A beleza desarmada do amor à vida
A Caminhada pela Vida, no dia 14 de maio de 2016, foi, mais uma vez, um gesto singular. Pelo que se afirmou e pediu, pelo povo que se reuniu, pelo modo como se fezO que é que se afirmou? Coisas simples, essenciais, estimáveis, universais: que a vida é um bem, independentemente da sua fragilidade; que é bom as crianças terem uma mãe e um pai; que a ninguém pode ser negada a sua herança genética; que o corpo de uma mulher não pode ser instrumentalizado; que é justo e importante ajudar as mães, especialmente as que vivem em dificuldades. Tudo tão natural e óbvio. Arrepiante é pensar que é hoje preciso sair à rua para o lembrar ao mundo. Os discursos de início e fim da Caminhada, do José Maria Duque, do António Maria Pinheiro Torres e da Isilda Pegado foram objetivos, claros e mobilizadores.
O que é que se pediu? E para quem se pediu? Fizeram-se pedidos clamorosos e urgentes, porque tudo ali era um caso de vida ou de morte. Mas ninguém pediu para si, para resolver os seus problemas, melhorar a sua vida ou libertar-se de injustiças a si infligidas. Nada do que se pediu na Caminhada pela Vida servia uma corporação ali representada, ou um interesse dos que lá estavam. Todos caminhavam por outros, pelos mais frágeis, pelos que é difícil amar, pelos que é fácil esquecer.
E quem era este povo, cuja presença falou mais alto dos que as palavras de ordem, os discursos e os cantos? Famílias, muitas famílias; muitas crianças com os seus pais, quase todas com saúde, mas outras, não, num testemunho silencioso de um bem que é cada vez mais raro e audacioso reconhecer e acolher; muitos jovens, eram talvez a maioria, entre os caminhavam e a quantidade imensa dos que ajudavam; muitos avós; muitas pessoas vindas das instituições que trabalham diariamente pela vida, os acolhedores e os acolhidos, os fundadores e os benfeitores, além das crianças já nascidas, ao longo de anos e anos de batalha sem tréguas.
Mas o mais incrível foi o modo como se fez a Caminhada pela Vida: com ordem, serenidade, alegria e esperança. Com um sentido de missão, que venceu todos os obstáculos, nalguns casos de forma heróica. Havia mil razões para não estar ali. Cada pessoa tinha deixado para trás trabalho, descanso, programas alternativos, tentação de desanimar diante da desproporção das forças ou dramas humanos que justificavam ficar em casa desta vez. Como o de uma família, que tinha acabado de perder a mãe, brutal e inesperadamente. E veio, no próprio dia do enterro, pai e filhos, irmãos e sobrinhos, tristes, mas certos de um bem maior a afirmar e defender.
A Caminhada pela Vida fez-se de vidas concretas que se entregam, que arriscam, que não recuam. Nem a falta de meios, nem as maiorias adversas, nem as mentiras mediáticas, nem as injustiças flagrantes, nem as afrontas pessoais, nada nos trava. Foi lançada uma petição. Recomeça a luta contra o tempo e contra a corrente. Mas tudo o que se disse, como tudo o que se faz, ao contrário das outras lutas e manifestações, é sem raiva, ameaça, ataque ou intimidação. Connosco trazemos só a beleza desarmada do amor à vida.