Aura Miguel oferece ao Papa uma cópia de A Bola de 1947

O Papa "todo-o-terreno" interessado só na humanidade

Acompanhou Francisco na sua visita ao Uganda, Quénia e República Centro-Africana, entre os subúrbios de Nairobi, a Porta Santa em Bangui e o hotel-bunker. Entrevista a AURA MIGUEL
Paolo Perego

Tem a voz cansada: «Já não tenho voz, entre o ar condicionado e as mudanças de temperatura, e a ter de falar durante cinco dias…». Seguir Francisco na sua viagem africana foi realmente intenso e fatigante. Aura Maria Vistas Miguel, vaticanista da portuguesa Rádio Renascença, segue há anos a vida dos pontífices no seu magistério e nas suas viagens. Na semana passada, com colegas de todo o mundo, acompanhou Francisco até ao Quénia, Uganda e República Centro-Africana. «Impressionou-me imenso, ainda tenho de “absorver” tudo o que vi», conta enquanto espera o avião que a levará a Lisboa.

O que é que te impressionou?

À chegada causa muito impacto o que se vê. Vem-se duma vida “cómoda”, a que já se está acostumado. Mas desde que o avião aterra no Quénia começa-se a ver as manchas castanhas e, pouco a pouco, vai-se reparando que aquilo são as casas. Os slum. Então pensas que nessas barracas de Nairobi vive 65% da população da cidade! Como se pode viver ali? Depois olhas de perto e é como um murro no estômago. Segundo os nossos critérios, é um escândalo. Não é que nunca tenha visto barracas. Em geral, quando viajamos a sítios assim vêem-se, mas muitas vezes diante de muitas coisas não nos damos conta porque estamos interessados noutras coisas, especialmente se viajamos em turismo. Vamos ver o que nos interessa e distraímo-nos diante do que, afinal, está lá. Desta vez, pelo contrário, foi como se Francisco tivesse deslocado o centro do Papado para fazer ver ao mundo esta humanidade cheia de valor. Algo de que poucos se apercebem, ou muitos fazem como se não existisse. De maneira que dás por ti a olhar para estes lugares e perguntas-te como é possível fazer alguma coisa, mudar tudo isto. Mas a pobreza é tão enorme que pensas: «Não há nada a fazer…». No entanto Francisco foi até lá, como “voz que clama no deserto”, para dizer exactamente o contrário. Pôs-se ali no meio, com o calor, o pó, as deslocações, os mosquitos, o perigo de atentados… Só lhe interessava aquela humanidade, aquela gente que tem a mesma dignidade que eu. Com a diferencia de que eles não se esquecem porque são obrigados a viver com o essencial. E este espectáculo, já difícil de entender no Quénia e no Uganda, tornou-se ainda mais visível e dramático na República Centro-Africana.

Porquê?
Porque observas as barracas em Nairobi e pensas: «Há alguma coisa pior do que Kibera, um slum de um milhão de pessoas?». Não existe nada pior. Depois chegas a Bangui, onde há violência, guerra, devastação. Em cada canto, a dramaticidade que aquelas pessoas vivem salta à vista. Que impacto quando se pensa que Francisco quis abrir a Porta Santa precisamente lá, onde muitos até o aconselharam a não ir. Também porque era difícil garantir a segurança, é certo. Tanques, capacetes azuis, uma protecção incrível. O hotel onde estávamos parecia um bunker no meio daqueles bairros em que, logo à chegada, as pessoas saíram à rua para nos ver. Com uma alegria indescritível. Como é possível? Para mim é uma coisa do outro mundo. Mas o coração delas ardia mais que o meu. Tanto que as fazia sair de casa apesar do perigo, com o recolher obrigatório, depois do anoitecer e sem luz, ponndo em risco a sua propia vida. Contudo para elas valia a pena porque o coração delas desejava encontrar alguém que vinha para lhes falar da verdade.

E depois a Porta Santa… Mas porquê ali, em Bangui?
«Capital espiritual da Misericordia», chamou-lhe. E eu pensaba: «Mas então… Bangui pode ser hoje a capital da desgraça humana». Com 400.000 refugiados, 10.000 crianças-soldado, um milhão e meio de crianças sub-nutridas, como se lhe puede chamar «capital espiritual»? porém, foi um sinal do que é o seu pontificado, mais uma ajuda para percerber para onde olhar e que o nosso pequeño espaço de “conforto quotidiano” não é assim tão importante. A verdade passa por outro lado, pelas coisas que mais corresponde ao coração. Talvez tivesse de ir até essa periferia tão extrema para nos ajudar a perceber uma coisa tão essencial.


Parecia muito feliz por estar ali.

Sim. Sereno. Mais do que noutras ocasiões, noutras viagens. Em África não há lugar para o subjectivismo, que mede e calcula. Para aquelas gentes é tudo questão de vida ou morte. E las coisas que se referem à vida reconhecem-se imediatamente. A insistência do Papa nas periferias também se deve a isto. Vai à periferia do mundo para nos fazer entender a Misericórdia. A República Centro-Africana necessita do perdão. Mas nós também. É a mesma coisa.

O que é que tem a ver a educação com tudo isto? Foi o leitmotiv de muitos discursos “africanos”.
Porque é realista. Muitos outros que falam da África sublinham isto, mas ele é um “todo-o-terreno”. Vai ao terreno, aonde outros não chegam, para acompanhar as tristezas, as angustias, as alegrias e esperanças dos homens. Mas depois também é portador duma proposta de crescimento humano. Proposta que passa também pela educação, faz-nos tomar consciência de que, para mudar e crescer, é preciso relacionar-se com os outros. Não há outra hipótese. Com mais razão em países pobres e onde há conflitos de todo o tipo, esta é a prioridade. A educação e o respeito pelos outros. São duas coisas que vão juntas. Y lá era evidente. Falou de tribalismo, de terrorismo… Francisco é um fenómeno. Ele leva de Roma os discursos e depois, sobretudo quando está com os jovens, põe os papéis de lado e começa a verdadeiramente a dialogar com eles. Escuta-os, faz-lhes perguntas, parte do que eles dizem para explicar as coisas. É um catequista.

Papa dos jovens e não apenas das periferias, portanto?
Sempre foi assim. É certo que é visto como o Papa dos pobres, sempre o tentaram classificar, metê-lo dentro dum esquema. “O Papa da pobreza”. Mas ele subverte o esquema. É um Papa dado ao mundo para converter, para transformar todos, incluindo nós, que julgamos que sabemos tudo e vimos tudo. Há uma frescura ao abordar temas que já conhecemos, que com ele nos damos conta de que não tínhamos percebido nada… Não se pode dar nada por adquirido. Com os jovens é assim, tem esta vivacidade, mas também com todos. É um espectáculo.