Quis vir Aquele que teria podido contentar-se em nos socorrer

Apontamentos da Síntese conclusiva de Julián Carrón nos Exercícios espirituais para sacerdotes propostos por Comunhão e Libertação. Pacengo del Garda (Verona), 26 de outubro de 2016

Quanto mais o tempo passa, mais me dou conta do quanto é verdade aquilo que don Giussani afirma sobre o alcance das circunstâncias: estas não são algo secundário, mas sim essencial para entendermos – podemos dizer de forma sintética – a natureza do cristianismo (cfr. L. Giussani, O homem e o seu destino, Marietti 1820, Génova 1999, p. 63).

Trata-se de um perceção que encontramos nas pessoas mais conscientes daquilo que está a acontecer. Alguém citava, recentemente, um famoso texto de Joseph Ratzinger, escrito nos anos sessenta, sobre o fenómeno do ateísmo, que ele encarava como um apelo aos cristãos para viverem uma fé mais consciente: «Em relação aos pagãos modernos, o cristão deve saber que a salvação deles se esconde na graça de Deus, da qual depende também, precisamente, a sua salvação; ele deve saber que, no que diz respeito à possível salvação deles, não se pode dispensar da seriedade da sua própria existência de fé, aliás, que a falta de fé deles o deve impelir a uma sua fé mais plena, pois sabe-se envolvido na função de representação de Jesus Cristo, da qual depende a salvação do mundo e não apenas a dos cristãos» (J. Ratzinger, «I nuovi pagani e la Chiesa», in Il nuovo popolo di Dio. Questioni ecclesiologiche, Queriniana, Brescia 1992, p. 362).

Muitos anos depois, Ratzinger descrevia com uma lucidez perentória o resultado da tentativa, que durou séculos, de colocar os valores universais (introduzidos pelo cristianismo) à parte dos conflitos religiosos desencadeados após a Reforma, separando-os do facto histórico que os tinha feito emergir e os tinha tornado evidentes. No aprofundar das contraposições entre as confissões e na subsequente crise da imagem de Deus, foi levada a cabo a tentativa de subtrair os valores essenciais da moral às contradições, procurando para estes uma evidência autónoma, que os tornasse independentes das contendas e incertezas das diversas filosofias e confissões. Na altura, as grandes convicções de fundo criadas pelo cristianismo parecia terem resistido e terem-se mantido na sua inegabilidade. Mas, concluía Ratzinger, «a busca de uma tal certeza tranquilizadora, que pudesse permanecer incontestada para além de todas as diferenças, falhou» (A Europa de Bento na crise das culturas, LEV-Cantagalli, Roma-Siena 2005, pp. 61-62).

Outro observador muito perspicaz como Henry de Lubac escrevia que muitas tentativas da sociedade moderna «conservavam frequentemente (...) muitos valores de origem cristã, mas dado que tinham separado estes valores da sua fonte, não foram capazes de os manter com a sua força nem a sua integridade original. Espírito, razão, liberdade, verdade, fraternidade, justiça: estas grandes coisas sem as quais não existe verdadeira humanidade, que o paganismo antigo tinha vislumbrado e que o cristianismo tinha fundado, depressa se tornam irreais [impressionante: irreais!] no momento em que já não surgem como um irradiar de Deus e a fé no Deus vivo já não as alimenta com a sua linfa». Ou continuam a apresentar-se como um irradiar de Deus, ou tornam-se irreais. Penso que não se pode dizer isto de um modo mais forte: irreais. «Tornam-se então formas vazias e bem depressa se reduzem a um ideal sem vida», porque «sem Deus, a própria verdade é um ídolo, a própria justiça é um ídolo. Ídolos demasiado puros e demasiado pálidos em comparação com os ídolos de carne e de sangue que se erguem; ideais demasiado abstratos em comparação com os grandes mitos coletivos que despertam os instintos mais poderosos» (H. de Lubac, O drama do humanismo ateu, vol. 2, Jaca Book, Milão 1992, p. 59).

