A BELEZA DESARMADA 2

Uma época de mudança ou uma mudança de época?
Diálogo sobre o livro "A beleza desarmada" de Julián Carrón
Margarida Pacheco de Amorim

A sala da Câmara de Comércio e Indústria em Lisboa encheu-se, na noite do dia 16 de Setembro, para ouvir o padre Javier Prades, reitor da Universidade de São Dâmaso em Madrid, e Maria Lúcia Amaral, que terminou recentemente o seu mandato como Juíza Conselheira e Vice-Presidente do Tribunal Constitucional português, que nos vieram falar do que lhes suscitou a leitura do livro “A beleza desarmada” do padre Juliàn Carròn, cujo lançamento se deu no Meeting de Lisboa 2016.

Javier Prades , que é também o autor do prefácio ao livro, identificando um crescente mal-estar entre os europeus e procurando a raíz do mesmo falou-nos, com as palavras de Maria Zambrano, de crise na “relação com a realidade”, numa perda de confiança quanto à própria experiência de vida que se reflecte numa ausência de gosto de viver.

Para esta situação contribuiram duas formas de viver o cristianismo, parciais. De um lado, um cristianismo vivido como uma “religião civil”, oferecendo essencialmente valores éticos que poderiam fortalecer uma sociedade cada vez mais vacilante e, de outro lado, um cristianismo vivido como puro anúncio da cruz para a salvação do mundo, que os olhos do mundo não podiam alcançar, pelo que, para o viver, seria necessário retirar-se do envolvimento com o mundo.

A primeira concepção reduziu a fé católica à sua dimensão secular e a segunda concepção privou a fé da sua consistência carnal, reduzindo-a a uma inspiração interior.

Para ultrapassar os limites destas duas concepções redutoras do cristianismo, Javier Prades apontou para a necessidade de um movimento de “personalização da fé” que, partindo do acontecimento de Cristo, permita uma compreensão da fé católica que passa pelo crivo da verificação existencial. O “crédito” que daremos à fé passa pela verificação da sua capacidade de iluminar e realizar as dinâmicas próprias da razão, do afecto e da liberdade, fazendo crescer a certeza existencial que é imprescindível para viver.

Só uma fé assim vivida permite encontrar e dialogar com os outros homens na sociedade plural.

Já em resposta às perguntas que lhe foram dirigidas no final, Javier Prades fez dois apontamentos que nos acompanharão sempre.

Só um pai, referiu, que viva uma fé concreta, personalizada, é verdadeira testemunha e poderá mover a liberdade do filho. Falando da importância decisiva do respeito pela liberdade na educação dos filhos, referiu que se um filho hasteia a bandeira da liberdade e o pai lhe responde hasteando a bandeira da ordem, o filho não o ouvirá. Mas se o filho vir o pai na posse da liberdade que ele tanto quer conquistar, questionar-se-á.

Já quando perguntado àcerca do valor da vida, que será mais perceptível para quem é cristão, respondeu que a todos é possível, pela razão, intuir o valor positivo da vida, sendo contudo certo que por si só tal intuição não se sustenta. Javier Prades referiu que tem vindo a constatar que o traço comum da experiência de todos os que encontram a Igreja é a de que voltam a ter confiança na vida.

Seguiu-se Maria Lúcia Amaral que comentou: “A beleza desarmada” apresenta-se tal como é, sem armas perante o poder. Observou que as referências ao poder são várias no livro, falando-se nele como qualquer coisa de externa a nós próprios, que cresce à medida que nos vamos tornando mais impotentes e que nos manipula quando nos encontra frágeis ou fechados em nós mesmos. Uma vez que chegou “a exercê-lo (numa certa acepção dele)”, Maria Lúcia Amaral dedicou a sua apreciação do livro ao tema do poder e da forma como se organiza.

E isto orientada por outras duas referências que são feitas no livro: uma à crise, que nos obriga a voltar às perguntas (conforme refere Hannah Arendt), e outra à necessidade de olhar para as coisas como elas realmente estão para podermos agir com incidência real.

Na perspectiva de Maria Lúcia Amaral “vivemos um momento histórico apaixonante porque sentimos que com ele alguma coisa, algum ciclo histórico, se fechou” e “ainda não sabemos, no entanto, o que de novo se abriu, ou se algo de verdadeiramente novo já começou”.

O poder do Estado, referiu, tal como o conhecíamos, está em crise. O Estado nasceu com a paz de Vestfália, com a Revolução Francesa, com a Revolução Americana e com outros acontecimentos, visando limitar o exercício do poder político em função de um elenco de liberdades dos seus cidadãos. E o Estado chegou até nós, através de “muitos ventos da história” fazendo coisas que nos eram muito úteis.

A ordem do Estado moderno estava lá, mas este Estado moderno entrou em crise que põe em causa a própria possibilidade de sobrevivência desta ordem.
E essa crise é feita, sobretudo do fenómeno “globalização”, onde a tecnologia, a economia e os fluxos migratórios ocupam um lugar relevante, reduzindo o espaço de decisão interna dos Estados.

Neste contexto, o poder do Estado tem vindo a tornar-se impotente e, ao passo que anteriormente nós o conhecíamos e o disciplinávamos, à medida que esse poder se vai, pela força dos factos, esmorecendo, outros vão, pela força dos mesmos factos crescendo. E nós ainda não os identificámos bem, estes novos poderes, mas cabe-nos perguntar quem são, onde moram, ao que vêm e o que querem de nós.

O encontro terminou com um pequeno convívio no espaço de entrada da Câmara de Comércio onde pudémos todos conversar uns com os outros e trocar impressões sobre o que ouvimos e “levá-lo para casa”.