O Ano que não acaba

A 20 de novembro terminou o Jubileu da Misercórdia, mas não se acabou o «trabalho para nos abrir a ela». Seguir o Papa, os migrantes que «refletem quem somos», o que nos espera agora... Fala o Padre Mauro-Giuseppe Lepori, abade geral dos cistercienses
Alessandra Stoppa

Uma ovelha adulta pesa entre quarenta e cinco e cem quilos. Como uma pessoa. «Levá-la às costas é um sacrifício». O Padre Mauro Giuseppe Lepori, Abade Geral dos Cistercienses, desmonta qualquer visão romântica do Bom Pastor, que imaginamos que, depois de ter deixado tudo para andar à procura da única ovelha perdida, «talvez a ponha às costas e volte aos saltos pelas montanhas assobiando».
O realismo do Evangelho conta uma outra história, onde os corpos têm um peso e o amor é concreto, sofre, cansa-se pelo outro, e as palavras têm valor, os gestos uma profundidade. «Naquela ovelha vejo o meu “peso”. Ou quando nos percebemos como um peso para os outros. Contudo, somos amados». Somos perdoados, carregados às costas e levados. Como Jesus leva Judas, que O traiu, no capitel medieval da Basílica de Vézelay, imagem da misericórdia, como disse o Papa Francisco olhando para aquele baixo-relevo: «Ele agarrava as pessoas como elas eram, não como deviam ser».

A 20 de Novembro fecharam-se em todo o mundo as Portas Santas e concluiu-se o Jubileu, iniciado a 8 de Dezembro do ano passado. Não há “balanço que aguente”, mas neste diálogo o Padre Lepori explica-nos porque é que o tempo da graça «não acaba». De olhar fixo no Evangelho, lê o Ano Santo como o “espaço” que Jesus criou enquanto a multidão o assaltava, quando pediu aos discípulos para falar num barco distante da margem.

Porque é que aquele gesto de Jesus nos ajuda a compreender o tempo dedicado à misericórdia?
Nós queremos, como a multidão, tocar Jesus e obter uma magia. Dedicar um ano do caminho a um tema, a uma realidade, é como ganhar aquela distância: para ouvir, para dar o tempo de tomar consciência da misericórdia, para olhar o que é que esta pede à minha liberdade, seja para receber, seja para oferecer. Impressiona-me porque é que Jesus pediu a barca, não foi para fugir da multidão, mas porque aquela gente queria os milagres e não o ouviam. Ele veio, em primeiro lugar, para provocar a liberdade do homem, e é essencial que possa falar e ser ouvido. É essencial que o homem, cada um de nós, se ponha diante Dele com um silêncio. Também a respeito das expectativas imediatas.

O que representou o Jubileu para a vida da Igreja?
Foi o aprofundamento de um mistério. Um aprofundamento daquilo que temos necessidade, não porque seja um ano consagrado, mas porque é vital. O Papa pôs a misericórdia no centro da nossa vida. E fê-lo com os seus gestos e com os gestos que nos pedia: fez-nos exercitar, não somente uma chamada de atenção, mas uma experiência. Em primeiro lugar defendendo capilarmente a possibilidade de confessarmo-nos, de ganhar a indulgência, de meditar sobre este mistério e de vivê-lo, e também através das obras corporais e espirituais, de modo "encarnado". Por isso o Ano da Misericórdia não acaba.

Explique melhor.
Tornámo-nos mais conscientes que a misericórdia é uma realidade que existe. É o mistério que está no coração da Igreja e do qual nós temos uma necessidade total. O Jubileu foi mais curto que um ano solar e isto faz-nos perceber que o problema não é viver “um ano santo”, mas viver a vida cristã, acordar e despertar para uma consciência que é possível sempre. Assim, o importante é que não se fecha a experiência da misericórdia. E o nosso trabalho para nos abrirmos a ela.

O que é que reteve mais deste aprofundamento?
O Papa lançou o Ano Santo para enfrentar as feridas do mundo e da Igreja: quer as do pecado, quer as infligidas pela história, pelas catástrofes. Um dos aspectos essenciais, na minha opinião, é que surgiu a necessidade de nos darmos conta que o homem, antes de analisar e definir o seu mal-estar, tem necessidade de saber-se amado. É de uma enorme beleza que São Bento no Prólogo da Regra ponha em cena Deus que, no meio da multidão, grita: «Há um homem que quer a vida e deseja dias felizes?». Este convite do Senhor é a misericórdia. É uma proposta ao homem assim como ele é, e assim como é neste momento da história. Alguém que responda «eu», pode fazer esta experiência.

E depois de o homem dizer «eu», como continua?

São Bento escreve: «Deus disse-te: “Se queres ter a vida verdadeira e eterna, guarda a tua língua do mal e os teus lábios não digam mentiras; foge do mal e faz o bem, procura a paz e segue-a”».

A resposta à pergunta de felicidade é uma estrada a percorrer?