Para viver a nossa fé hoje não podemos prescindir desta consciência, ilustrada pelos espíritos mais atentos do nosso tempo.

Na origem da mudança de época que estamos a atravessar, está portanto esta separação das coisas mais verdadeiras – que caraterizaram durante séculos a nossa história – desde a sua origem. Foi esta a tentativa iluminista, como dizíamos logo no primeiro dia, citando G.E. Lessing: «Verdades históricas casuais não podem nunca tornar-se na prova de necessárias verdades racionais» («Sobre o chamado “argumento do espírito e da força”», in A religião da humanidade, Laterza, Roma-Bari 1991, p. 68). Kant seguiu a mesma linha: «Uma fé histórica, simplesmente fundada sobre factos, não pode estender a sua influência para além dos limites de tempo e de lugar aonde podem chegar as notícias que permitem um juízo sobre a sua credibilidade» (La religione entro i limiti della sola ragione, Laterza, Bari 2014, p. 110).

O que têm estas observações a ver com um curso de Exercícios espirituais, com tudo o que aconteceu entre nós nestes dias? Têm a ver, antes de mais, porque podemos ter vivido duma forma dualista este momento – por um lado o saber, as provocações da história, por outro o crer, o anúncio cristão –, colocando a experiência dos Exercícios espirituais como que “ao lado” do desafio indicado por Ratzinger, por de Lubac ou pelo Papa Francisco, quando fala de uma mudança de época, reduzindo, consequentemente, a consciência e o alcance daquilo que vivemos. Procuremos então olhar para o que aconteceu.

Dissemos que sem uma experiência da misericórdia o dualismo entre o saber e o crer não é vencido. Por isso a primeira verificação diz-nos respeito a nós: o que é que aconteceu entre nós, o que é que aconteceu em cada um de nós? Temos de nos dar conta de todos os fatores da experiência que vivemos, caso contrário acabaremos por reduzi-la. Diremos: «Aquilo que ouvimos está bem para nós», mas diante das solicitações de uma certa mentalidade, diante do alcance dos desafios culturais, isto é demasiado frágil; o método é demasiado submisso, é adequado a Exercícios espirituais, mas para enfrentar o mundo é necessário outro método.

Neste sentido, parece-me decisivo aquilo que don Giussani nos está a ajudar a entender, ou seja, que a questão da mudança de época torna necessário que se compreenda a relação entre pertença e expressão cultural. Se não percebemos a fundo este imbróglio, acabaremos por repropor as mesmas soluções, as mesmas tentativas que já se revelaram falíveis no nosso passado. Atenção, isto diz respeito à nossa vida quotidiana, porque na forma como somos padres, nós colocamos diante de todos uma expressão cultural, ou seja, ilustramos uma determinada forma de nos posicionarmos no real. A expressão cultural “exprime” o nosso desejo de sermos padres, isto é, a pertença que vivemos, a conceção da fé que temos. Diante daquilo que acontece, podemos também nós, ainda que repetindo palavras certas, procurar propor às pessoas as «grandes coisas» de que falava de Lubac, mas separadas da sua origem, da sua fonte, do método através do qual o Mistério as comunicou aos homens. Também nós podemos usar um método diferente daquele escolhido pelo Mistério, ou seja, podemos replicar aquele método que fez com que se tornassem «irreais», «formas vazias» aos olhos dos nossos contemporâneos. Eu penso que o desafio que a Igreja tem pela frente não é menos potente do que isto, e esse desafio diz-nos respeito também a nós.

