A força de Valjean

É um dos livros propostos pelo movimento este ano.
Mas o que é que há de tão poderoso nos miseráveis?
Eis uma tentativa de resposta que navega entre as páginas escritas, o cinema e o musical.
Davide e Paolo Prosperi

Quem é Jean Valjean? Quando o encontramos pela primeira vez, vemo-lo atarefado em arrastar sozinho a enorme haste da bandeira de França, sob as ordens do carcereiro Javert. Os dois entreolham-se: nos olhos de Javert, adivinhamos uma complacência trocista. Nos olhos do encarcerado, o fogo do ódio. Eis portanto Jean Valjean: um presidiário com uma força hercúlea. De onde lhe vem esta força?
Valjean roubou, é verdade, mas na realidade não se sente culpado. Dezanove anos passados na prisão por ter roubado um pedaço de pão - e nem sequer era para si. Não, Valjean não se sente em dívida. É antes a França que é culpada e está em dívida para com ele.
Não é, portanto, apenas um dom da natureza, a força extraordinária de Valjean: ela materializa o ímpeto da sua cólera, cólera por aqueles dezanove anos roubados e que ninguém poderá nunca restituir-lhe. E trata-se de uma cólera tão ardente e tão potencialmente devastadora, quão grande é a sua alma. Tudo em Valjean, com efeito, é grande, mesmo que ninguém, muito menos ele, o saiba ainda.

Estes poucos indícios já são suficientes para nos fazer abrir o horizonte. Valjean é ele mesmo e, ao mesmo tempo, mais do que ele mesmo: ele encarna o espírito do seu tempo, na sua força arde a raiva comprimida de toda uma geração. Como os Marius, os Enjoras, os Courfeyrac que iremos encontrar nas barricadas de Paris, prontos a derramar o seu sangue ao grito de «Liberdade, Igualdade, Fraternidade!», também Valjean é um homem ferido pela injustiça do mundo, do Estado, da lei, da sociedade.
Mas na sua vida acontece alguma coisa que lhe abre um caminho diferente, e todavia um caminho que o levará exatamente à meta gritada por estes: «Levantamos a bandeira da liberdade, cada homem será um rei!», cantam os jovens barricados no primeiro dia da revolta na qual quase todos perderão a vida. Na realidade, é em Valjean que se concretiza o sonho. Ele é o homem verdadeiramente libertado, o homem que, de escravo que era, se torna “rei”.

A metamorfose acontece graças a um encontro. Saído da prisão, Jean Valjean vagueia como um proscrito. Ainda que tenha pago, o seu erro é uma marca de fogo, que não pode ser apagada. Delinquente foi, delinquente continua: o seu nome é o 24601, o número de registo.
No seu vaguear, encontra o bispo Myriel que o acolhe em casa. Valjean de noite rouba as pratas e foge, mas é capturado pelos polícias e trazido à presença do bispo. Aqui acontece o impensável. Myriel não só confirma ter-lhe dado as pratas, como o recrimina por se ter esquecido dos bens mais preciosos: dois candelabros de prata, que voltaremos a ver fugazmente no final da história. Valjean, com efeito, não se separará mais deles. Não o fará porque nestes candelabros está guardado o mistério do evento que, de miserável, o transformou num rei.

Para compreender, é preciso reparar na subtileza da correspondência: existe uma secreta semelhança entre a situação de Valjean à saída da prisão e a do bispo depois do roubo. Ambos foram “roubados”. Mas Myriel não se enfurece. Tem, pelo contrário, um gesto que tem o poder de dar um novo significado ao acontecido, embora sem lhe cancelar a injustiça: a Valjean aquilo que este lhe tinha levado ao enganá-lo. Aliás, acrescenta outras coisas. E assim transforma o sinal da culpa de Valjean no sinal de um amor mais poderoso do que a própria culpa. Aqui, é verdadeiramente o próprio Cristo que irrompe ao vivo na existência do ex presidiário. A mesma ‘alquimia’ que Jesus realizou com o Seu sangue, Myriel fá-la com a sua prata. Uma vez que Jesus se entregou à morte em perfeita liberdade, aquele sangue que o brutal golpe de lança faz jorrar do Seu lado rasgado (cfr. Jo 19:34) torna-se ao mesmo tempo dom, sinal da imparável potência do Amor, que vence o pecado no próprio momento em que este é praticado.
A mesma coisa, de alguma maneira, é o que faz Myriel. Ele doa a Valjean toda a prata que este lhe roubou. E assim conquista o seu coração.

