«EM TODAS AS COISAS FUI SEMPRE ATÉ AO FUNDO»

Uma poesia que apenas se revela ao leitor paciente, e que não se assemelha à de nenhum outro. A propósito do “Meridiano” dedicado a CLEMENTE REBORA, repassamos a vida e a grandeza dum autor que ficou por muito tempo na sombra.
Marco Dalla Torre

«Rebora aflorou a poesia contemporânea, mas as suas raízes estão na poesia mística que não conhece tempo nem estação. Vai portanto ter leitores mesmo quando grande parte da poesia actual permanecer ignorada nas prateleiras das bibliotecas». É talvez ainda cedo para verificar esta profecia de Eugenio Montale. Mas decerto Clemente Rebora continua a agir imperceptivelmente na poesia italiana e, ao mesmo tempo, a ter mais leitores do que se poderia supor.
Rebora é um autor que esteve sempre à parte, fora das linhas predominantes da poesia de Novecentos. O seu timbre, único e inconfundível, não se assemelha a nenhum outro. Porém, são muitas as repercussões e as dívidas aos Ossi montalianos, como há vinte anos mostrara Patrizia Valduga. A força da sua poesia (já cara ao Padre Luigi Giussani, para o qual estava entre «os maiores poetas italianos do nosso século») entusiasmou Giovanni Raboni, que dele foi um dos maiores apoiantes nos anos Noventa. E se Gianfranco Contini havia já falado dele como dum «autor fortemente original» que «merece ser incluído entre as personalidades importantes do expressionismo europeu», foi preciso muito tempo para que a sua obra ocupasse aquela centralidade na poesia italiana prefigurada por Pier Paolo Pasolini, para quem Rebora era um dos «mestres na sombra».
Chegou o momento . A publicação dum “Meridiano” a ele dedicado (Poesie, prose e traduzioni, organizado por Adele Dei) representa, por assim dizer, o seu reconhecimento, o seu ingresso no cânone da poesia do século XX. E é bom sinal. Porque Rebora fala ao homem do século XXI com extraordinária actualidade.
A sua poesia, especialmente a primeira, não é fácil: revela-se apenas ao “leitor não impaciente”. Isto por certo não jogou a seu favor, como tão-pouco a sua invulgar biografia, tão fascinante quanto frequentemente mitificada.
A fotografia escolhida para esta página transmite precisamente aquele estranho misto de humildade e desafio que perpassou a sua personalidade. Já desde a mocidade era recordado como vulcânico e obstinado, impulsivo embora sempre pronto à reconciliação. «Recusava-se a caminhar pelo passeio, aonde nunca subia (se por distracção o fazia logo remediava o erro tornando a seguir a família “em baixo”)», conta o sobrinho Roberto. Extraordinária releitura disto é a lírica Clemente, não fare così! (1914). Toda a sua vida foi de adesão íntima e férrea às suas convicções intelectuais e morais, energicamente defendidas perante qualquer pessoa, já fossem os examinadores dos concursos públicos de candidatura ao ensino ou os superiores militares (em tempo de guerra!). Sobretudo Rebora foi um intrépido “buscador da verdade”.
A família de Clemente, da melhor burguesia milanesa, unidíssima, é aberta às novas profissões e a todos os fermentos culturais. Mas Clemente padece a ética do dever ditada pela posição massonico-mazziniana do pai. Um vago mal-estar, que por vezes o leva a repentinas tristezas, impele-o confusamente a procurar uma verdade mais profunda que possa guiar a vida; mas não sabe como nem onde. Baptizado por insistência de alguns parentes, não tem conhecimento disso e não recebe qualquer instrução religiosa, nem em família nem na escola (os pais requerem a dispensa das aulas de religião). Mas a graça do sacramento actua, persegue-o, não lhe dá trégua. Quando, em 1929, finalmente recebe a Primeira Comunhão das mãos do cardeal Schuster, Rebora está para fazer 45 anos.
Face ao espanto dos que mal acreditam que possa entrar na Igreja Católica, comenta: «No entanto, sabem que em todas as coisas eu sempre fui até ao fundo!» Dois anos depois é admitido no Instituto da Caridade, a congregação fundada por Antonio Rosmini. Em 1936 é ordenado sacerdote e exerce o seu ministério em Domodossola, Rovereto, Stresa.