Por isso, a primeira coisa a ter em consideração é que experiência fizemos: a partida é sempre da nossa experiência. O que é que escancarou a nossa razão, fazendo com que a usássemos de forma adequada, o que é que fez emergir toda a nossa capacidade de fraternidade? O que têm a ver todas as observações sobre a época atual com aquilo que vivemos nestes dias? O que têm a ver a nossa liberdade, o nosso desejo de verdade e de justiça, com estes nossos Exercícios? De onde nascem as «grandes coisas» de que falámos, qual é a sua origem? Se não apreendêssemos o nexo, a pertença na qual estivemos submersos nestes dias permaneceria um ato “devoto”, mais ou menos intimista, e não diria respeito à nossa capacidade de saber, ou seja, de conhecer a realidade; seria a vitória em nós da fratura entre o saber e o crer.

A história demonstrou que sem a permanência d’ Aquele que as faz surgir, as coisas mais bonitas, maiores, mais verdadeiras, aquelas que mais nos fascinam, se tornam irreais, desabam na sua evidência: já não as vemos, já não as tocamos, parece que já não existem. A este propósito, o que nos diz a frase de São Bernardo citada pelo padre Lepori durante estes Exercícios? «“Quis vir Aquele que podia contentar-se em nos socorrer”. (...) Sim, Deus podia ter-se contentado em socorrer a nossa miséria, a nossa necessidade. Teria podido salvar toda a humanidade com um único pensamento, com uma única palavra. Tal como no início disse “Faça-se luz” e a luz apareceu, teria podido dizer “Que se dê a Salvação”, e todos seríamos salvos. Não era necessário que entrasse no tempo, na história que Ele mesmo criou, que o Criador entrasse na criação, que a acompanhasse, que o Verbo que podia realizar tudo com uma só palavra se fizesse carne, homem, vida de um homem, não só por trinta e três anos, mas por todo o tempo da Igreja, por todo o tempo do desenrolar eclesial, eucarístico, apostólico, da sua Presença. Mas assim o quis, fez isso. Fez-se “Facto”; veio, aconteceu como “Acontecimento”» (M.G. Lepori, «Riconoscere Cristo, misericordia del Padre», o volume está em vias de ser publicado pela Itaca).

«Quis vir Aquele que podia contentar-se em nos socorrer» (São Bernardo de Claraval, In vigilia Nativitatis Domini, Sermão III,1, PL 183). Com esta frase, São Bernardo está a dizer-nos o essencial do método de Deus, todo o seu alcance. Não a reduzimos a uma frase piedosa, devota, à qual podemos talvez aderir cordialmente – ninguém duvida disso –, mas sem nos deixarmos desafiar até ao fundo. Dom Giussani falava, a propósito disto, de «coincidência entre conteúdo e método típica da revelação cristã» (L. Giussani, «Il metodo di una Presenza», Tracce, n. 1/2003, p. 108).

A circunstância histórica que estamos a viver ajuda-nos a captar todo o alcance da observação de São Bernardo. Hoje percebemos com clareza até que ponto, ao contrário do que pensava Lessing, era necessário um facto histórico para nos fazer descobrir necessárias verdades racionais. Por que veio Aquele que poderia ter-se contentado em nos ajudar sem entrar no tempo? Veio porque, devido à nossa fraqueza mortal, a nossa humanidade não consegue manter-se à altura daquilo para que é feita: a nossa razão ofusca-se, a nossa liberdade encolhe, a nossa afeição bloqueia-se. Sem a presença d’Aquele que as faz resplandecer, as «grandes coisas sem as quais não existe verdadeira humanidade» (espírito, razão, liberdade, verdade, fraternidade, justiça) tornam-se irreais: é Cristo que nos faz descobrir o que é a razão, porque a escancara com a Sua presença; que nos faz descobrir o que é a liberdade, porque a realiza enchendo-nos da Sua atração; que nos faz descobrir o que é a comunhão, a fraternidade, porque nos torna numa só coisa n’Ele. Por isso, a única possibilidade de estas «grandes coisas» se tornarem acessíveis ao homem é que sejam, como nos recorda de Lubac, «o irradiar de Deus» através da humanidade de Cristo. Por isso enviou o seu Filho: querendo ajudar-nos verdadeiramente, Deus não se contentou em o fazer de outra maneira, quis tornar-se acontecimento na vida do homem.