Eis o mistério da Misericórdia: o perdão de Cristo não é um benevolente “fechar de olhos”, mas força do amor que liberta o homem do seu mal pagando o seu resgate com o próprio sangue.
Mas há mais. Myriel não se limita a transformar a prata roubada em dom. Acrescenta os candelabros, que só por si valem mais do que tudo o que Valjean tinha levado.
Parece um pormenor, mas não é: Valjean não é simplesmente libertado da sua culpa. Ele recebe como dom de Myriel a descoberta de uma liberdade bem maior do que a de simples absolvição, uma liberdade que é verdadeiramente sem limites. Chama-se gratuidade. Em Myriel, Valjean encontra a verdadeira liberdade, uma liberdade a tal ponto soberana, que consegue transformar a injustiça sofrida num instrumento da sua própria afirmação. As fontes do rancor que o mantinham escravo são assim extintas. Valjean está livre, livre como aquele que pode dar-se sem medida, porque sem medida se reconhece amado.

Percebemos então por que razão os dois candelabros se tornarão para ele no bem mais caro. Estes materializam - por assim dizer - o mais que Valjean recebeu de Myriel: o poder de redamare, para dizer como os medievais, ou seja, de responder ao amor recebido com gratidão. O homem redimido não é simplesmente um homem perdoado. Ele recebe em excesso um poder que não tinha antes, que é o poder de participar na própria gratuidade de Deus: «Onde abundou o pecado, superabundou a graça» (Rm 5:20): é o dom do Espírito. Assim Myriel não se limita a perdoar Valjean. Confia-lhe uma tarefa, uma missão: «Mas lembra-te, meu irmão, vê nisto um projeto maior: deves usar esta preciosa prata para te tornares um homem honesto. Pelo testemunho dos mártires, pela paixão e pelo sangue, Deus içou-te das trevas, salvou a tua alma».
Também nisto Myriel imita Cristo. De facto, Cristo tinha feito o mesmo com Pedro: «Amas-me? Apascenta as minhas ovelhas». O bispo não sente comiseração por Valjean. Não sente comiseração, não o acaricia como se faz com um cavalo aleijado, de quem se tem pena. Não. Ele crê no poder soberano da graça, que eleva o penitente e o torna rei. E por isso aposta nele. Coloca tudo em cima dele, como se nunca tivesse caído. Como se tudo tivesse início hoje, pela primeira vez. E, com efeito, é isto a Misericórdia: «As coisas velhas passaram. E eis que nasceram coisas novas…».
E Valjean corresponderá. Todo o resto do romance, como do filme, mostra num crescendo o fruto da semente lançada pelo bispo no coração de Valjean. Este fruto é uma vida cheia de gratuidade - uma gratuidade que leva Valjean a mover-se de acordo com uma lógica muito diferente daquela do mundo que gira à sua volta e que, no entanto, feitas as contas, comove, não pode deixar de comover. E comove porque corresponde à verdadeira medida para a qual o homem é feito.

Isto não significa que o resto da vida de Valjean seja uma estrada reta. Pelo contrário, a sua liberdade é continuamente posta diante de uma encruzilhada. Um desconhecido é trocado por ele e pode ser condenado em seu lugar. Para Valjean seria a definitiva ‘libertação’ do espetro do cárcere. Mas será que ele pode trair a sua nova ‘liberdade’? Depois de uma noite de tormento, apresenta-se diante do juiz e assume, desta vez livremente, aquele nome e aquele número, que no início tinha rejeitado com raiva: «Eu sou Valjean. Eu sou o 24601!».
Quando vem a saber que o jovem revolucionário Marius ama e é correspondido pela sua Cosette, poderia fugir de Paris, como tinha previsto. Em vez disso arrisca a vida, para salvar a vida do homem que podia levar embora o único afeto que lhe restava.

