Eu, Lula e o ideal

O amor pelos pobres. A igreja. Depois o poder, até à crise de hoje. O caso do ex presidente (e da sua herdeira) visto por Cleuza Ramos, que partilhou com ele o princípio do empenho político. Antes de tomar outra estrada...
Alessandra Stoppa

«O problema é ter trocado Cristo pelos pobres. Depois os pobres pelo poder. E por fim, o poder pela corrupção». Di-lo com dor a Cleuza, olhando para a parábola de Luiz Inácio da Silva (para o mundo: Lula), o ex-operário por duas vezes Presidente do Brasil e hoje envolvido numa das investigações judiciais e numa das crises políticas mais graves da história do país. Olhar para a vida de Lula, para Cleuza Ramos, líder da Associação dos trabalhadores Sem Terra de São Paulo, é como olhar para a sua. Pelo menos, até um certo ponto. O mesmo amor pelos pobres. A mesma revolta com a injustiça. A mesma ligação à Igreja. «Em nome de Cristo, fundámos o PT», conta-nos hoje. O partido dos trabalhadores, nascido nos alvores dos anos oitenta, e que esteve no poder nos dois mandatos de Lula e durante toda a era de Dilma Rousseff, que agora se desmorona numa crise politica, económica e social que atingiu todo o povo.
Cleuza olha para os últimos trinta anos, da sua vida e da vida do seu país. Começou desde miúda a trabalhar com os meninos de rua, as crianças da rua, depois foi a política, a luta social e em 1986 o nascimento da associação que hoje é um povo, mais de 100 mil pessoas que se acompanham para ter uma casa, assistência sanitária, a possibilidade de estudar. Em 2008, confiou tudo isto nas mãos do Padre Julián Carrón, depois de ter encontrado o movimento. «Compreendo que todo o caminho que estamos a fazer nestes anos, seguindo o Carrón, é muito verdadeiro», conta: «de ano para ano, eu posso constatar que só Cristo basta. Qualquer outra estrada que faças, qualquer outro caminho que percorras, leva-te àquilo que eu vi acontecer com o Lula». Aquele rapazito que, com doze anos, trabalhava como engraxador e que se mudou do Estado de Pernambuco com a mãe e os sete irmãos para viver nas traseiras de um bar em São Paulo; depois foi operário, sindicalista, líder político, esteve entre os promotores da campanha pelo voto popular directo para o Presidente, e depois foi subindo, até se tornar ele próprio Presidente.
Hoje está envolvido na investigação judiciária Lava Jato sobre a corrupção da política brasileira. Mas isto é só um resultado, o ponto é porque é que o movimento ideal e grande que impulsiona o homem se perde ao longo do caminho, ou cresce.

Tu partilhaste com Lula parte do empenho e da luta social. Como começou o teu envolvimento na política?
Em miúda não sabia sequer o que era a política, porque em minha casa era proibido falar disso. O meus avós e bisavós tinham sido militantes políticos e tinham sido assassinados, nos anos em que ou se era a favor o poder ou se era morto. Portanto, na família era proibido qualquer diálogo sobre política. Eu casei-me com dezasseis anos: o meu marido dava-me o número do candidato e eu ia votar. Mas não se falava, claro, das razões do voto…

Depois o que é que aconteceu?
Eu e o meu marido começámos a frequentar a Igreja. Eu nasci “na” Igreja, sempre fui católica, mas a certa altura começámos a participar num grupo de casais católicos que tratavam dos pobres. Aí conheci o Lula. Foi em 1978-79. Assegurava as aulas, era muito persuasivo, falava dos direitos dos mais pobres e, sempre, fazia a ligação entre os pobres e Cristo. Isso impressionou-me muito.

