E da misericórdia nasceu um facto que espantou o mundo
Era a caridade. Uma coisa muito diferente da esmola dos ritos antigos. Porque vem da alegria por um dom recebidoUma das formas mais simples e realistas que assumia - e assume – uma vida que tem como origem a misericórdia recebida é a prática da caridade. E desde que a Igreja existe, esta sempre se exprime também na forma extremamente humilde e concreta da colecta de dinheiro. Encontramos já indícios disto no Novo Testamento, quando se lê na Carta aos Romanos (15,26) e na Primeira aos Coríntios (16,1) que Paulo se ocupou pessoalmente dum peditório feito entre as comunidades da Grécia para sustentar os pobres de Jerusalém, para que fosse um sinal de gratidão pela Igreja Mãe da qual haviam recebido Cristo.
Esta é, de facto, a principal característica que assume entre os cristãos um costume – dar esmola – já presente, por exemplo, nas formas de piedade judaica. Se, efectivamente, também para os discípulos de Jesus vale o critério da esmola como meio para o perdão dos pecados, primeiro que tudo vem a consciência de que aquela é expressão da alegria pelo dom inestimável já recebido, e que leva também a olhar de modo completamente novo o uso dos bens materiais.
Assim, num escrito de S. Justino Mártir (a Apologia prima) verificamos que no século II o ofertório já se tornou parte integrante da celebração eucarística: «Os ricos e os que assim o querem, cada um dá a seu gosto o que quer, e o que se recolhe é depositado junto do chefe da comunidade; e ele socorre os órfãos e as viúvas e os que estão necessitados por doença ou por outra razão, os que estão presos e os hóspedes forasteiros, e sem excepção zela por todos os que têm necessidade». Podemos observar como é forte o vínculo entre o ofertório e a solicitude que a comunidade tem para com os seus membros mais necessitados, a tal ponto que este dever é considerado parte integrante do serviço da presidência.
Mas uma das passagens mais interessantes sobre o tema é de Tertuliano, que, nos finais do século II, explica assim aos pagãos (no Apologeticum) a tradição dos cristãos: «Presidem às nossas reuniões anciãos de virtude comprovada, que receberam essa honra não por dinheiro mas pelo testemunho público, já que nada se pode ter com dinheiro das coisas de Deus. E se também existe uma espécie de caixa comum, esta não é formada por prestações obrigatórias em dinheiro, como se a religião fosse à hasta pública. Cada um entrega um modesto óbolo, uma vez por mês ou quando quer, e só se o quiser e puder. Ninguém é obrigado, mas contribui de sua espontânea vontade. Estes são como que depósitos da piedade. De facto, não são depois gastos em banquetes ou bebidas ou festas de gosto duvidoso, mas para tirar a fome aos pobres e dar-lhes sepultura, para socorrer os jovens e os jovens que não possuem meios de família, e também os servidores que são velhos, e assim também os náufragos; e se alguém, só por causa da nossa religião, sofre nas minas, nas ilhas ou nas prisões, torna-se pupilo da religião que abraçou». Também aqui vemos a insistência na liberdade absoluta que regula a prática da colecta, a par da minuciosa descrição de quem são os beneficiários.
No seguimento desta passagem, ainda ressoa – a par do típico tom pungente da pena de Tertuliano – a atestação do espanto que acompanhava esta caridade tão desconhecida do mundo pagão: «Mas é precisamente esta prática de amor que nos classifica de infames por alguns. “Vede", dizem, “como se amam”, enquanto se detestam entre eles, “e estão prontos a morrer um pelo outro”, enquanto estão prontos a decapitar-se uns aos outros».
Também o uso do dinheiro e da caridade se torna, pois, fonte de testemunho, mas só quando e se for acompanhado de total liberdade e letícia. Como atestava São Paulo, expondo o ensinamento que alguns exegetas atribuem ao próprio Jesus: «Cada um dê como dispôs em seu coração, sem tristeza nem constrangimento, pois Deus ama quem dá com alegria» (2Cor 9,7). Vale a pena recordar esta liberdade tão feliz e tão coessencial à vida cristã.
*Doutor da Biblioteca Ambrosiana