Papa Bento XVI

A fé cristã não é uma ideia, mas é uma vida

A centralidade da misericórdia na fé cristã e o desafio do nosso tempo. As palavras do Papa emérito Bento XVI, citadas também por D. Julián Carrón nos Exercícios Espirituais de CL (do L'osservatore romano, 16 março)
Jacques Servais

Publicamos o texto integral da entrevista a Bento XVI contida no livro Per mezzo della fede. Dottrina della giustificazione ed esperienza di Dio nella predicazione della Chiesa e negli Esercizi Spirituali, preparado pelo jesuita Daniele Libanori (Cinisello Balsamo, Edizioni San Paolo, 2016) na qual o Papa emérito fala da centralidade da misericórdia na fé cristã. O livro recolhe as atas de uma conferência que se realizou em Outubro passado em Roma. Como escreve Filippo Rizzi no jornal «Avvenire» de 16 de Março o autor da entrevista (cujo nome não está presente no livro) é o jesuíta Jacques Servais, aluno de Hans Urs von Balthasar e estudioso da sua obra.

Santidade, a questão colocada este ano no quadro das jornadas de estudo promovidas pela reitoria do Gesù é a da justificação pela fé. O último volume da sua opera omnia (gs IV) coloca em evidência a sua afirmação resoluta: «A fé cristã não é uma ideia, mas uma vida». Comentando a célebre afirmação paulina (Romanos 3, 28), V. Santidade falou, a este propósito, de uma dúplice transcendência: «A fé é um dom aos crentes comunicado através da comunidade, a qual por sua vez é fruto do dom de Deus» («Glaube ist Gabe durch die Gemeinschaft; die sich selbst gegeben wird», gs IV, 512). Poderia explicar o que quis dizer com essa afirmação, tendo em conta, naturalmente, o facto que o objectivo destas jornadas é clarificar a teologia pastoral e dar vida à expêriencia espiritual dos fieis?
Trata-se da questão: o que é a fé e como se chega a acreditar. Por um lado, a fé é um contacto profundamente pessoal com Deus, que me toca no meu tecido mais intimo e me põe diante do Deus vivente em absoluta imediatez, de modo a que possa falar-lhe, amá-lo e entrar em comunhão com Ele. Mas, ao mesmo tempo, esta realidade maximamente pessoal, tem inseparavelmente que ver com a comunidade: faz parte da essência da fé o facto de introduzir-me no nós dos filhos de Deus, na comunidade peregrinante dos irmãos e das irmãs. O encontro com Deus significa também, ao mesmo tempo, que eu próprio estou aberto, arrancado da minha solidão fechada e sou acolhido na comunidade vivente da Igreja. Esta é também a mediadora do meu encontro com Deus, que todavia chega ao meu coração de forma totalmente pessoal.
A fé deriva da escuta (fides ex auditu), ensina-nos São Paulo. A escuta, por sua vez, implica sempre um parceiro. A fé não é um produto da reflexão e nem sequer uma tentativa de penetrar na profundidade do meu ser. Ambas as coisas podem estar presentes, mas elas são ainda insuficientes sem a escuta mediante a qual Deus, de fora, a partir de uma história por Ele própria criada, me interpela. Para que eu possa crer preciso de testemunhas que encontraram Deus e mo tornem acessível.
No meu artigo sobre o batismo, falei da dupla transcendência da comunidade, fazendo assim emergir, mais uma vez, um importante elemento: a comunidade de fé não se cria sozinha. Ela não é uma assembleia de homens que têm ideias em comum e que decidem agir para a difusão de tais ideias. Nesse caso, tudo seria baseado numa decisão própria e, em última análise, no princípio da maioria, isto é, ao fim ao cabo, seria opinião humana. Uma Igreja construída assim não pode ser para mim garante da vida eterna nem exigir de mim decisões que me fazem sofrer e que são contraditórias com os meus desejos. Não, a Igreja não foi feita por si mesma, foi criada por Deus e é continuamente formada por Ele. Isto encontra a sua expressão nos sacramentos, sobretudo no do batismo: eu entro na Igreja não com um acto burocrático, mas mediante o sacramento. E isto equivale a dizer que eu sou acolhido numa comunidade que não se originou por si mesma e que se projeta para além de si mesma.