Então veio a política...
Segui o Lula passo a passo. Naqueles anos, ele fazia parte do sindicato metalúrgico: era carismático, depressa começou a ser muito seguido, e foi sempre acompanhado por Padres e Bispos. Em 1980 começámos a pensar na formação de um partido político. Eu, que precisamente devido à história familiar, tinha horror da política, envolvi-me porque não concebia como um partido como os outros: era o partido dos trabalhadores. Em nome de Cristo, fundámo-lo. Hostilizados pelos ricos, porque diziam que era um partido comunista que queria tirar-lhes a eles para dar aos pobres. Eu participava activamente, mas às escondidas do meu marido, que era um empresário. Para ele o PT era o demónio. Mas eu, que já trabalhava com as crianças de rua, sentia muitíssimo a injustiça social e via em Lula a esperança. Isto começou a tomar conta de toda a minha vida.

Em que sentido?
O meu único interesse naquele momento eram os pobres. Nada mais me interessava.

Já não vivia uma pertença à Igreja?
Não, de todo. Quando o Partido começou a crescer, deixámos a Igreja “para trás”.

Concretamente, o que é que isso queria dizer?
Tomar outros caminhos, usar métodos errados: das greves à violência. Fazíamos cursos de formação para a guerrilha. O único objectivo era tirar os pobres da rua. Depois os líderes depositavam a sua fé em mim, porque era a mais selvagem e quando falava convencia as pessoas. Assim acabei por ter que fazer escolhas.

Quais?
Separar-me do meu marido, que não partilhava aquilo que eu fazia. E ir viver para a favela. Os meus pais choravam, porque tinham medo que fosse assassinada. Estava envolvida até à ponta dos cabelos. Depois, em 1988, foi eleita a nossa candidata sindical da cidade de São Paulo, a Luiza Erundina. Naquele momento, eu e Marcos Zerbini (hoje seu marido e deputado do estado paulista; ndr) fomos convidados a trabalhar com ela. Estava entusiasmada, porque era a chefe de um departamento do Munícipio e podia fazer muito. Mas, pouco depois, começámos a ver coisas com as quais não estávamos de acordo. Por exemplo: as casas construídas para os pobres eram seladas, para não serem ocupadas. Dissemos: «Isto está errado, nós aprendemos a conquistar a terra para as pessoas, não a proteger as casas». No entanto, foram mantidas “intactas” para serem utilizadas nas eleições seguintes, como voto de troca. Ou então, víamos pessoas que ganhavam um salário sem trabalhar. A um certo ponto fomos ter com o Lula e dissemos-lhe: «Este não é o partido que criámos».

E ele?
Ele respondeu: «Vocês são pagos para seguir, não para pensar. Isso faço eu». Saímos. O partido tinha-se tornado como todos os outros. Não foi fácil, porque houve várias formas de perseguição contra nós. Também ameaças. E continuaram depois, de outro modo, criando obstáculos ao trabalho com a Associação.

O que é que aprendeste com isto tudo?
Eu agora percebo com clareza, graças aos caminho que estou a fazer, que o problema foi este: ter trocado Cristo pelos pobres. E depois os pobres pelo poder. Daqui, a corrupção, aquilo que vemos: o “fim” de todos aqueles que estão envolvidos neste sistema. E de todos os projectos sociais que não tiveram a preocupação de fazer do homem um protagonista, mas um dependente.

Mas para ti, à época, isso não era claro como agora. O que é que fez a diferença na tua história?
Eu saí do partido em 1991 e fiquei dez anos numa busca contínua. Ia à Missa, mas contudo Cristo não tinha importância. Os pobres continuavam a ser a coisa mais importante para mim. Em 2002, a Associação era já muito grande, tinhámos construído milhares de casas. Mas eu continuava a procurar. Não sabia o quê. Mas já não sentia satisfação em ajudar, já não tinha afecto pelo Marcos, já não me importava com nada. Tomei antidepressivos durante cinco anos. Não havia um motivo… Mas nada me dava alegria. Quando conseguíamos ter uma escola, todos festejavam e eu dizia: «Faltam outras cem». Havia finalmente uma creche e eu chorava, porque não era suficiente. Estava sempre triste, por causa de tudo aquilo que faltava. Queria fazer viagens e quando chegava a um lugar queria voltar para casa. Queria trocar de carro, e quando trocava já não via a necessidade de o ter feito. Além disso, todos os amigos ao meu redor me pareciam errados…