A resposta é um caminho de conversão: o caminho para não se deixar ir pela tendência que temos, que é de não sermos misericordiosos. No fundo, a Igreja por vezes, parece não responder às exigências do homem porque oferece um caminho. Não é “milagreira”: quando o é, então depois é frágil; são experiências e propostas que não ajudam as pessoas a crescer, a tornar-se livres e adultas. Quando se oferece uma solução que não se transforma em caminho de conversão, de liberdade, a pessoa permanece frágil. A Igreja propõe uma estrada para uma verdadeira felicidade, não para satisfações imediatas, como aquelas que oferece a sociedade. Responder «eu» a Deus, que nos quer felizes, significa sermos conscientes da nossa verdadeira necessidade. Somos confusos na identidade que nos damos, fazemo-la coincidir com mil desejos, mas que por sua vez é desejo de infinito: de uma felicidade que só Deus pode dar. Então, para dizer verdadeiramente «eu», é preciso fazer como que um silêncio, é preciso renunciar à satisfação que substitui a felicidade.

O Papa disse-nos sempre que este seria um tempo favorável se tivéssemos aprendido «a escolher “aquilo que agrada mais a Deus”, isto é, a sua misericórdia, o seu amor, a sua ternura». O que significa este escolher, preferir?

O filho pródigo, como de resto nós, não é capaz, por si mesmo, de preferir o pai: responde à preferência do pai por ele. E não há preferência fora de uma misericórdia! O filho volta pedindo somente um trabalho e algo para comer, mas naquele perdão descobre uma plenitude de vida: se escolhe o pai, tem tudo. Também o irmão mais velho, embora tenha ficado em casa, escolhia outra coisa: até àquele momento não tinha preferido o pai, nem se tinha deixado preferir; a sua afeição estava toda noutro lugar, nos amigos, no cabrito, na metade da herança. A plenitude, por sua vez, coincide com aquela relação, mas é uma graça que nenhum dos dois produziu. É uma gratuidade. A questão do escolher e preferir é realmente deixar converter a nossa afeição, o desejo de vida que temos, ao Pai. Isto é o que se espera que tenhamos aprendido no Jubileu: é sempre preciso partir da preferência de Deus por nós, daquilo que somos para Ele.

O que é que, em particular, o acompanhou durante este Ano?

Impressiona-me que enquanto aprofundamos o mistério da misericórdia continuam a passar-nos à frente imagens dos refugiados sobre barcaças no Mediterrâneo. Esta humanidade assim desgraçada chega na clemência das ondas, para fazer-nos ver como num espelho: reflectem aquilo que somos, a nossa situação, porque nós flutuamos na realidade sem pontos de ancoradouro, sem estabilidade. Os migrantes, no fundo, revelam-nos a nossa falta de solidez que não nos permite oferecer-lhes uma morada. Eu não penso que a Europa não saiba ou não queira acolher, mas quase que não pode: não é capaz. Estas pessoas chegam do mar, mas não acabam na terra: continuamos a fazê-las flutuar, porque não podemos oferecer-lhe uma morada se não a temos.

E como incide o Ano Santo nisto?

Com o Jubileu o Papa fez-nos ver que, acolhendo tornamo-nos naquilo que escolhemos. Aquilo que nos daria estabilidade seria o risco de acolher. Fazendo-o, tornamo-nos morada. Nós pomos a nossa certeza na segurança que temos nas mãos, em vez de pô-la numa relação, na pertença a alguém. Também nos sentimos ameaçados, de vários modos, pelos outros, porque corroem o nosso espaço de segurança. Enquanto a consistência é a relação com o Pai. Esta é a misericórdia: experimentar que nesta pertença eu tenho uma solidez que não me será tirada nunca, que nada e ninguém me pode subtrair, pela qual posso acolher todos e perdoar tudo.

Como experimenta esta consistência que nada pode tirar-lhe?

Apenas na pertença à Igreja, que me faz fazer experiência da misericórdia do Senhor: faz-me acreditar nela, faz-me pedi-la e dá-ma, antes de tudo nos sacramentos. Permite-me fazer verdadeiramente experiência de uma realidade que existe. E é uma realidade a que posso voltar; mais, é uma experiência que se faz realmente “voltando”, a partir do nosso próprio decair. Isto deixa-nos abertos ao outro que é diferente, perturba, fere.

Tanta gente nem sequer sabe o que é o Ano da Misericórdia. Como é que esta experiência alcança todos?

Aqui trata-se de toda a missão que o Papa quer, espera, que nasça deste Jubileu: que o homem conheça a misericórdia. Tal como houve necessidade de um Ano Santo, assim há necessidade de lugares, de comunidades que encarnem aquele abraço que ama e acolhe. A Igreja permanece para isto, para a missão, que é transmitir uma experiência. Por isso, é importante fazê-la experiência; que este ano se tenha feito experiência.

Porque é o único modo para transmiti-la?

Nós somos complicados e pensamos que comunicar esta experiência seja mais difícil do que o perdão que recebemos. O ponto é abandonarmo-nos a esta simplicidade de transmitir um amor que nos foi dado. De imediato renascem as defesas da nossa segurança: é como se o filho pródigo, que volta a casa e é acolhido sem repreensões, depois começasse a encontrar segurança nas coisas que volta a possuir. Esquecendo que, agora, toda a sua consistência é aquele abraço que recebeu.

