Quentin Massys, A Visão do profeta Ezequiel (1501). Coleção particular.

O POVO E O ESPOSO

O trecho de Ezequiel meditado pelo padre Julián Carrón durante os Exercícios da Fraternidade deste ano. A solicitude a propósito de uma predileção imerecida e a infidelidade de Jerusalém, diante da qual Deus decide fazer “uma coisa nova”
Ignacio Carbajosa

Uma das coisas mais surpreendentes da Bíblia são as imagens que ela utiliza para exprimir a relação entre Deus e o seu povo. Para falar da aliança que o Senhor estabeleceu com Israel no Sinai, a Escritura poderia ter usado a imagem dos pactos de vassalagem entre um rei e os seus súbditos, ou entre um Império e as nações a ele submetidas. Trata-se de imagens que encontramos na literatura religiosa de outras culturas, e que, aliás, não faltam na própria Bíblia. Pareceria esta a imagem mais adequada para impor a distância entre um deus e o seu povo. Pelo contrário a literatura profética de Israel mostra uma certa audácia ao descrever a relação entre o Senhor e o seu povo como uma relação nupcial, sem excluir nenhuma das suas características.

O primeiro a utilizar essa imagem é Oseias, cuja própria vida é já um sinal para Israel: deve desposar uma prostituta e gerar filhos de prostituição. Assim se lamenta Deus nos confrontos de Israel: “Acusai a vossa mãe, acusai-a. Porque ela não é mais a minha mulher, e eu não sou mais o seu marido! Arranque do rosto os sinais das suas prostituições e do seu peito os sinais do seu adultério” (Os 2,4).

Jeremias, por seu lado, remonta ao momento do noivado no deserto, quando o Senhor liberta Israel da escravidão no Egipto, antes do casamento no Sinai: “Lembro-me de ti, do afecto da tua juventude, do amor no tempo do teu noivado, quando me seguias no deserto, em terra não semeada” (Jr 2,2). Depois do casamento, Deus interroga-se, magoado como um esposo abandonado: “Que injustiça encontraram em mim os vossos pais para se afastarem de mim e correrem atrás do nada, tornando-se eles próprios nada?” (Jr 2,5).

Também Isaías utilizará essa imagem, neste caso para falar da restauração de Jerusalém depois do exílio: “Ninguém te chamará mais Abandonada, nem a tua terra será mais chamada Devastada (...); como se regozija o esposo com a esposa, assim o teu Deus regozijar-se-á contigo” (Is 62,4-5).

A infidelidade. Mas o profeta que vai mais além, recorrendo às imagens mais audaciosas e provocantes é, sem dúvida alguma, Ezequiel. Ainda muito jovem, o profeta tem de deixar Jerusalém e dirigir-se para a Babilónia com a primeira deportação ordenada por Nabucodonosor. Compreende na própria pele o porquê daquele drama: a infidelidade da cidade. Mas Jerusalém não compreende: continua percorrendo o seu caminho, buscando outros deuses e outras alianças políticas, sem pôr a sua esperança no Senhor. Passarão dez anos antes que Nabucodonosor retorne, destrua a cidade e o templo, ponha fim à monarquia e mande para o exílio o resto da população. É neste período intermédio que Ezequiel recebe o seu chamamento e o mandato para pregar, a partir de longe, contra a cidade que se ilude.

Se Oseias partia do matrimónio consumado, Jeremias do noivado e Isaías parecia prometer um matrimónio à cidade que enviuvara, Ezequiel parte do nascimento da rapariguinha que em seguida o Senhor desposará. O seu oráculo é endereçado à cidade de Jerusalém, verdadeiro coração do povo do reino de Judá, única coisa que resta depois das múltiplas infidelidades. Compreende-se então porque fala de uma origem pagã, algo que não podia dizer-se do povo santo nascido das entranhas de Abraão. “Tu és, por origem e nascimento, da terra dos Cananeus; o teu pai era um Amorreu e a tua mãe uma Hitita” (Ez 16,3): Jerusalém era a cidade dos Jebuseus, conquistada só tarde por David.