A pastoral que pretende formar a experiência espiritual dos fiéis deve proceder destes dados fundamentais. É necessário que ela abandone a ideia de uma Igreja que se produz a si mesma e é necessário enfatizar que a Igreja se torna comunidade na comunhão do corpo de Cristo. Ela deve introduzir ao encontro com Jesus Cristo e levar à Sua presença no sacramento.

Quando V. Santidade era Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, comentando a Declaração Conjunta da Igreja Católica e da Federação Luterana Mundial sobre a doutrina da justificação do dia 31 de Outubro de 1999, V. Santidade evidenciou uma diferença de mentalidade em relação a Lutero e à questão da salvação e da beatitude da forma como ele a colocava. A experiência religiosa de Lutero era dominada pelo terror diante da cólera de Deus, sentimento bastante estranho ao homem moderno, marcado mais pela ausência de Deus (veja-se o vosso artigo na Communio, 2000, 430). Para estes o problema não é tanto como se há de assegurar a vida eterna, mas o de garantir, nas precárias condições do nosso mundo, um certo equilíbrio de vida plenamente humana. A doutrina de S. Paulo da justificação pela fé, neste novo contexto, pode alcançar a experiência «religiosa» ou, ao menos, a experiência «elementar» dos nossos contemporâneos?
Acima de tudo quero sublinhar mais uma vez o que escrevi na «Communio» (2000), sobre a problemática da justificação. Para o homem de hoje, em relação ao tempo de Lutero e à perspectiva clássica da fé cristã, as coisas, em certo sentido, inverteram-se, ou seja, já não é o homem que acredita precisar da justificação em relação a Deus, mas a ele parece-lhe que é Deus que tem que se justificar por todas as coisas horrendas presentes no mundo e diante da miséria do ser humano, tudo coisas que, em última instância, dependeriam d'Ele. A esse propósito, acho revelador o facto de um teólogo católico assumir de modo até mesmo direto e formal tal inversão: Cristo não teria sofrido pelos pecados dos homens, mas antes teria, por assim dizer, apagado as culpas de Deus. Mesmo que, por enquanto, a maior parte dos cristãos não compartilhe uma inversão tão drástica da nossa fé, pode-se dizer que tudo isto faz emergir uma tendência de fundo do nosso tempo. Quando Johann Baptist Metz defende que a teologia hoje deve ser «sensível à teodiceia» (theodizeeempfindlich), isto põe em evidência o mesmo problema de modo positivo. Mesmo prescindindo de uma contestação tão radical da visão eclesial sobre a relação entre Deus e o homem, o homem de hoje, de modo generalizado, tem a sensação de que Deus não pode deixar a maior parte da humanidade dirigir-se à perdição. Nesse sentido, a preocupação com a salvação típica de antigamente quase desapareceu.