Falando da misericórdia, faz referência a um episódio da vida de São Bento. Quando os monges de Vicovaro tentam envenená-lo, ele levanta-se, «com cara afável e ânimo tranquilo», e diz: «Deus tenha misericórdia de vós, irmãos».
Bento pode reagir assim porque fez uma experiência de misericórdia, que nele chegou à profundidade: coincide com o seu coração. Por isso a cara está pacifica e o seu ânimo tranquilo. Cultivou esta memória, que Deus nos perdoa tudo, pelo que na primeira ocasião transmite esta experiência. E uma situação de morte de imediato se transforma numa proposta de vida.

Uma das provocações mais fortes é a de viver a relação entre verdade e misericórdia. O que é que nos ensinou o Ano Santo sobre isto? E como permitimos que a misericórdia prevaleça?
Estamos demasiado habituados a pensar que a disciplina é a condição para um caminho. A disciplina, no entanto, é o resultado. Se na minha vida percebi e aceitei certos valores, certas exigências morais, é porque fui amado antes que me fosse dada a lei. A lei nunca me salvou, pelo contrário a misericórdia fez-me perceber que também o princípio me quer bem. Por exemplo, na vida consagrada uma pessoa sente-se predilecta, escolhida, chamada a dizer “sim”, mas dá-se conta que viver verdadeiramente a pobreza, a castidade e a obediência não é uma condição, é o fruto. Para fazer o caminho é preciso ser atraído: o juízo por si só é uma condenação, enquanto o juízo transmitido por um amor atrai. E o amor é ver um outro que vive com plenitude um valor: o amor é, acima de tudo, a oferta de uma companhia. O Bom Pastor conduz as ovelhas porque está com elas e, fazendo assim, indica a estrada justa. Normalmente mostramos a estrada justa como uma indicação no mapa, e não fazemos o caminho com o outro, dispostos a acolhê-lo, a "sujar as mãos" com ele.

A Igreja de hoje oferece aos homens um caminho juntos?

Acredito que a situação actual da Igreja ponha as coisas no ponto certo. Hoje em dia já ninguém ouve e segue um juízo, um princípio para si mesmo. Hoje o homem diz: se não me amas, a tua lei não me diz mesmo nada. Já não existe uma confiança dentro da qual “verificar” uma resposta. Antes, bem ou mal, confiava-se na Igreja. Hoje é preciso voltar a criar este espaço de confiança no qual propor um juízo que corresponda mais à felicidade. Mas este espaço é criado de novo com uma companhia feita ao homem, sem a qual o juízo não tem terreno onde cair. Espanta-me muito o Papa Francisco pelo espaço de confiança que criou com ele. As pessoas que encontro, as mais impensáveis – também entre quem não crê ou vem de culturas e fés diferentes – exprimem uma grande confiança nele. Para mim é incrível. Esta confiança que ele suscita vejo-a como uma grande responsabilidade, interpela-me. É um tempo de graça que Deus oferece, e nós devemos ajudar o Papa a amar o homem na confiança que o Espírito Santo cria.

Que quer dizer ajudar e seguir o Papa? No Papa há talvez muitas coisas que comovem, mas é fácil parar naquilo que nos “corresponde”, o que pensamos já ter percebido.

Nós não sabemos seguir Cristo. Temos necessidade que a Igreja nos ensine. E nós seguimos o Papa porque através dele o próprio Cristo nos diz como quer ser seguido. E assim pede a nossa conversão. Cada Pontífice conduz o rebanho no tempo, no pedaço de história que Deus lhe faz atravessar, mas todos nos indicam Cristo: esta é a fonte da certeza, que torna inútil criar confrontos entre eles. Nos Papas da minha vida é evidente o amor a Cristo, cada um viveu o seu ministério preferindo e seguindo de perto Jesus. E é assim que eles se orientam. O Senhor pede à pessoa do Papa: «Segue-me em primeiro lugar», a fim de que também nós possamos segui-Lo. Só agora me dou conta que João, o discípulo predilecto, deixa entrar Pedro no sepulcro antes dele: para ver e acreditar, tem necessidade de seguir Pedro.

O que é importante para o “depois” do Ano Santo?

O devedor a quem foi perdoada toda a dívida, ao primeiro irmão que encontra não perdoa nem sequer o mínimo que lhe deve. Já se esqueceu. É este o problema: a passagem entre o ter recebido tudo e a misericórdia que o outro nos pede. A misericórdia recebida difunde-se se respondermos à misericórdia que nos é pedida. Por outro lado, entre as duas está uma desproporção imensa… Mas um minuto depois de tudo ser perdoado, somos capazes de nos pormos a calcular. E falo acima de tudo da nossa família, dos amigos, da comunidade, dos mais próximos. Imediatamente no primeiro encontro somos logo carrascos. Já nos esquecemos. Isto é importante para o “depois” do Ano Santo: que não nos esqueçamos. Esta é a grande consciência que nos é pedida. E pela qual devemos pedir mais misericórdia.