que não aguentam a ansiedade da prestação, para cumprir a expectativa dos adultos. Então aprendi, também em Beccaria, a saber esperar: a perceber que a expectativa é preciosa e que tu não és o artífice da mudança do outro. Tu, simplesmente, és aquele que o acompanha dentro de um caminho belo, cansativo, importante, mas não podes dispor da sua liberdade, não podes forçar, não podes impor uma mudança à força.

Lembro-me sempre do Mattia, um rapaz de 14 anos, que há muito tempo assassinou uma miúda da sua idade. Um facto que chocou a Itália. Mattia chegou a Beccaria e durante três anos e meio falámos de tudo, mas nunca do homicídio. Falámos de desporto, jogámos ao berlinde, ping-pong. Depois de três anos e meio, então com 17 anos e meio, um dia a sua mãe pára-me e diz-me: «Hoje, pela primeira vez, inesperadamente, o meu filho disse-me: “Mãe, se naquela noite te tivesse dito que tinha sido eu, o que é que tinhas feito?”» Ela não sabia o que responder, e acabou por lhe dizer: «Olha, teria estado junto a ti, mas também te tinha levado a entregar às forças policiais». E ele: «Mãe obrigado, é a resposta que esperava ouvir». Alguns dias depois, lembro-me, ali na cela, o desejo deste rapaz em contar-me cada detalhe daquele terrível homicídio. Por vezes a mudança gera-se no tempo. Pensar nos três anos e meio passados a jogar ao berlinde, aparentemente sem dizer e fazer nada. É a inutilidade de certos tempos aparentemente supérfluos, insignificantes que nós dedicamos aos jovens ou aos nossos filhos e que são na realidade uteis, mas não o percebemos de imediato.

A palavra misericórdia pode tornar-se um slogan, mas eu tive a graça de encontrar tantos episódios, tantos factos de Evangelho, de misericórdia. Um dia um rapaz fez-me entrar na cela e lê-me a carta de uma senhora. Na memória ficaram-me estas duas frases: «Porque não existem os meus filhos e os filhos dos outros. Os filhos são sempre nossos». E depois mais outra: «Já perdi um filho, não quero perder outro». Perguntei-lhe: «Quem te escreve?». «É a mãe do rapaz que matei». Este é um daqueles factos de Evangelho que te pertencem, que ficam para toda a vida: saber que existe uma mãe que sabe viver a misericórdia assim!

É por isto que a misericórdia é geradora. Nunca é um slogan. Às vezes tendemos a torna-la uma definição, mas a misericórdia é geradora quando move a partir da verdade, de uma autenticidade, quando move a partir do perdão, de uma vida de gratuidade. É certo que é duro enfrentar certas realidades dramáticas da própria existência. Mas aquele rapaz disse-me: «Se eu estou a tentar mudar, se estou a procurar fazê-lo, é porque esta mãe me escreveu estas palavras». Então tudo é possível: um encontro torna-se gerador, um encontro torna-se possibilidade.

Nós deformámos um pouco a linguagem da Bíblia. No Génesis, as primeiras palavras que Deus dirige ao homem são: «Podes comer do fruto de todas as árvores do jardim; mas...». É interessante aquele «podes»: as primeiras palavras de Deus ao homem. Depois, porém, chega a serpente, e astutamente diz a Adão e a Eva: «Não vos disse Deus que não deviam comer da arvore do conhecimento?» Disse: «Não devias.». Nós como é que entendemos a educação? É um «podes» ou é um «não deves»? Porque um vem de Deus, o outro vem do maligno. Se nós pensamos que educar é exercer o poder da lei dos códigos, estamos enganados.