No entanto, a meu ver, continua a existir, de outro modo, a perceção de que nós precisamos da graça e do perdão. Para mim, é um «sinal dos tempos» o facto de a ideia da misericórdia de Deus se tornar cada vez mais central e dominante – a partir da Ir. Faustina, cujas visões, de modos variados, refletem profundamente a imagem de Deus própria do homem de hoje e o seu desejo da bondade divina. O Papa João Paulo II estava profundamente impregnado deste impulso, embora isso nem sempre emergisse de modo explícito. Mas certamente não é por acaso que o seu último livro, que viu a luz imediatamente antes da sua morte, fala da misericórdia de Deus. A partir das experiências nas quais, desde os primeiros anos de vida, teve de constatar toda a crueldade dos homens, ele afirma que a misericórdia é a única verdadeira e última reação eficaz contra o poder do mal. Só onde há misericórdia acaba a crueldade, acabam o mal e a violência. O Papa Francisco encontra-se totalmente de acordo com essa linha. A sua prática pastoral exprime-se justamente no facto de nos falar continuamente da misericórdia de Deus. É a misericórdia o que nos move em direção a Deus, enquanto que a justiça nos assusta em relação a Ele. A meu ver, isso evidencia que, sob o verniz da segurança de si e da própria justiça, o homem de hoje esconde um profundo conhecimento das suas feridas e da sua indignidade perante Deus. Ele está à espera da misericórdia. Não é certamente por acaso que a parábola do bom samaritano é particularmente atraente para os contemporâneos. E não só por nela ser fortemente sublinhado a componente social da existência cristã, nem só por o samaritano, o homem não religioso, aparecer nela, em relação aos representantes da religião, por assim dizer, como aquele que age de modo verdadeiramente conforme a Deus, enquanto que os representantes oficiais da religião se tornaram, por assim dizer, imunes em relação a Deus. É claro que isso agrada ao homem moderno. Mas parece-me igualmente importante, no entanto, que os homens, no seu íntimo, esperem que o samaritano venha em sua ajuda, que se curve sobre eles, derrame óleo sobre as suas feridas, cuide deles e os proteja. Em última análise, eles sabem que têm necessidade da misericórdia de Deus e da sua delicadeza. Na dureza do mundo tecnicizado em que os sentimentos já não contam para nada, aumenta porém a expectativa de um amor salvífico, que seja dado gratuitamente. Parece-me que se expressa de modo novo o que significa a justificação pela fé no tema da misericórdia divina. A partir da misericórdia de Deus, que todos procuram, é possível também hoje interpretar desde o início o núcleo fundamental da doutrina da justificação e fazê-lo aparecer de novo em toda a sua relevância.

Quando S. Anselmo diz que o Cristo tinha de morrer na cruz para reparar a ofensa infinita que tinha sido feita a Deus e, assim, restaurar a ordem quebrada, usa uma linguagem dificilmente aceitável pelo homem moderno (cfr. GS IV 215.ss). Expressando-se desse modo, corre-se o risco de projetar sobre Deus uma imagem de um Deus de cólera, que, diante do pecado do homem, agarrado por [um estado afetivo] sentimentos de violência e de agressividade comparáveis àquilo que nós próprios podemos experimentar. Como é possível falar da justiça de Deus sem correr o risco de minar a certeza, já consolidada junto aos fiéis, que [o Deus] dos cristãos é um Deus «rico em misericórdia» (Ef 2, 4)?
A concetualidade de Santo Anselmo tornou-se hoje, para nós, certamente incompreensível. É tarefa nossa tentar entender de modo novo a verdade que se esconde por detrás desse modo de se expressar. Da minha parte, formulo três pontos de vista sobre este ponto:
a) A contraposição entre o Pai, que insiste de modo absoluto na justiça, e o Filho que obedece ao Pai e, obedecendo, aceita a cruel exigência da justiça, não é apenas incompreensível hoje, mas, a partir da teologia trinitária é, em si mesma, totalmente errada. O Pai e o Filho são uma coisa só e, portanto, a Sua vontade é ab intrinseco uma só. Quando o Filho, no Jardim das Oliveiras, luta com a vontade do Pai, não se trata do facto de ter de aceitar para si uma disposição cruel de Deus, mas sim do facto de atrair a humanidade para dentro da vontade de Deus. Teremos de voltar novamente à relação das duas vontades do Pai e do Filho.
