Caravaggio, Sete Obras de Misericórdia (porm.), 1606

OS 14 SINAIS DA GRAÇA

Dar de beber a quem tem sede. Dar bons conselhos. Dar pousada aos peregrinos. Perdoar as injúrias... O Ano Santo coloca no centro as obras de misericórdia corporal e espiritual. O teólogo ANDREA GRILLO explica como nasceram.
Paolo Rodardi

Andrea Grillo é professor ordinário de Teologia dos Sacramentos e Filosofia da Religião no Pontifício Ateneu Santo Anselmo em Roma. Ensina Liturgia no Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Justina em Pádua, no Instituto Augustinianum em Roma e no Intituto Superior de Liturgia de Paris. Com ele falámos do Jubileu da Misericórdia, em particular das obras de misericórdia que, segundo o que escreveu Francisco numa mensagem enviada a Mons. Rino Fisichella, se podem viver «na primeira pessoa» para obter a indulgência jubilar.

Professor, quando e como nasceram as obras de misericórdia?
São fruto duma longa história, na qual as “práticas penitenciais” foram a via principal com que o cristão respondia à graça do Deus que perdoa. Antes de existir o confessionário havia as “obras de misericórdia”! Mais do que obras são formas de actuar. Mais do que actos pontuais, são indicações corroboradas e eficazes de “outras prioridades”, ou melhor, de “prioridade do outro”. São formas de esquecimento de si.

Em que sentido são formas de esquecimento de si? Que significa?
Significa que a comunhão, que é o dom fundamental oferecido por Deus aos homens e mulheres, se acende no momento em que cada indivíduo descobre no outro o princípio da própria identidade. Deus e o próximo são a “raiz do Eu”. Para aceder a esta experiência é preciso viver esquecidos de nós mesmos. Só não ficando agarrados a nós próprios é possível chegar a amar o próximo como a si mesmo e, portanto, amar também a si mesmo.

Sete são obras de misericórdia corporal e sete espiritual, porquê?

A resposta não pode ser unívoca. Como qualquer boa tradição, é fruto de diversos contributos. Incluindo uma “sistematização ordenada”, que parte dos textos da Escritura e depois acrescenta ou explica, conforme as diversas circunstâncias da história. A fonte das obras de misericórdia corporal é o Evangelho de Mateus, capítulo 25, mas sem nenhum fundamentalismo. A verdadeira tradição nunca é fundamentalista!

Dentre estas catorze obras, há algumas com um valor especial em relação às outras? E porque é que são precisamente estas e não outras?
Não, não há umas mais importantes. A primazia é o dom de si que Deus faz ao homem. Por isso todas e cada uma são apenas imagens, sinais, traços da grande graça de Deus. O elenco não é taxativo mas exemplificativo; não encerra a tradição num gabinete aduaneiro, mas abre a Igreja sobre uma praça em festa.

Mas frequentemente a prática penitencial é vista do modo oposto: uma mortificação mais do que uma festa, uma ascese até difícil e exigente. Em que sentido, então, praticar as obras de misericórdia equivale a abrir-se a «uma praça em festa»?
A «fraternidade mística» - como Francisco a define na Evangelii Gaudium - é a “forma primordial” da comunhão eclesial. A fé leva-nos a viver as relações com os outros, o tempo e o espaço que temos ante nós, sem medo, acima de tudo sem medo da morte, mas também sem medo do outro e do diferente.

Das sete obras espirituais, as que têm talvez um significado menos fácil de compreender são «dar bons conselhos» e «ensinar os ignorantes». O que significam exactamente?
Significam que na dúvida e no conhecimento não fomos deixados sozinhos. Transferem a perspectiva do juízo sobre a incapacidade do indivíduo para a comunhão duma relação que promove todos. No conselho e no ensino, quem dá é o primeiro a receber. Esta inversão é muito importante.

As obras corporais exigem acção em favor dos pobres, de quem nada tem, de quem sofre, como por exemplo os presos. Pode-se dizer que sem estas obras corporais, as espirituais ficam incompletas?
Certo. Assim é. O princípio de incarnação conduz-nos ao espiritual pela mediação do corpo, abre-nos às lógicas do invisível graças à força e à eloquência do visível.

A indulgência durante o Jubileu obtém-se confessando-se, recebendo a eucaristia, rezando pelas intenções do Papa e fazendo um acto de caridade e de penitência. Porque é que também se pode obter a indulgência por viver uma obra de misericórdia?
Há que distinguir os “regulamentos eclesiais” do sentido teológico e espiritual dos actos. Na realidade a indulgência é a remissão da pena temporal, ou seja, melhor capacidade de responder ao perdão já recebido. Insistindo demasiado nas “condições” da indulgência corre-se o risco de convertê-la num “mérito”, contradizendo-lhe o sentido. Sobre este ponto, além disso, uma profunda releitura da tradição jubilar pode até conseguir notáveis progressos no plano ecuménico.

Francisco quis este Jubileu extraordinário dedicado à misericórdia. Dá a impressão de que quer libertar a Igreja de muitos atavios e rigorismos próprios do passado. E, ao mesmo tempo, fazê-la mais próxima da humanidade, sobretudo a mais afastada duma prática de fé. Não acha, porém, que repropor as obras de misericórdia poderá distanciar os não crentes?
As obras de misericórdia, e toda a configuração tradicional do Jubileu, têm uma longa história e carecem também duma releitura cuidadosa, já iniciada com Paulo VI. Um tom excessivamente individual, quase privatista deve antes ceder a uma lógica comunitária, serena, relacional. Dar espaço à misericórdia, em si mesma, significa promover ao mesmo tempo uma tradição eclesial mais autêntica e uma mais profunda consideração das dinâmicas antropológicas actuais.

Uma pergunta mais geral: como definiria o Pontificado de Francisco do ponto de vista litúrgico?
Diria duas coisas. Em primeiro lugar, uma lufada de ar fresco e de bom senso, em relação a endurecimentos e nostalgias por estilos e formas que a Igreja não só pode, mas deve resolutamente superar. Em segundo lugar, passou-se do primado da “observância” ao primado do “tacto”. Isto torna o Vaticano II totalmente irreversível.