O Senhor faz-nos descobrir tudo isto no seio de uma experiência. Por isso quis vir e é isso que nos deixa estupefactos, como dizia o padre Lepori: «É com surpresa, é com espanto que São Bernardo exclama, e certamente repete a si mesmo continuamente, “Venire voluit, qui potuit subvenire”. Não está a entender alguma coisa, está a olhar para um facto, um acontecimento inacreditável. Está a admirar a “mirabile misericordia”, enche-se de espanto diante da misericórdia de Deus que se manifesta em Cristo». A fé é este reconhecimento cheio de espanto, a abertura a «deixar Cristo entrar em nossa casa, na nossa vida, na vida dos nossos entes queridos, na vida do mundo, para nos salvar. (...) A fé começa quando nos rendemos a este espanto, e fazemos como as crianças que, quando estão diante da beleza, escancaram os olhos, a boca, o nariz, abrem os braços, estendem as mãos, numa abertura instintiva, numa captação do que, de quem nos surpreende, para nos deixarmos preencher, para deixarmos vir a nós a beleza boa que nos surpreende» (M.G. Lepori).

A que somos, então, convidados? A deixar que nos invada – sempre e antes de qualquer outra coisa – o Seu olhar que nos chama pelo nome. Daqui nascia em Pedro o reconhecimento d’Aquele que o tinha reconhecido primeiro, que reconhecia Pedro e que nos reconhece também a nós. «Sobre o reconhecimento de Cristo (...), o ponto de referência inesgotável é a experiência de Pedro, tantas vezes retomada e aprofundada no nosso caminho. Também ele, sobretudo ele, teve que fazer uma experiência fundamental – fundamental para ele e, portanto, para toda a Igreja – de reconhecer Aquele que o reconhecia. Poucos santos, poucos discípulos, tiveram tantas provas de como Jesus nos conhece “primeiro” dos que as que teve Pedro» (M.G. Lepori).

Sem mergulharmos nesta experiência, tudo se torna abstrato; ou melhor, irreal. Então, em relação ao que foi dito sobre a época que vivemos, a questão é se nós, que experimentámos este olhar – quem é que nunca experimentou pelo menos uma migalha deste olhar? –, submetemos a razão à experiência, dando-nos conta de que não podemos comunicá-lo aos outros de uma maneira diferente da que nos aconteceu a nós: através de um testemunho, em que se torna presente para nós o irradiar de Deus. Só podemos colaborar com Cristo deixando-nos arrastar por Ele. O seguimento é apenas um deixar-se arrastar, e por isso a alternativa a isso é a dialética: ou João ou Judas, ou seja, «duas maneiras de viver o seguimento de Cristo, o discipulado de Cristo. João vive-os segundo Cristo, correspondendo até ao fundo ao acontecimento encontrado; Judas segundo uma conceção própria do acontecimento, segundo uma interpretação própria de Cristo» (M.G. Lepori).

O que está aqui em jogo, amigos, é precisamente a fé: não as consequências que podemos nós extrair, mas a origem. Por isso, colocando a questão da relação entre a pertença e a expressão cultural, don Giussani responde-lhes com o «sim» de Pedro, desafiando-nos radicalmente: «O capítulo vinte e um do Evangelho de João é a ilustração fascinante do aparecimento histórico da ética nova. A história particular que ali é documentada é a pedra angular da conceção cristã do homem, da sua moralidade, na relação com Deus, com a vida, com o mundo» (L. Giussani-S. Alberto-J. Prades, Generare tracce nella storia del mondo, Rizzoli, Milão 1998, p. 82). Temos que captar o significado decisivo desta afirmação, caso contrário o nosso modo de viver a fé será dualista, quer queiramos quer não; ainda que falemos continuamente do «sim» de Pedro, comunicaremos a moral e a cultura como se estas nascessem de uma outra fonte, e não da imersão no acontecimento de uma história particular.