b) Mas então a que propósito vêm a cruz e a expiação? De algum modo, hoje, nas contorções do pensamento moderno de que falamos acima, a resposta a tais perguntas pode ser formulada de um modo novo. Coloquemo-nos diante da incrível e suja quantidade de mal, de violência, de mentira, de ódio, de crueldade e de soberba que infetam e arruínam o mundo inteiro. Esta massa de mal não pode ser simplesmente declarada como inexistente, nem mesmo por parte de Deus. Tem de ser depurada, reelaborada e superada. O antigo Israel estava convencido de que o sacrifício quotidiano pelos pecados e, sobretudo, a grande liturgia do dia da expiação (yom-kippur) eram necessários como contrapeso para a massa de mal presente no mundo, e que só mediante tal reequilíbrio o mundo poderia, por assim dizer, continuar suportável. Assim que desapareceram os sacrifícios no templo, foi necessário perguntar o que poderia ser contraposto às potências superiores do mal, como encontrar, de alguma forma, um contrapeso. Os cristãos sabiam que o templo destruído tinha sido substituído pelo corpo ressuscitado do Senhor crucificado e que, no Seu amor radical e incomensurável, tinha sido criado um contrapeso à incomensurável presença do mal. Ou melhor, eles sabiam que as ofertas apresentadas até então só podiam ser concebidas como gesto de desejo de um real contrapeso. Eles também sabiam que, diante do excessivo poder do mal, só um amor infinito podia bastar, só uma expiação infinita. Eles sabiam que o Cristo crucificado e ressuscitado é um poder que pode combater o do mal e que salva o mundo. E sobre estas bases também puderam perceber o sentido dos seus próprios sofrimentos como inseridos no amor sofredor de Cristo e como parte do poder redentor de tal amor. Acima eu citava aquele teólogo para o qual Deus teve de sofrer pelas Suas culpas em relação ao mundo; ora, dada essa inversão da perspectiva, emerge a seguinte verdade: Deus simplesmente não pode deixar como está a massa do mal que deriva da liberdade que Ele mesmo concedeu. Só Ele, vindo a fazer parte do sofrimento do mundo, pode redimir o mundo.
c) Sobre estas bases torna-se mais perspícua a relação entre o Pai e o Filho. Reproduzo, sobre est assunto, uma passagem retirada do livro de De Lubac sobre Orígenes, que me parece muito clara: «O Redentor entrou no mundo por compaixão pelo género humano. Tomou sobre Si as nossas paixões antes ainda de ser crucificado ou, melhor até, mesmo antes de se abaixar para assumir a nossa carne: se não as tivesse provado antes, não teria vindo tomar parte da nossa vida humana. Mas qual foi este sofrimento que Ele suportou antecipadamente por nós? Foi a paixão do amor. Mas o próprio Pai, o Deus do universo, Ele que é superabundante de longaminidade, paciência, misericórdia e compaixão, não sofre, também Ele, em certo sentido? “O Senhor teu Deus, de facto, tomou sobre Si os teus costumes como aquele que toma sobre Si o seu filho” (Deuteronómio 1, 31). Deus, portanto, toma sobre Si os nossos costumes como o Filho de Deus toma sobre Si os nossos sofrimentos. O próprio Pai não é sem paixão! Se alguém O invocar, então Ele conhece misericórdia e compaixão. Ele percebe um sofrimento de amor (Homilias sobre Ezequiel 6, 6)».
Nalgumas zonas da Alemanha, houve uma devoção muito comovente que contemplava die Not Gottes (“a indigência de Deus”). Pela minha parte, isto faz-me passar diante dos olhos uma imagem impressionante que representa o Pai sofredor, que, como Pai, partilha interiormente os sofrimentos do Filho. E faz parte dessa devoção também a imagem do “trono da graça”: o Pai sustenta a cruz e o crucificado, inclina-se amorosamente sobre ele e, por outro lado, por assim dizer, está junto a ele sobre a cruz. Assim, de modo grandioso e puro, percebe-se ali o que significam a misericórdia de Deus e a participação de Deus no sofrimento do homem. Não se trata de uma justiça cruel, nem do fanatismo do Pai, mas sim da verdade e da realidade da criação: da verdadeira íntima superação do mal que, em última análise, apenas no sofrimento do amor se pode realizar.

