“Pisa! Não queres ser livre?"

No "Silêncio", de Martin Scorcese, aqueles que se recusam a pisar, mantêm uma certeza e uma serenidade que os ultrapassa, enquanto quem pisa - e, supostamente, fica mais livre - afasta-se, de semblante infeliz e amargurado
Aura Miguel (jornalista da Rádio Renascença)

A indicação do funcionário japonês é formulada em tom convidativo. À sua frente há uma fila de cristãos e cada um sabe bem o que o espera: ou pisa o fumie - uma espécie de ícone em alto relevo, com a Imagem de Cristo - sinal público de que renega o baptismo, abjurando a fé católica; ou então, se se recusa a pisar, é levado para a tortura da fossa e morte cruel.
A alternativa parece desproporcionada, pois para escapar a tão terríveis tormentos, os homens de poder insistem com os simples fiéis das aldeias que “pisar o fumie é só uma formalidade e que basta pores o pé levemente e já está, ficas livre!”

No “Silêncio”, de Martin Scorcese, o contraste é perturbador, pois aqueles que se recusam a pisar, mantêm uma certeza e uma serenidade que os ultrapassa, enquanto quem pisa - e, supostamente, fica mais livre - afasta-se, de semblante infeliz e amargurado.

O dilema atinge o seu climax quando toca os missionários jesuítas. Dados históricos demonstram que a maioria dos sacerdotes morreu mártir, mas nem todos. No filme, o padre português Cristóvão Ferreira - figura importante na Companhia de Jesus e referência para sucessivas gerações de missionários - após submetido à tortura da fossa, pisa o fumie. O apóstata Ferreira passa, então, a ser usado pelas autoridades japonesas para convencer os outros missionários a abjurarem, tal como ele.

Ferreira - incapaz de olhar nos olhos o seu antigo aluno Sebastião Rodrigues - pressiona-o ao gesto público do fumie, porque a dimensão privada é que vale: “Não interessa o que diz a Igreja católica, mas a tua consciência e a relação directa com o Senhor”, sussurra-lhe, ao ouvido, o seu ex-mestre.

Mas o filme não se reduz a este horror. Este “Silêncio” também fala de conversão e da misteriosa possibilidade de começar e recomeçar sempre (às vezes com repugnância), apesar de tantas quedas e traições. Porque a objectividade dos sacramentos é infinitamente superior à miséria de quem peca. E aqueles que O reconhecem, na verdade, é que são livres.

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