E depois?
Nesse momento de grande confusão, encontrei CL. Fiquei muito impressionada com algumas coisas que ouvi: respondiam às perguntas que tinha dentro de mim. Comecei a ir à Escola de Comunidade, ainda que não soubesse o que era. Mas ia, porque sentia que havia ali qualquer coisa para mim. Lembro-me da primeira vez que o Padre Julián Cárron veio ao Brasil: eu nem sequer sabia que o movimento tinha um líder. Tocou-me ouvi-lo falar e fui dizer-lhe isso, debaixo do palco, no final do encontro. Não nos conhecíamos, mas ele convidou-me para jantar. Eu disse-lhe: «Porquê eu? Disseram-me que tem tantos compromissos...». E ele: «É a pergunta de Mateus a Cristo. Tu conheces a Vocação de São Mateus?». «Não». «Então ao jantar eu explico-te tudo...». Foi o meu início no movimento. Assim, passo a passo, seguindo o Carrón, percebi por que razão me casei com dezasseis anos, por que razão me separei, por que razão entrei no partido, por que razão me apaixonei pelos pobres. E por que razão estou apaixonada por Cristo. Eu sou muito privilegiada.

Porquê?
Porque fiz um caminho. Através do qual compreendi que só Cristo corresponde ao desejo que tenho no coração. Eu não falo com o Lula desde 1991, mas penso que ele faria de tudo para voltar a 78, quando Cristo era o centro. Penso isso ao vê-lo atormentado e como perdeu tudo. Agora aqui no Brasil existe uma crise muito grande, muita gente está desesperada, devido à falta de trabalho, à inflação… Houve muitas manifestações de rua, para mandar embora a Dilma. Eu nunca participei. A Dilma cairá, mas as pessoas vão continuar a estar tristes na mesma. Não é isto que muda as suas vidas.

Mas tu ainda confias na política?
Eu amo a política. Mas acho que a política é feita por homens e por mulheres. E que uma pessoa se perde quando Cristo já não está no centro: quando se espera a mudança da vida de qualquer outra coisa. Eu vi muitas mudanças: vi um operário tornar-se Presidente, tal como vi milhares de pessoas que não tinham uma casa e agora têm, ou que têm filhos que frequentam a Universidade, o que era impensável. No entanto, não é nada disto que nos faz felizes. Percebi isto porque era assim para mim: antes, tudo era motivo para estar triste. Agora agradeço por cada coisa que acontece na minha vida. Porque o caminho da fé faz-te abraçar toda a realidade que te é dada hoje, porque a realidade é a presença de Cristo.

Mas como é que isto muda o teu empenho e, portanto, a tua relação com a política?
Eu já não amo “os pobres”. Eu amo a pessoa. Hoje não tenho necessidade de construir as casas, mas que cada pessoa tenha uma casa: o Giuseppe, a Sebastiana, a Marta… A pobreza é muito grande, e não tem rosto: o rosto tem-no a pessoa. Graças ao movimento, aprendi que não sou responsável por resolver o problema da pobreza. Eu sou responsável pelo meu sim de cada dia.

O que é que te ajuda a viver Cristo como centro da tua vida?
Os amigos. Eu sozinha não seria capaz. A companhia dos amigos, a Escola de Comunidade, o caminho da Fraternidade: olhar para o Carrón, segui-lo. É facílimo resvalar: é facílimo para todos, para mim ainda mais, porque tenho muito poder neste momento, na responsabilidade na Associação, e posso “usar” Cristo para fazer uma coisa ou outra. Então tenho a necessidade de seguir para viver a certeza que Cristo basta e que é Ele que toma conta das coisas. Deus sempre tomou conta de mim, por isso eu não me perdi. Mais: fiz um encontro verdadeiro que deu um sentido novo à minha vida. E aprendi que ou se procura Cristo ou não se procura nada.