O verdadeiro desafio que temos pela frente é este: tomar consciência de que não podemos prescindir de uma «história particular» – reconhecida como método – para viver e transmitir a conceção cristã, para viver e transmitir a moral, a cultura, porque sem Presença – diz Giussani falando do «sim» de Pedro –, sem adesão a uma Presença não existe moral, os valores não ganham raízes em nós, não entram nas nossas entranhas, e mais cedo ou mais tarde, tornam-se «irreais». Sem o encontro com Cristo, que me escancara constantemente os olhos, eu olho como toda a gente, não se desfazem os meus preconceitos nem muda a minha mentalidade, fica igual à de toda a gente. Defendendo os valores, de que falava de Lubac, mas separados da sua origem histórica, também em nós estes se podem tornar irreais, «tornam-se então formas vazias e bem depressa se reduzem a um ideal sem vida […]. Ídolos demasiado puros e demasiado pálidos em comparação com os ídolos de carne e de sangue que se erguem; ideais demasiado abstratos em comparação com os grandes mitos coletivos que despertam os instintos mais poderosos». Sem a presença de Cristo aqui e agora – verificámo-lo também na experiência destes dias –, nem a antropologia cristã, nem a moral cristã ganharam raízes em nós. Por isso é necessário um seio, é necessário um lugar – a Igreja, a nossa companhia, uma história particular – no qual a Sua presença contemporânea se torne evidente, experimentável, e plasme a nossa razão, atraia a nossa liberdade, eduque o nosso olhar.

A verdadeira decisão a tomar, então, é se nós permitimos ou não permitimos a Sua iniciativa, se seguimos ou não seguimos. O que é que nos foi proposto nestes dias pelo padre Lepori ? «O seguimento é precisamente um deixar-se arrastar pela vinda de Cristo ao mundo. Alguém que se espanta porque Deus quis vir quando poderia ter-se contentado em socorrer-nos, segue. O que pode fazer, além de seguir? Além de seguir esta Presença na sua contínua, gratuita e incondicional vinda ao mundo, vinda para nos salvar e não apenas para nos ajudar?». Neste ponto, é introduzido o tema da autoridade. Quem é a autoridade? A autoridade é Cristo.

A autoridade é o método com o qual Cristo faz as coisas. A autoridade é Cristo que introduziu a conceção cristã de uma determinada maneira, através de um determinado método: tornando-se carne. «Quis vir Aquele que podia contentar-se em nos socorrer». Que alcance têm estas palavras! Mas quem é que capta estas coisas? Quem é que capta o alcance do «sim» de Pedro e o facto de que uma história particular é a pedra angular da conceção cristã?

Seguir a autoridade é obedecer ao método usado por Deus, o mesmo método usado e proposto pelo carisma que nos juntou. Não pensem que don Giussani é um ingénuo quando nos fala do «sim» de Pedro, porque ele está precisamente a dialogar com a cultura moderna. Vamos ouvir o que ele diz: «A cultura de hoje considera impossível conhecer, mudar-se a si mesmo e à realidade “apenas” seguindo uma pessoa [ou seja, considera impossível o cristianismo]. A pessoa, na nossa época, não é contemplada como instrumento de conhecimento e de mudança, sendo entendidos, de forma reduzida, o primeiro [o conhecimento] como reflexão analítica e teórica, e a segunda [a mudança] como práxis e aplicação de regras» (L. Giussani, «Da fé o método», Tracce, n. 1/2009, p. III). Esta era a posição iluminista e isto é o que está em jogo hoje, pois – como vimos – as verdades universais que se queriam defender de forma abstrata tornaram-se irreais. Aquela tentativa falhou, precisamente porque a pessoa já não era contemplada como instrumento de conhecimento. Mas também hoje a razão é concebida, à maneira iluminista, apenas «como reflexão analítica e teórica», pelo que nós podemos conhecer sem necessidade de seguir ninguém, sem o encontro vivo e decisivo com um outro: basta uma «reflexão analítica e teórica»; e juntamente com isto, para mudar bastam regras a aplicar, sendo a mudança entendida como práxis e como aplicação de regras. Esta posição pode insinuar-se também num contexto cristão. Como que dizendo: «As regras são-nos dadas, a nós só nos resta aplicá-las e fazê-las respeitar pelos outros. Não é preciso mais nada!». Mas é preocupante quando se quer promover isto não com outras palavras, mas com as palavras cristãs: com as mesmas idênticas palavras, com os mesmos ingredientes, obtém-se assim um caldo completamente diferente.

