Uma espécie de esplendor paira sobre a vida dos homens

Ainda mal saímos do carro e já se ouvem gargalhadas a descer a ladeira. Assim que viramos a curva, vemos os nossos amigos...
Isabel Guedes e Catarina Almeida

Ainda mal saímos do carro e já se ouvem gargalhadas a descer a ladeira. Assim que viramos a curva, vemos os nossos amigos: são cerca de dez adultos e mais uns quantos filhos, sobrinhos e amigos que naquela tarde de sábado se encontram em Setúbal, em casa das Irmãs Missionárias da Caridade, para dar um passeio perto do rio. Uns a pé, outros ao colo, outros de cadeira de rodas, porque levam no grupo algumas crianças doentes que vivem em casa das Irmãs.


Logo que os vemos, vem à cabeça uma frase escrita por um dos jovens do grupo de resistência nazi, A Rosa Branca, “uma espécie de esplendor paira sobre a vida dos homens”. É o mesmo que nos acontece ao embater naquela realidade humanamente confusa. O que poderia parecer “normal” - um grupo de amigos a dar um passeio - contém um mistério que vale a pena descobrir.


Desde logo, as crianças. Estão lá os filhos e os sobrinhos das famílias que ali se encontram mensalmente; estão também crianças que vivem em casa das Irmãs. São vidas ainda curtas mas já com histórias de doenças, abandono, dificuldades e tantas outras peripécias que fariam prever apenas um cenário de tristeza. Estranhamente, naqueles rostos feridos encontramos alegria, entusiasmo e animação. Mesmo o G., cujo semblante parece estar carregado de dor, à medida que o passeio avança, vai rasgando o seu sorriso e alargando os seus gestos descoordenados, até aos cânticos finais em que é o mais divertido nas suas danças com a Bebé. Mas lá iremos.

Depois, os adolescentes. Este grupo de amigos tem filhos de várias idades e alguns deles estão ali com os pais e os tios, a passar a primeira tarde das férias de Natal. Mais uma vez, há peças do puzzle que não encaixam… Pelas suas caras, parecem contentes, conhecem-se bem entre si e conhecem bem as crianças das Irmãs. “Mãe, a J. a mim não me morde!”, diz a Madalena com um ar entre o vitorioso e o trocista, a insinuar uma preferência daquelas que nos fazem ficar orgulhosos. A J. está numa cadeira de rodas e comunica através de gritos em que não se distinguem palavras mas é impossível não reparar nos seus olhos que conquistaram a Madalena, a mãe da Madalena e a nós próprias quando nos aproximámos: “J., estas são a Isabel e a Catas e vieram passear connosco hoje!”. Tudo com a simplicidade de um gesto natural.

Os adultos pensaram com cuidado uma bonita tarde de Advento. Além do habitual passeio, tinham preparado cânticos de Natal: folhas impecável e abundantemente impressas com as letras, vozes e instrumentos afinados e, enquanto se ajudava as Irmãs a dar jantares, cantava-se em latim, em inglês, em português… E nós, ali sentadas, continuávamos a ver um esplendor que paira sobre a vida dos homens. À medida que a tarde avançava, reparávamos numa normalidade que tem dentro o divino. É tudo humano: um passeio, umas gargalhadas, umas músicas, dar jantares e um passinho de dança com o G. E tem certamente dentro um pouco do Céu porque a alegria, a paz e o amor que se respiraram naquela tarde foram um prenúncio do Natal, do Deus que Se fez Menino para partilhar connosco a humanidade.

Esta tarde simples, passada na companhia de amigos, recordou-nos as palavras de don Giussani, n’O Sentido da Caritativa: “Quando há algo de belo em nós, sentimo-nos impelidos a comunicá-lo aos outros. Quando vemos outras pessoas que estão pior que nós, sentimo-nos impelidos a ajudá-las em algo nosso”. Foi essa a experiência que fizémos, a de um grupo de amigos definidos pela Beleza que lhes aconteceu e que se sentem impelidos a comunicar a quem mais precisa. Que naquela tarde éramos nós também.