Por fim, quando o inspetor Javert, seu algoz primeiro e depois seu implacável perseguidor, cai inesperadamente nas suas mãos, Valjean é pela última vez colocado diante da alternativa entre duas liberdades: a do mundo, que calcula, e a da gratuidade, do amor ao Bem até ao sacrifício. E mais uma vez, escolhe a segunda.

Talvez nenhuma cena capte melhor a transformação de Valjean, do que o “resgate” do pobre Fauchelavant, enterrado debaixo de um carro que o vai esmagando. Exposto ao olhar inquiridor de Javert, Valjean sabe que uma intervenção sua poderia alimentar a suspeita que já lampejara na mente do ex algoz: poucos, fora ele, teriam a força para levantar um tal peso e isso não passaria desapercebido a Javert… Mas Valjean não hesite, não avalia. A música que acompanha a cena é, não por acaso, a mesma que no início fazia de fundo à hercúlea exibição de força de Valjean:a força da ira de então, transformou-se na força ainda maior do amor que se dá sem cálculos.

Para concluir, não se pode deixar de tocar num último ponto. Um dos maiores pontos fortes do musical, juntamente com os óbvios limites em relação ao romance, é o facto de conseguir lançar pontes, precisamente através da semelhanaça das melodias, entre cenas distantes, fazendo perceber ao espetador nexos que de outra forma não seriam imediatos. Les Mis, como lhe chamam familiarmente os americanos, é todo um entrelaçar deste tipo de referências. Assim, a ária que mostra o tormento de Javert antes do suicídio é musicalmente quase idêntica ao solo de Valjean, que, tendo ficado sozinho, luta consigo mesmo antes de se render ao amor recebido.
Deste modo compreendemos um outro e decisivo aspeto: o impacto com a misericórdia não anula o drama da liberdade diante de Deus. Pelo contrário, fá-lo explodir em toda a sua radicalidade. No fundo, é exatamente diante da Misericórdia que é posto totalmente a nu o drama do homem: aceitar depender da gratuidade de um outro é, com efeito, menos fácil do que aquilo que parece.

Em L’attrattiva Gesù, Dom Giussani diz que, num certo sentido, o culminar do amar é aceitar ser perdoado. Porquê? Porque é difícil. É difícil porque «é um murro no focinho do nosso orgulho, da nossa presunção. Uma pessoa, com efeito, quer ser amada por aquilo que vale», continua Dom Giussani: «Mas se tu queres ser amado por aquilo que vales, então não amas o outro. Amas-te a ti mesmo».
Não será talvez precisamente isto, reduzido até ao osso, o problema do homem moderno? A recusa da dependência. A diferença entre Valjean e Javert, no fundo, reside toda aqui. Ambos são colocados diante da mesma Gratuidade. Mas um rende-se a ela, com humildade. O outro, pelo contrário, resiste-lhe, indo contra o seu próprio coração, que não pode fazer outra coisa senão prestar homenagem à justiça “maior” do inimigo de sempre. Tendo-o encontrado novamente de noite, enquanto este está a pôr a salvo o jovem Marius, Javert sabe bem o que tem de fazer. No entanto, pela primeira vez, o seu coração hesita: alguma coisa, como uma mão invisível, o bloqueia. Valjean afasta-se com o rapaz às costas, e Javert deixa-o ir. Mas não consegue perdoar-se a si mesmo por o ter feito. Abriu-se uma brecha in the heart of stone. E no entanto, Javert não consegue suportar o desmoronar do seu “mundo”…

My heart is stone and still it trembles
The world I have known is lost in shadow.
Is he from heaven or from hell?
And does he know
That granting me my life today
This man has killed me even so?
I am reaching, but I fall
And the stars are black and cold
As I stare into the void
Of a world that cannot hold
I'll escape now from the world
From the world of Jean Valjean.