De onde parte don Giussani para responder ao problema da razão, do conhecimento e da moral? «Pelo contrário, João e André, os primeiros dois que embateram em Jesus, seguindo precisamente aquela pessoa excecional, aprenderam a conhecer de forma diferente e a mudarem-se a si mesmos e à realidade». Não obtém a resposta num qualquer dicionário de filosofia ou de moral, de um qualquer texto arcano: «Pelo contrário, João e André...», ele procura a resposta na experiência dos primeiros que O seguiram, tal como é descrita pelo Evangelho, não reduzindo aquela experiência a intimismo. «João e André» são a pedra angular do método de Deus, indicam a modalidade através da qual nós próprios podemos conhecer, exatamente como lhes aconteceu a eles. «Pelo contrário, João e André (...), seguindo precisamente aquela pessoa excecional, aprenderam a conhecer de forma diferente e a mudarem-se a si mesmos e à realidade. Desde o instante daquele primeiro encontro, o método começou desenrolar-se no tempo» (ibidem, pp. III, V).

Don Giussani insiste: «A nossa companhia é definida por um método. Pode afirmar-se que a “genialidade” do nosso movimento está toda no seu método [não no método entendido como um conjunto de instruções e de fórmulas para repetir, mas como seguimento da modalidade com que Ele se comunica desde o primeiro encontro]. Por isso é acima de tudo uma “genialidade” do tipo educativo, sendo o método a estrada através da qual um homem [um homem!] é levado a ter consciência da experiência que lhe é proposta. É precisamente salvaguardando a autenticidade do método que o conteúdo da nossa experiência pode ser transmitido». Aqui vemos como don Giussani enfrenta e supera a posição de Lessing, emblemática da modernidade, isto é, a fratura saber-crer, reafirmando o método de Deus: «É (...) salvaguardando a autenticidade do método [usado por Deus] que o conteúdo [a verdade] da nossa experiência pode ser transmitido». Não existe outro caminho. E nós temos de decidir se o seguimos ou não: isto é decisivo para nós, para a Igreja e para o mundo. «O método tem origem na fé, que é o reconhecimento na própria vida de uma presença excecional que tem a ver com o destino. A fé [com efeito] consegue revestir todo o horizonte da vida através da relação com uma presença que corresponde ao coração» (ibidem, p. II). É este o alcance epocal da frase de São Bernardo. «Se não nos abrirmos a esta experiência, falar de misericórdia, (...) perdoar os inimigos, dar a vida pelos outros, tudo se torna abstrato, tudo resvala num moralismo e numa ideologia» (M.G. Lepori).

A verdadeira decisão, portanto, é se nós seguimos este método, submetendo-nos à experiência, como fizeram João e André: seguiram-nO porque se renderam à experiência que faziam. Depois de O terem encontrado, não precisaram de ir procurar noutro sítio a cultura e a moral, não tiveram necessidade de obter fora da sua experiência os critérios para ajuizar e enfrentar as provocações do real. Em suma, não foi necessário separarem-se da relação com Ele, da Sua presença histórica, para conhecer a verdade e para serem morais. Estava tudo naquela relação: os discípulos não separaram a experiência vivida com Ele do juízo, não separaram a história particular, que era o encontro com Ele, do surgimento da verdade, porque a experiência traz dentro de si o juízo, caso contrário não é experiência: seria o puro «experimentar» não ajuizado, inútil para o conhecimento.