A justiça é importante, a prisão existe e é justo, por vezes também para rapazes pequenos. Mas é, em primeiro lugar, aquele tu «podes» que origina a vontade de bem que existe neles. Quando se sentem dentro de um projecto importante, acontecem as mudanças mais verdadeiras. Não é por aderir a uma lei, a uma imposição exterior, que uma pessoa muda. Nunca vi um rapaz mudar somente pela força das regras. Nós temos necessidade de nos tornar adultos assim, que encorajam o tu «podes», que não têm medo, que não têm necessidade de impor nada à liberdade dos rapazes. Depois há as derrotas, mas eu não lhes chamo jamais derrotas, são falhas, mas eu não lhes chamo jamais falhas: são histórias, a liberdade.

Tinha saído a notícia destes dois rapazes que tinham ido alistar-se no Isis e que pertenciam à minha comunidade. Dois rapazes muito jovens, que há um ano e meio partiram para a Síria. Eu ainda hoje não consigo imaginá-los como terroristas. Dou-me conta, é certo, mas para mim são ainda aqueles rapazes. Abraçaram uma identidade, que para um deles já significou a morte, uma identidade que – entendam-no ou não – não é verdadeira. Mas continuam os meus rapazes, vítimas desconhecedoras de um amargo destino. Também estes rapazes na sua loucura terrorista me ensinaram qualquer coisa. Um deles dizia-me: “Tive dois progenitores, mas nunca tive um pai e uma mãe”. Eis o que somos chamados a ser: pais, sem nos esquecermos de ser em primeiro lugar filhos.

Nós devemos ajudar as novas gerações a sentir-se parte de um projecto importante. Se não há futuro, se não há acolhimento verdadeiro, se não há partilha real, expomo-nos também ao perigo e às derivas dos novos totalitarismos sempre iminentes. Um dos dois rapazes que partiram para combater na Síria mandou-me uma última mensagem para o telemóvel, antes de partir: «Obrigado por tudo, estamos bem. Que Alá te ilumine sobre o seu recto caminho. Vemo-nos no Paraíso, inshallah». Eu prefiro lembrá-lo assim. Hoje talvez seja um inimigo, nós perceberemos sempre a história depois, mas eu penso que também uma história errada pode ser uma história de salvação, sempre. Não somos nós a julgar, não somos nós a perceber: na história da fé, existem acontecimentos amargos que se tornaram histórias de salvação.

Os rapazes de Beccaria, os rapazes da comunidade, têm perguntas sérias: Não é verdade que Deus seja uma entidade estranha às suas vidas. Aliás, no momento da dor, do sofrimento, interpelam-me constantemente sobre Deus, sobre o Seu mistério. Dois rapazes até o fizeram fisicamente, fecharam-me na cela numa tarde de Páscoa e disseram-me: «Agora não sais até que nos expliques esta história desse tipo que escapa do sepulcro e os guardas não se apercebem». Por duas horas e meia falámos sobre a Ressurreição… Não o fazía nem sequer na paróquia. Por vezes nós, ainda que sejamos cristãos, não nos perguntamos nada sobre o evento decisivo da nossa história: a Ressurreição. Pelo contrário, naquela noite, depois de eu ter dito algumas palavras, depois de ter procurado explicar, voltei para casa e disse a mim mesmo: de onde recomeço? Porque a fé nunca é uma chegada, nunca é uma coisa que te é dada para sempre. É verdade, como dizia alguém, que nascemos sempre com uma bagagem. Também quem nasce numa família do movimento pertence ao movimento, mas depois não basta: é preciso um movimento de reconquista, se queres realmente herdar, é preciso um movimento de “subjectivação”, se queres verdadeiramente possuir aquilo que a vida te entregou. Os rapazes que encontro são um bem para mim também por isto, porque me ajudam a não ter uma fé dada por adquirida, aplainada pelas fórmulas. Mas uma fé sempre à procura, uma fé que se pergunta sempre: Deus onde estás? Onde estás?

E depois é bonito dizer que a vida é: «Vinde e vede». E cada um tem esta tarefa lindíssima, originária, de descobrir e maravilhar-se.