Nos «Exercícios Espirituais», S. Inácio de Loyola não utiliza as imagens vetero-testamentárias da vingança, ao contrário de S. Paulo (cfr. 2 Tessalonicenses 1, 5-9); no entanto, ele convida a contemplar como os homens, até à Encarnação, «desciam ao inferno» (Exercícios Espirituais n. 102; cfr. ds IV, 376) e a considerar o exemplo dos «inúmeros outros que lá acabaram por muito menos pecados do que aqueles que eu cometi» (Exercícios Espirituais n. 52). É nesse espírito que São Francisco Xavier viveu a sua própria actividade pastoral, convencido de ter de tentar salvar do terrível destino da perdição eterna o máximo de «infiéis» possível. O ensinamento, formalizado no Concílio de Trento, na sentença relativa ao juízo sobre os bons e os maus, em seguida radicalizada pelos jansenistas, foi entendida de modo muito mais contido no Catecismo da Igreja Católica (cfr. §5 633, 1037). Pode-se dizer que, quanto a este ponto, nas últimas décadas, houve uma espécie de «desenvolvimento do dogma», que o Catecismo absolutamente deve levar em conta?
Não há dúvida de que, neste ponto, estamos diante de uma profunda evolução do dogma. Enquanto os Padres e os teólogos da Idade Média ainda podiam ser da opinião de que, na substância, todo o género humano se tinha tornado católico e que o paganismo existia quase somente nas margens, a descoberta do Novo Mundo, no início da era moderna, mudou de maneira radical as perspectivas. Na segunda metade do século passado afirmou-se completamente a consciência de que Deus não pode deixar que todos os não batizados vão para a perdição, e que mesmo uma felicidade puramente natural para eles não representa uma resposta real à questão da existência humana. Se é verdade que os grandes missionários do século XVI ainda estavam convencidos de que aqueles que não eram batizados estavam perdidos para sempre – e isso explica o seu empenho missionário – na Igreja Católica, depois do Concílio Vaticano II, tal convicção foi definitivamente abandonada. Disso derivou uma dupla e profunda crise. Por um lado, isso parece retirar toda a motivação a um empenho missionário futuro. Porque é que se deve tentar convencer as pessoas a aceitarem a fé cristã, quando se podem salvar mesmo sem ela? Mas também para os cristãos emerge uma questão: tornou-se incerta e problemática a obrigatoriedade da fé e da sua forma de vida. Se há quem se possa salvar mesmo de outras maneiras, deixa de ser evidente, no fim das contas, porque é que o cristão está ligado às exigências da fé cristã e à sua moral. Mas se a fé e a salvação já não estão interdependentes, também a fé se torna imotivada.
Nos últimos tempos foram formuladas diversas tentativas com o objetivo de conciliar a necessidade universal da fé cristã com a possibilidade de se salvar sem ela. Recordo aqui duas delas: acima de tudo, a tese bem conhecida dos cristãos anónimos de Karl Rahner. Nela defende-se que na estrutura transcendental da nossa consciência o acto-base essencial da existência cristã, que é decisivo em ordem à salvação, consiste na abertura total ao outro, em direção à unidade com Deus. A fé cristã teria feito emergir à consciência aquilo que é estrutural no homem como tal. Por isso, quando o homem se aceita no seu ser essencial, ele cumpre o essencial do ser cristão, mesmo sem o conhecer de modo conceptual. O cristão, portanto, coincide com o humano e, nesse sentido, é cristão qualquer homem que se aceita a si mesmo, mesmo que o não saiba. É verdade que esta teoria é fascinante, mas reduz o próprio cristianismo a uma pura apresentação consciente daquilo que o ser humano é em si e, portanto, ignora o drama da mudança e da renovação que é central no cristianismo.