A experiência «traz consigo as suas razões», dizia Giussani (Vivendo nella carne, Bur, Milão 1998, p. 211). E «aquilo que desafia a sociedade (...) não pode ser senão uma experiência que veicule, que traga no seu frontespício, as suas razões» (L. Giussani, Da utopia à presença. 1975-1978, Bur, Milão 2006, p. 295). Mas é precisamente isto que tem dificuldade em «entrar» em nós, tanto assim que vemos aparecer alguns problemas do passado. Os outros podiam estar conscientes disso ou não, mas para don Giussani era bem claro, desde meados dos anos sessenta, que no seio da mesma pertença podem florescer dois modos de viver a fé, que se revelam numa diferente expressão cultural: «Aqueles, que depois iriam deixar a GS, colocavam a tónica numa conceção segundo a qual o cristianismo era, na prática, entendido como uma forma de envolvimento moral e social. Fazendo isto, eles perdiam de vista a própria natureza específica do facto cristão, e portanto acabavam inevitavelmente por colocar a sua esperança na ação e na organização do homem, e não no gesto gratuito com que Deus escolheu entrar na história» (L. Giussani, O movimento de Comunhão e Libertação 1954-1986. Conversas com Robi Ronza, Bur, Milão 2014, p. 62).

Em cada época volta a colocar-se o mesmo drama, desde o início até agora. Não é diferente. «Pelo contrário, João e André...»: esta expressão de Giussani irá acompanhar-nos sempre. «Pelo contrário, João e André, os primeiros dois que embateram em Jesus, precisamente seguindo aquela pessoa excecional aprenderam a conhecer de forma diferente e a mudar-se a si mesmos e à realidade»! Esta é a graça que nos foi dada: uma experiência que nos permite captar todo o alcance do método de Deus, a sua utilidade para superar a ratoeira moderna que gerou o clima em que vivemos, para o qual as coisas mais sacrossantas se tornaram irreais. Uma experiência que nos impede de nos iludirmos de que podemos resolver esta falta de realidade usando o mesmo método que gerou o problema, que levou as «grandes coisas» trazidas por Cristo a tornarem-se irreais.

Ajudemo-nos a compreender esta coisas, para não nos tornarmos, por nosso turno, parte do problema; não por maldade – era o que nos faltava! –, mas porque não nos damos conta daquilo que está em jogo. Imaginem que responsabilidade temos na tarefa a que fomos chamados com o nosso ministério! Podemos vivê-lo de forma diferente – sem que nada tenha de mudar em termos de circunstâncias e de esforços –, simplesmente enfrentando as incumbências quotidianas com uma novidade dentro, ou seja, tendo como conteúdo da nossa consciência a Sua presença presente, como fez Jesus: «O homem Jesus de Nazaré – revestido do mistério do Verbo e por isso elevado à própria natureza de Deus (mas a sua aparência era absolutamente igual à de todos os homens) –, este homem, não o viam fazer um único gesto sem que a sua forma demonstrasse a consciência do Pai» (L. Giussani, «Um homem novo», Tracce, n.3/1999, pp. VII, IX). A própria forma do Seu testemunho comprovava a Sua relação constitutiva com o Pai. «Esta revelação do mistério do Verbo, que nos revela o mistério do homem, só vem de Jesus enquanto ele está “no seio do Pai”», recordava o padre Lepori.

Só revivendo em nós esta identificação com o mistério de Cristo presente é que poderemos responder à necessidade dos nossos irmãos homens: «O testemunho, a missão, é um amor ao caminho do homem, à unidade do rebanho de Deus, ao crescimento dos nossos irmãos e irmãs, da humanidade inteira, que só é possível permanecendo presos com toda a nossa sede de amor à sede de amor de Cristo, seguindo a Presença que nos guarda, nos fala e nos ama» (M.G. Lepori).