Diante de uma mudança de época, de onde recomeçar?

Tradução portuguesa do artigo de Julián Carrón, publicado no jornal ABC a 24 de outubro de 2016

Há pouco mais de dez anos que vivo fora da Espanha. Não é por isso, contudo, que deixo de acompanhar com interesse tudo o que diz respeito ao nosso País, mais precisamente a situação de paralisia em que, desde há quase um ano, vivem as nossas instituições políticas. Por vezes, esta distância, juntamente com as muitas viagens que sou chamado a fazer por todo o mundo, permite-me ler as dificuldades espanholas no contexto de uma crise mais aguda e geral que ataca todo o Ocidente.

O Papa Francisco, aludindo a esta crise, disse que “hoje vivemos não uma época de mudanças, mas uma mudança de época” (Florença, 10 de novembro de 2015). Em que se diferencia a nossa época das outras, que experimentaram também elas, no entanto, grandes mudanças? Fundamentalmente, em que caíram as grandes evidências que constituíam a base na qual se apoiava a nossa convivência.

Para compreender a amplitude da mudança que estamos a viver, basta considerar como a Europa, depois da queda do Império Romano e apesar de atravessar grandes crises, se construiu em torno de algumas grandes palavras como pessoa, trabalho, matéria, progresso, liberdade. Estas palavras alcançaram a sua plena e autêntica profundidade por meio do cristianismo, adquirindo um valor que antes não tinham, facto que determinou um profundo processo de “humanização” da Europa e da sua cultura.

As guerras da religião que se seguiram à reforma protestante mostraram que a fé não era um factor de unidade na Europa. Por isso, na consciência europeia, difundiu-se a tentativa de salvar aquele património fundamental adquirido independentemente da experiência que permitira o seu desenvolvimento, a experiência cristã. Como escreveu há alguns anos o então Cardeal Ratzinger, “na época do iluminismo […] tentaram-se manter os valores essenciais da moral fora das contradições, e encontrar para eles uma evidência que os tornasse independentes das múltiplas divisões e incertezas das várias filosofias e confissões. Pretendeu-se assim assegurar as bases da convivência” (J. Ratzinger, A Europa de Bento na Crise de Culturas, Lisboa, Alêtheia, 2005, p. 39). A tentativa iluminista de manter vivos os “grandes valores”, marginalizando-os da sua origem cristã resistiu durante pouco mais de duzentos anos. Hoje assistimos à sua queda, que assinala a excepcionalidade da nossa época.

Não é por acaso, assim, que a nossa convivência humana se esteja a deteriorar. Não só em Espanha, onde é evidente a incapacidade de chegar a acordos que transcendam as ideologias. Pensemos também no incremento na Europa e nos Estados Unidos de uma política de muros como forma de se defender dos migrantes, ou até mesmo dos vizinhos, em tempos amigos (como se vê com o Brexit). Ou pensemos na insegurança que gera o terrorismo internacional.

O famoso sociólogo Zygmunt Bauman, lúcido observador da nossa época, guarda-se de fazer uma análise superficial desta situação: “As raízes da insegurança são muito profundas. Estão enterradas na nossa maneira de viver, estão marcadas pelo enfraquecimento dos laços [...], pelo esmigalhar das comunidades, pela substituição da solidariedade humana pela competição”. Diante de tudo isto, diz Bauman, as barreiras não servem de nada: “Uma vez que novos muros tenham sido erguidos e mais forças armadas forem convocadas nos aeroportos e nos espaços públicos; uma vez que a quem pede asilo por guerras e destruições essas medidas forem recusadas e mais imigrantes forem repatriados, tornar-se-á evidente como tudo isto é irrelevante para resolver as verdadeiras causas da incerteza […] os demónios que nos perseguem não se evaporarão nem desaparecerão” (“Alle radici dell’insicurezza”, Corriere della Sera, 26 de julho de 2016, p. 7).

De onde repartir para uma reconstrução? “Uma crise – afirma Hanna Arendt – obriga-nos a voltar às perguntas; exige de nós respostas novas ou velhas, desde que procedam de um exame directo; e apenas se transforma numa catástrofe quando tentamos fazer-lhe frente com juízos preconcebidos [de qualquer tipo], ou seja, preconceitos” (H. Arendt, Tra Passato e Futuro, Milão, Garzanti, 1991, p. 229).

Uma crise destas dimensões é um desafio para todos, a nível pessoal e institucional, independentemente das ideologias. Também para os cristãos. Se nos quisermos transformar num factor de construção e não numa parte do problema, nós, cristãos, somos os primeiros a dever compreender a fundo esta mudança de época, para evitar sucumbir à tentação de defender ou reforçar as grandes verdades do Ocidente (de raiz cristã) desligadas do acontecimento que as originou. Não há outro acesso à verdade senão a liberdade. É tarefa da Igreja voltar a oferecer à liberdade dos homens e mulheres de hoje em dia toda a beleza desarmada do cristianismo. Mas nós, cristãos, acreditamos ainda na capacidade da fé de exercer uma atractividade sobre aqueles que encontramos?