Ainda menos aceitável é a solução proposta pelas teorias pluralistas da religião, para as quais todas as religiões, cada uma a seu modo, seriam vias de salvação e, nesse sentido, nos seus efeitos, devem ser consideradas como equivalentes. A crítica da religião do tipo da exercida pelo Antigo Testamento, pelo Novo Testamento e pela Igreja primitiva é essencialmente mais realista, mais concreta e mais verdadeira no seu exame das várias religiões. Uma recepção tão simplista não é proporcional à grandeza da questão.
Recordemos, por último, especialmente Henri de Lubac e com ele alguns outros teólogos que fizeram força sobre o conceito de substituição vicária. Para eles a preexistência de Cristo seria expressão da figura fundamental da existência cristã e da Igreja como tal. É verdade que assim o problema não está totalmente resolvido, mas parece-me que esta seja, na realidade, a intuição essencial que assim toca a existência de cada cristão. Cristo, como único, foi e é para todos os cristãos, que na grandiosa imagem de S. Paulo constituem o Seu corpo neste mundo e participam deste “ser-para”. Não se é cristão, por assim dizer, para nós próprios, mas sim, com Cristo, para os outros. Isto não significa uma espécie de bilhete especial para entrar na bem-aventurança eterna, mas sim a vocação para construir o conjunto, o todo. Aquilo de que a pessoa humana tem necessidade em ordem à salvação é a íntima abertura na relação com Deus, a íntima expectativa e adesão a Ele, e isso significa, vice-versa, que nós, juntamente com o Senhor que encontrámos, vamos em direcção aos outros e procuramos tornar visível para eles o advento de Deus em Cristo.
É possível explicar este “ser para” também de um modo um pouco mais abstrato. É importante para a humanidade que nela haja verdade, que esta seja acreditada e praticada. Que se sofra por ela. Que se ame. Estas realidades penetram com a sua luz no mundo enquanto tal e sustentam-no. Eu acho que, na presente situação, se torna para nós cada vez mais claro e compreensível aquilo que o Senhor diz a Abraão, isto é, que dez justos teriam sido suficientes para fazer sobreviver uma cidade, mas que ela se destrói a si mesma se esse pequeno número não é alcançado. É claro que devemos futuramente refletir sobre toda esta questão.

V. Santidade notou que, aos olhos de muitos “laicos”, marcados pelo ateísmo dos séculos XIX e XX, é mais Deus – se é que existe – e não o homem que deve responder pelas injustiças, pelo sofrimento dos inocentes, pelo cinismo do poder a que estamos a assistir, impotentes, no mundo e na história universal (cfr. «Spe salvi», n. 42)... No seu livro «Jesus de Nazaré», V. Santidade faz eco daquilo que, para eles – e para nós – é um escândalo: “A realidade da injustiça, do mal, não pode ser simplesmente ignorada, simplesmente posta de lado. Ela deve absolutamente ser superada e vencida. Só assim há verdadeiramente misericórdia” (Jesus de Nazaré, III, citando 2Timóteo 2, 13). O sacramento da confissão é, e em que sentido, um dos lugares nos quais pode ocorrer uma «reparação» do mal cometido?
Eu já tentei expor no seu conjunto os pontos fundamentais relativos a este problema ao responder à terceira questão. O contrapeso ao domínio do mal só pode consistir, em primeiro lugar, no amor divino-humano de Jesus Cristo que é sempre maior do que qualquer possível poder do mal. Mas é necessário que nós nos insiramos nesta resposta que Deus nos dá mediante Jesus Cristo. Mesmo que o indivíduo seja responsável por um fragmento de mal e, portanto, seja cúmplice do seu poder, junto de Cristo ele pode no entanto “completar o que ainda falta aos seus sofrimentos” (cfr. Colossenses 1, 24).
O sacramento da penitência tem certamente um papel importante nesse campo. Isto significa que nós nos deixamos sempre moldar e transformar por Cristo, e que passamos continuamente do lado de quem destrói para o lado de quem salva.