“Tu tornaste-te minha”. Percorrendo de novo todos os grandes lamentos de Deus pela infidelidade de Israel, sua esposa, vêm à luz os benefícios que o Senhor concedeu ao seu povo. Deste modo é bloqueada desde o início qualquer tentativa de réplica: a infidelidade não tem desculpas, é sinal de ingratidão e irrazoabilidade. No caso de Ezequiel 16, começa-se por descrever o nascimento da cidade-menina, que sendo pagã não goza dos benefícios da aliança. Pelo contrário, é exposta no campo sem sequer lhe ser cortado o cordão umbilical, como de facto sucedia naquele mundo quando o recém-nascido não era do sexo masculino. Ninguém tem compaixão por ela. E aqui aparece o primeiro benefício de que goza cada ser, ainda que esteja excluído da aliança: “Passei junto de ti e vi-te enquanto te debatias no sangue e disse-te: Vive no teu sangue e cresce como a erva do campo” (16,6-7). A vida é um dom de Deus. Aquela menina sobrevive pela vontade de Deus, mesmo sendo como a erva do campo, sem o cuidado da aliança. De fato, a cidade dos Jebuseus escapou ao extermínio, não foi conquistada em primeira instância pelas tribos de Israel: sobreviveu como uma flor espontânea.

Nesse contexto “selvagem” a rapariguinha começa a crescer e torna-se mulher. É então que chega o momento do amor: “Passei junto de ti e vi-te. A tua idade era a idade do amor. Estendi a orla do meu manto sobre ti e cobri a tua nudez. Fiz-te um juramento e estabeleci uma aliança contigo - oráculo do Senhor Deus - e tornaste-te minha” (16,8). A iniciativa gratuita do Senhor inclina-se sobre aquela jovem para desposá-la, acolhendo-a na aliança. É exactamente isso que acontece com a conquista de Jerusalém pela mão do rei David, que mais tarde fará dela a capital do seu reino. Os efeitos desta preferência imerecida não se fazem esperar: a mulher é lavada (estava ainda ensanguentada) e purificada (pertencia aos povos pagãos), ungida com óleo (como uma rainha). Trata-se de gestos de cuidado próprios do contexto da aliança, mais uma vez descrita em termos matrimoniais.

Começa então o rito da ornamentação da esposa com vestes e jóias, expressão do afecto que o Senhor sente por ela. Segue-se a descrição do alimento que saboreia, que não é mais aquele de um animal selvagem. A descrição é verdadeiramente minuciosa, e nela domina a iniciativa do Senhor, que cuida de cada detalhe mínimo por amor da sua esposa. O resultado torna-se conhecido de todos os povos: “Tornaste-te cada vez mais bela e chegaste a ser rainha. A tua fama espalhou-se entre as nações. A tua beleza era perfeita” (16,13-14). É o momento do máximo esplendor de Jerusalém, no tempo do rei Salomão, quando a rainha de Sabá se apresentou para contemplar a beleza do seu templo, dos seus palácios e dos seus muros. A minuciosa arquitectura da narrativa torna evidente a origem de toda a beleza de Jerusalém: “Pela glória que eu pusera em ti” (16,14, na versão CEI 1974 – na versão CEI 2008 não tem esta nuance).

E eis a traição de que o Senhor se lamenta amargamente. No versículo 15 muda o sujeito. Das acções de Deus passa-se às acções da mulher-Jerusalém: “Tu porém, enfatuada com a tua beleza e gozando da tua fama, prostituíste-te, concedendo os teus favores a todos os que passavam” (16,15). A beleza doada não foi a ocasião para se voltar para o seu amado cheia de gratidão: misteriosamente, Jerusalém não reconhece, e vira-se para os seus amantes (os ídolos e as nações com as quais procura alianças políticas). Todas as vestes e jóias que recebeu do Senhor, que são sinal do afecto apaixonado do seu esposo, emprega-as então para adornar os altares... para pedir afecto aos ídolos que não podem dar-lhe afecto. Os alimentos, que expressam um cuidado extrafino da parte do Senhor, põe-nos diante de imagens inanimadas como oferenda de suave perfume... procurando uma companhia que os ídolos não podem dar-lhe.

É difícil não nos reconhecermos descritos nesta passagem. Assim fizeram o papa Francisco ou Don Giussani. Como Jerusalém, também nós temos necessidade de um coração novo no qual o afecto habite como um juízo, como uma simpatia radical. Mas é aqui que o Senhor, movido por piedade do seu povo, decidiu fazer uma coisa nova. Pedro, o traidor, diante de Jesus, é a primeira testemunha dessa nova criação.