Percorrer as páginas biográficas de Clemente Rebora é uma aventura apaixonante e nunca pacífica. Ele sente estar viver «como na coberta dum veleiro no meio da tempestade» (p. XII). E sê-lo-á, de forma diferente, também na “noite escura” dos últimos anos de vida.
A sua poesia – espelho e instrumento – é “em três tempos”; entre o primeiro e o segundo a cesura trágica da Grande Guerra; entre o segundo e o terceiro logo um intervalo de silêncio de quase trinta anos, marcado pela conversão e o início da vida religiosa.
Durante anos falou-se dum “primeiro” e de um “segundo” Rebora. Na convicção de que a aproximação à fé tivesse feito dele um santo mas tivesse também secado a veia poética. Percepção, parece-nos, inexacta.
As décadas precedentes foram importantes para a recuperação dos papéis reborianos (não ainda concluída). Mas o critério inclusivo utilizado pelas (beneméritas) edições anteriores levou a inserir entre as poesias muitos materiais heterogéneos, na sua maioria devocionais. Rebora, que sempre teve um conceito elevadíssimo da poesia, nunca teria sonhado fazê-lo. Inconscientemente, tais decisões editoriais reforçaram o preconceito dos “dois Rebora”; coisa que não beneficiou nem o Rebora poeta nem o Rebora religioso. A proximidade entre o poderoso martelar dos Frammenti mais pétreos e os cancioneiros devocionais escritos por obediência chocou gerações de leitores.
Este “Meridiano” tem o mérito e a coragem de rever quer a consistência quer o ordenamento do corpo literário inteiro. Operação que ajuda o leitor a apreender a unidade do poeta: os últimos textos parecem à primeira vista muito diferentes das poesias da juventude, mas num exame mais atento revelam uma significativa continuidade. Mudam os motivos e, com estes, parte do léxico, mas são semelhantes muitas cadências estilísticas, assim como igual é o esforço agonístico: para procurar a verdade, um tempo; para incarná-la na própria vida, depois.
Outro notável acto de coragem da curadora é ter compilado entre as “obras” as suas traduções, principalmente do russo: Andreiev, Tolstoi, Gogol. Textos que Rebora escolhe por consonância e que – estamos no início dos Anos Vinte – lhe exigem uma obra atentíssima. À saída da tradução de Lazzaro e altre novelle de Leonid Andreiev, Piero Gobetti escreveu: «A tradução do Rebora é uma obra-prima, e nós em Itália não estamos habituados a trabalhos de tal seriedade e finura artística».
Sem dúvida que o enorme volume pode amedrontar. Se tivéssemos de dar um conselho (escandalosamente subjectivo) ao leitor hesitante, sugeriríamos uma “abordagem biográfica” às poesias. Partindo portanto da “Cronologia”. E quanto aos textos, antes ainda dos Frammenti lirici, as poesias e prosas líricas dos anos da guerra, entre as mais fortes de Rebora e que do ponto de vista estilístico representam a fase talvez mais inovadora.
Don Giussani escreveu dele que Rebora era «um pobre de espírito», em sentido evangélico: alguém que «não tendo nada a defender», diante da realidade «afirma um desígnio e, portanto, intui uma inteligência nas coisas, misteriosa e por isso inefável, não dizível, não decifrável, mas em todo o caso positiva».
A nós, leitura terminada, veio à lembrança uma frase – desabafo e defesa – de Giovanni Boine de resposta às críticas acerca da sua recensão (1914) aos Frammenti lirici, que concluía com a palavra «grande»: «Os que para ali estão de microscópio à procura de pulgas e piolhos, lestos me acusam de desvario e imbecilidade. Imbecil porque chamei grande a um homem. Porventura um homem não é sempre grande? Digo um homem, entenda-se, um homem finalmente com assombro, com deslumbre encontrado, e que te fale com humano coração no meio deste estrídulo amontoado de máquinas avariadas, neste parque circular de balões cheios de ar…»